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2 MÚSICA, ESPAÇO E HISTÓRIA

2.8 PARTITURA E MEMÓRIA DOS ESPAÇOS

[...] ao mesmo tempo em que escrevia ‘A Pedra do Reino’, a imagem de meu Pai continuava a pulsar dolorosamente dentro de meu sangue - e tentei escrever sobre ele um longo Poema intitulado ‘Cantar do Povo Castanho’. Tenho, ainda, o manuscrito dos primeiros cantos deste Poema. Está todo molhado e em alguns lugares tornou-se ilegível, molhado que foi pela cheia que, em 1975, alagou o Recife.209

Ariano já desistira de terminar aquele poema quando as águas do Capibaribe danificaram seus arquivos: a forma poética parecera ainda muito dolorosa para expressar a lembrança da morte de seu pai, e o autor preferiu aperfeiçoar a forma épico-humorística da novela que já iniciara. Contudo o dano ficou irreparável.

Mas não só os seus escritos a cheia ocorrida em 1975 no Recife tornou ilegíveis. A enchente, conseqüência dos fortes temporais na bacia do Capibaribe, que fizeram transbordar o leito do velho rio, destruiu casas e plantações no interior, causando desmoronamento e mortes na Capital e deixando desabrigados cerca de dez mil habitantes. Bairros inteiros ficaram quase que submersos, arruinando os arquivos de bibliotecas, teatros, cinemas, gravadoras, entre outros.210

Para este trabalho, importa o fato de que, segundo Antônio Madureira, a grande maioria das partituras do repertório do Quinteto Armorial se perdeu com a alagação da Universidade Federal de Pernambuco, em 1975, onde se encontravam arquivadas.211 Das quarenta e uma músicas gravadas pelo Quinteto, apenas três conservaram notação musical, e hoje fazem parte do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.

Entretanto, os alagamentos de 1975 não explicam, por si sós, a inexistência das partituras de grande parte da produção musical do Quinteto. Elas poderiam ser facilmente reproduzidas pelos músicos ou pelo próprio Madureira, caso desejassem trabalhar com as pautas devidamente escritas. Sequer custaria muito trabalho fazê-lo, dada a produção reduzida, resumida a quatro discos, do grupo. Além disso, a reprodução e a venda, ou distribuição, das partituras armoriais em muito ajudaria na divulgação do trabalho entre os especialistas ou conhecedores da arte musical - essa divulgação da obra dos compositores se

209

SUASSUNA apud NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano

Suassuna. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999, p. 176. 210

Cheia, angústia e morte no Recife. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1, 18 jul 1975. (N/a).

211

MADUREIRA, Antônio José. Antônio José Madureira: depoimento [set 2006]. Entrevistador: Leonardo Carneiro Ventura. Recife, 2006. 1 arquivo MP3.

revelou a grande vantagem trazida pelo advento da notação em música – mas a essa inovação, como a outras, símbolos do moderno, também se negou o Armorial. Mas não à toa.

Para Antônio Jardim, a “invenção” da escrita moderna significou “a primeira revolução da música”.212 Isso porque, além de outras conseqüências para o fazer musical, ela, em certo sentido, libertou a música da “dependência” que esta tivera, até então, para com a transmissão oral. Na época do cantochão, cuja prática estava plenamente desenvolvida por volta dos séculos X e XI e a partir da qual se encontra dados verificáveis e registros de fontes seguras e precisas, a música tinha um papel indispensável dentro do ritual litúrgico: dar objetividade e um sentido exato aos textos litúrgicos que podiam facilmente cair num subjetivismo pessoal e, talvez, até numa interpretação herética. A melodia do cantochão, portanto, tinha de ser cantada “corretamente”.213

Assim, os primeiros métodos de notação dos cantos litúrgicos surgiram na segunda metade do primeiro milênio, quando já existia um repertório vasto e bem estabelecido, e foram criados e aperfeiçoados com a função de ajudar a memória dos músicos. Henry Raynor chegou a afirmar: “A história da evolução da notação ocidental é a história dos esforços dos musicistas eclesiásticos no sentido de assegurar o rigor do ritual”.214 Hoje, acredita-se que todo esse repertório era mantido e transmitido através da memória dos músicos e, muitas vezes, por técnicas convencionadas de improvisação bem difundidas entre os músicos em seus momentos de ensaio – haviam maneiras consagradas de se iniciar, continuar, cadenciar, intermediar, retornar e rematar os cânticos. A notação musical surgiu quando já existia um alto grau de uniformidade na execução improvisada. Por isso, o surgimento e o desenvolvimento da notação musical ficou associado ao que seria uma “superação” do antigo sistema oral de transmissão do repertório litúrgico.

