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1 O CANTO, A PEDRA E O REINO: METÁFORAS DE NORDESTE

1.4 A MÚSICA E A CONFIGURAÇÃO SONORO-IMAGINÁRIA DOS

1.4.1 Na trilha (sonora) do urbano

Alguma coisa acontece no meu coração que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João (Sampa, Caetano Veloso)

Na discussão, entre os historiadores, acerca do uso da música popular como fonte histórica - especificamente a canção, composta por verso e música, nas suas mais diversas variantes - cita-se por várias vezes a expressão música popular urbana. De forma geral, essa denominação serve aos autores que, em seus textos, desejam se referir ao imenso conjunto de gêneros musicais surgidos e “desenvolvidos” nos centro urbanos do país. Mas, além de seccionar um campo de estudo específico dentro do universo da música feita no Brasil,

música popular urbana designa um tipo de música produzida por um espaço – o meio urbano – e por isso relacionada ao que seria uma sonoridade específica desses lugares.

Apesar de apresentar um campo tão vasto para análises, como recorda José Geraldo Vinci de Moraes, “Somente nos últimos anos, houve certa multiplicação de pesquisas relacionadas direta ou indiretamente com a música e a canção popular urbana”99. Em grande parte, explica Moraes, esse fato justifica-se pela própria dificuldade dos historiadores não especializados em musicologia em lidar com os códigos e a linguagem musical, e, ainda, pela própria polissemia e instabilidade do conceito de “cultura popular”.100

No campo da assim chamada música popular urbana, um de seus mais assíduos pesquisadores, Marcos Napolitano, desenvolve seu estudo na perspectiva da elaboração de uma genealogia dos tipos de música produzidos no meio urbano, tecendo uma rede de relações de parentesco entre os mais variados gêneros musicais surgidos desde meados do século XIX, a partir da emergência de um meio e uma cultura urbana no Brasil.101 Dessa forma, Napolitano examina o que seria uma linha de evolução da música popular urbana brasileira, pensada em estreita ligação com o espaço em que foi produzida. Partindo dessa conjugação música-espaço, Napolitano deseja promover um “reconhecimento sociocultural” daquilo que se convencionou chamar de “música popular brasileira”, articulando produção musical e contexto histórico.

Examinando a produção cultural musical de várias de nossas “usinas sonoras” - São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará e demais regiões do país – Napolitano elege o Rio de Janeiro como cenário de encontro entre diversos materiais e maneiras de se fazer música. O recorte temporal entre o final do século XVIII e o início do século XIX aparece em sua obra como a data gênese da música urbana no Brasil, tendo as formas musicais conhecidas como a modinha e o lundu como sendo os ancestrais dos vários gêneros de música dita popular produzida no país. Desses viriam a surgir (ou se a eles se somarem) outras formas e gêneros musicais – alguns notadamente estrangeiros – tais quais o maxixe, a polca, o tango, o choro, o samba, dentre vários. Para Napolitano, a emergência de tais gêneros musicais está associada à configuração histórica e com o espaço em que foram idealizados. Trabalhando nesse sentido, diz Napolitano que

99

MORAES, José Geraldo Vinci de. A música popular na história. História Viva, São Paulo/Rio de janeiro, no.7, maio 2004.

100

Ver MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música: canção popular e conhecimento histórico. Revista

Brasileira de História, Anpuh, São Paulo, no

. 39, agosto 2000.

101

Ver NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

[...] na segunda metade do século XIX, a linha musical polca-choro-maxixe-batuque representava um mapa social e cultural da vida musical carioca: o sarau doméstico-o teatro de revista-a rua-o pagode popular-a festa na senzala. Muitas vezes, o mesmo músico participava de todos estes espaços, tornando-se uma espécie de mediador cultural fundamental para o caráter de síntese que a música brasileira ia adquirindo. Já os públicos eram bastante segmentados, seja por sexo, raça, condição social (segmentos médios ou populares) ou condição jurídica (livre/escravo).102 [Grifo meu]

Para Napolitano, à mistura de gêneros musicais está associada uma mistura de espaços, mais ainda, de pessoas, de tipos urbanos – o escravo, a dondoca, o boêmio, etc. A música funcionaria, dessa forma, como meio de expressão e de embate entre as mais variadas culturas e espaços. Também para esses, a música representaria um fechamento (ritornello) no qual manteriam os espaços, uma identidade, ainda que sonora, imaginária.

A metáfora, utilizada por Napolitano da linha musical produzida enquanto um “mapa” da vida social e cultural do Rio de Janeiro a partir de 1850 sugere uma relação entre a grafia do espaço urbano e a grafia da própria música e que, em grande medida, está em estreita relação com a proposta deste trabalho: a possibilidade de se pensar a música como constituinte de um imaginário espacial. A sugestão, nesse caso, seria a de uma equivalência entre a notação musical e o mapeamento do espaço urbano, como se fosse possível - no que parece acreditar Napolitano - visualizar na partitura de uma canção de meados do século XIX os influxos culturais dos mais díspares lugares da cidade, tais como a senzala, os terreiros, a praça pública, os salões de dança, os bares freqüentados pelos boêmios, etc.

Além disso, a música pensada como produtora de marcos espaciais possibilita uma melhor visualização da proposta armorial de escape a esse meio urbano e, ao mesmo tempo, de fechamento de um espaço rural idealizado. A música armorial idealizada pelo Movimento se prestaria, portanto, ao mesmo papel que, de acordo com os estudos recentes, a música popular urbana teria para com a constituição do imaginário espacial urbano, mas fazendo isso em seu pólo contrário, ou seja, em relação ao meio rural.

De certa forma, Napolitano, como outros historiadores da área, parte de um discurso pré-existente ao seu e que realiza essa ligação entre história da música e história social dos espaços. Discurso esse já identificável na sociologia de Gilberto Freyre, autor seminal para a discussão dos espaços enquanto produtores de identidades culturais, e um dos grandes inspiradores do pensamento armorial. Em sua obra Ordem e Progresso, Freyre diz:

A música, desde a sacra, de interior de igreja, à do largo de matriz, representada pela banda que tocava dobrados cívicos e até pela de africanos que nos sambas e

102

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005 , p. 46.

maracatus recordavam a África negra nas ruas do Rio de Janeiro ou do Recife ou de Salvador, acompanhava de tal modo o brasileiro no tempo do Segundo Reinado nas suas várias e contraditórias expressões de vida e de cultura, de algum modo harmonizando-as ou aproximando-as, que se pode afirmar ter se realizado então mais pelos ouvidos que por qualquer outro meio, a unificação desses brasileiros de várias origens em um brasileiro senão de um só parecer, quase de um só sentir.103

“Brasileiros de várias origens”, de vários espaços, recolhendo em si uma cultura própria, um imaginário fechado, “harmonizando-se” através da música, mistura de gêneros e sonoridades, um Brasil povoado por diversos brasis; inseminado, ao mesmo tempo, por África e Portugal; possuidor de uma imensa cultura híbrida, porém una exatamente por seu caráter mestiço: essa parece ser a idéia tomada e desenvolvida por Ariano na elaboração do pensamento armorial. E a música, ao menos em Freyre, pretende ser a matéria de expressão mais harmoniosa desses contrastes internos, aquela em que eles parecem se resolver e, por isso mesmo, a forma ideal do conceito de Ilha Brasil.

A mistura de tipos, representantes, por sua vez, de vários espaços, suscitada através da música é também apontada pelo musicólogo Edílson Vicente de Lima como explicação para a linha genealógica proposta por Napolitano e que ligaria numa espécie de linha evolutiva os vários gêneros e formas de música tida como popular e urbana. Examinando as possíveis origens dos gêneros da modinha e do lundu – apresentados por Napolitano como formas básicas a partir das quais se desenvolveu grande parte das canções brasileiras - Lima sugere que pensemos a mistura dos ritmos e formas como sendo um reflexo da mistura entre os diversos agentes sociais do meio urbano brasileiro que então se formava na passagem do século XVIII para o século XIX. Assim escreve Lima:

A convivência entre negros livres e cativos, a classe média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas musicais da recatada modinha, dando origem ao lundu-canção.104

Da mesma forma, José Geraldo Vinci de Moraes realiza em sua pesquisa uma espécie de mapeamento sonoro-musical da cidade de São Paulo no início do século XX. Tratando da cultura sambista e carnavalesca paulista, nas primeiras décadas do século, Moraes traça um paralelo entre o surgimento dos primeiros cordões carnavalescos e aquilo que considerou os espaços originais de criação e difusão do samba urbano paulista. Segundo Moraes, os cordões

103

FREYRE apud BASTOS, Elide Rugai. Ordem e progresso. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução

ao Brasil: um banquete no trópico vol 2. São Paulo: Senac, 2001, p. 370. 104

permaneceram inicialmente, década de 1910, “circunscritos aos bairros de maior concentração de negros”, para daí, na década seguinte, difundir-se pelas regiões mais centrais da cidade.105

À medida que o samba e o carnaval paulistanos iam conquistando seu lugar na vida cultural informal da cidade, também iam criando mais espaços para as suas atividades musicais. Salões e escolas de dança se multiplicaram durante a década de 1920, ficando muitos deles conhecidos como “salões de raça”, haja vista serem vistos como um espaço de lazer e experiências culturais e sociais dos negros. A música atuava, portanto, demarcando os espaços de cultura e de convivência social.106