A partir daí, podemos dizer que as linhas de transformação histórica da música e da forma como ela foi representada graficamente através dos séculos se entrecruzaram de maneira tal que, ora uma impulsionou a outra, e vice-versa. Em outras palavras, pensamento musical e notação musical passaram a se influenciar mutuamente.

De um lado, houve a ampliação do discurso musical. Com a notação, torna-se possível a criação de obras onde o discurso musical seja desenvolvido em maiores dimensões sem que isso tenha que estar comprometido com repetições literais. A polifonia começou a substituir a

212

Ver JARDIM, Antonio. Sobre música e memória. Manuscrito, 1993, p. 45.

213

Ver GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. 2 ed. Lisboa: Gradiva, 2000.

214

monofonia.215

É claro que o desenvolvimento da música polifônica já estava marcado para acontecer desde antes e na cabeça dos próprios compositores, além do que, a monofonia ainda continuou a existir e estar em primeiro plano na produção musical por um bom tempo, mas é evidente que as novas formas de se escrever música deram meios mais seguros para os compositores em dominar sua técnica, pois as vozes ficavam bem definidas, delineadas, em suas partituras. Por outro lado, essa ampliação do discurso musical exigiu um aprimoramento da grafia da música, pois, muitas vezes, foi pela necessidade de transgredir as regras da notação vigente que o compositor criou novos parâmetros para essa mesma notação.

Outro ponto relevante a se perceber é o de que o surgimento da notação musical é uma tentativa de espacialização dos sons. Ele acontece, na cultura ocidental, no mesmo momento histórico em que a cartografia européia aparece como técnica de grafia dos espaços – a partir do século XII – e está de acordo com uma busca de reconhecimento científico para os escritos bíblicos promovida pela Igreja. Tanto a notação do canto gregoriano, quanto o mapeamento dos lugares bíblicos, foram, inicialmente, utilizados como ornamento e respaldo para os textos sagrados.216

Além disso, a partitura, assim como o mapa, deixa entrever um desejo de visualização espacial. O reconhecimento gráfico do espaço, assim como o da música, é um passo importante na direção de se construir uma relação espaço-musical no imaginário social; de ligar a escrita da música e a escrita do espaço enquanto vetores de representação simbólica da cultura; de conceber uma forma de ver e ouvir a história.

Portanto, a notação musical acompanhou de perto as inovações estilísticas da música, da modernidade à contemporaneidade, aperfeiçoando-se no sentido de representar um discurso musical que exigia (e, em grande medida, ainda exige) um grau cada vez maior de precisão.

Para o Armorial, portanto, que pretende fazer uma música ligada ao caráter oral da cultura ibérica medieval; que se recusa a admitir qualquer influxo de modernidade em sua arte; que se impõe a missão de resgatar o que para ele são as raízes da dita “cultura popular nordestina brasileira”, a produção de uma música ligada ao advento moderno da notação e a todo um discurso musical a cujo desenvolvimento está estritamente ligado – polifonia,

215

A música polifônica se define pelo uso de duas ou mais vozes melódicas superpostas e trabalhadas simultânea e independentemente pelo compositor. A monofonia engloba um tipo de música que pode ser definido como “melodia acompanhada” e compõe-se basicamente de uma melodia principal acompanhada por uma base harmônica.

216

Sobre uma história da notação musical, ver GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da música

ocidental. 2 ed. Lisboa: Gradiva, 2000, p. 81 e segs. Sobre uma história do mapeamento ocidental, ver BLACK,

contraponto, tonalismo, atonalismo, dodecafonismo, serialismo, etc – vai de encontro a todos os seus preceitos estéticos e ideológicos.

A partir do momento que o Quinteto se nega a trabalhar com partitura, ele materializa a vontade do Armorial que sua música seja vista (e ouvida) como parte integrante de uma

paisagem nordestina. Quem quiser ouvir o Quinteto Armorial terá que ir aos recitais, terá que

visualizar a cultura dita do Nordeste, terá que ir “aonde o povo está”. Há uma nítida intenção de retorno à cultura da oralidade, a uma pretensa autenticidade da cultura dita popular dos cancioneiros nordestinos, donos de uma memória prodigiosa, capazes de recitar centenas de versos de cor. Em grande medida, portanto, essa negação em se trabalhar com as partituras revela um desejo profundo de ligar a música armorial à dita cultura popular oral nordestina, fazendo-a pertencer, através da sua divulgação pelo grupo nos seus recitais, a essa memória coletiva que se considera a memória do próprio povo nordestino e, através dessa, memória do próprio espaço imaginado Nordeste.

3 PAISAGEM SONORA: SONS DE NORDESTE NO MOVIMENTO