A sonoridade urbana, algumas vezes, vinha estampada de forma quase caricatural quando, por exemplo, ouvia-se, em alguns locais considerados tradicionalmente como de concentração negra – Praça da Sé, Praça do Patriarca, Praça do Correio – os negros “sem qualquer instrumento, batucavam nas latas de lixo, nas caixas de engraxate e com as palmas das mãos”.107 Latas, lixo, caixas, engraxates, imagens ligadas a uma cultura urbana que, percutidos, tornam-se, agora, sons do espaço, dão uma audibilidade ao que antes era apenas uma visibilidade do cenário urbano, constituintes de um imaginário timbrístico espacial. Moraes ainda escreve que

O outro local de reunião de ‘sambistas de rua’ era a esquina da Av. São João com a Praça do Correio, voltada para o Vale do Anhangabaú, em meio aos bondes, buzinas e transeuntes apressados. Geralmente, esses grupos eram formados apenas de negros, que se agrupavam para tocar seriamente e cantar.108

À paisagem sonora de bondes e buzinas, juntavam-se os sons da música entoada pelos sambistas da Avenida São João: o samba passa a ser pensado como fazendo parte de uma

paisagem sonora urbana; e, nessa linha de pensamento, escutar o samba significa promover

um retorno ao ambiente em que ele foi criado – o meio urbano – espaço ao qual ele estaria irremediavelmente ligado através de um exercício de representatividade sonoro-espacial.

É exatamente aí, quando música e ruído se confundem, que a relação música-espaço está mais bem formulada, quando não se ouve diferença – na formação de um imaginário espacial – entre a paisagem sonora de um espaço qualquer – sons de buzina, bondes em movimento – e a música que é produzida em seu contexto cultural e histórico. É justa a forma de pensar essa relação, entre espaço e música que dá ensejo à elaboração de um discurso que

105

MORAES, José Geraldo Vinci de. Polifonia na metrópole: história e música popular em São Paulo. Revista

Tempo, Niterói, vol. 5, no. 10, p. 39-62, dez 2000. 106 Idem 107 Ibidem. 108 Ibidem, p. 55.

pretende conjugar sonoridade espacial e contexto histórico. Discurso do qual se apropriou o Armorial, reelaborando-o de maneira a produzir um imaginário sonoro para o Nordeste.

É importante perceber que enquanto no trânsito urbano entre as cidades Bahia-São Paulo-Rio de Janeiro se iniciava uma movimentação musical em direção à abertura a novos recursos expressivos (alguns, notadamente, inspirados na indústria cultural americana), em Recife, Pernambuco, Ariano preconizava suas idéias armoriais no campo da música, apresentando no Teatro Santa Isabel, já em 1946, com o devido apoio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife, o espetáculo “A Poética dos Cantadores Sertanejos” através do qual pretendia chamar a atenção para a dita “música feita pelo povo”, e trazendo para as grandes salas de concerto o timbre da viola sertaneja. O mesmo espetáculo viria a se repetir em novas edições.

Era o movimento inverso de fechamento – lembrar o conceito de ritornello de Deleuze e Guattari – da música tida como popular e nacional em busca de uma assim chamada “sonoridade nordestina”, imune aos influxos da cultura estrangeira. De certa forma, esse movimento contrário entre abertura-fechamento à influência européia e americana na música produzida pelo Brasil levaria aos extremos opostos em que se situariam, mais tarde, o tropicalismo e o Movimento Armorial.

Pensado assim, o discurso do Armorial foi construído no sentido de, por um lado, negar em sua música, que pretende ser uma autêntica música popular-erudita nordestina, toda e qualquer sonoridade tida como relacionada ao urbano, e, por outro lado, referendar a existência de uma sonoridade típica do Nordeste, cuja música considerada popular e nordestina reproduziria como que naturalmente através de seus cantadores e grupos musicais ditos populares.

O entendimento da assim denominada música popular urbana enquanto produção cultural do espaço cidade é importante para este trabalho na medida em que o Armorial representa justo uma linha de fuga dessa representatividade músico-espacial urbana. É, pois, pensando a sonoridade proposta por uma música que se diz, ao mesmo tempo, popular e urbana que a proposta de retorno ao rural ganha um novo ponto de vista. Além disso, interessa notar como o discurso armorial, construído no sentido da busca de uma música pretensamente autêntica do Nordeste, na verdade, em grande parte, apóia-se na idéia de constituição sonora dos espaços, ou seja, a música enquanto representação espacial autêntica.