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CAPÍTULO II RECONHECIMENTO, REIFICAÇÃO E

2.2 O não reconhecimento ou o outro que desaparece

Se até agora exploramos o reconhecimento recíproco, assim como o efeito positivo que proporciona aos indivíduos, permitindo sua autorrealização, é importante lembrarmos que, de forma inversa, o não reconhecimento também provoca impactos profundos na autorrelação e autoimagem dos indivíduos. Nesta seção, seguindo os passos deixados por Honneth, abordaremos as consequências da não efetivação desse sentimento de saber-se respeitado pelos parceiros de interação.

Esse fenômeno do reconhecimento recusado provoca feridas no autoentendimento positivo dos sujeitos, pois, como visto anteriormente, ele é elaborado a partir da interação com a figura do outro generalizado e uma vez que este não enxerga o parceiro como alguém digno de respeito e estima provoca uma série de sentimentos, movendo o indivíduo no sentido do desmonte de sua identidade pessoal.

O não reconhecimento pode apresentar-se também em três dimensões diferentes, atingindo a autorrelação prática em cada uma delas, tendo o efeito oposto ao da sua efetivação. Segundo Honneth (2003), é exatamente a não efetivação do respeito esperado o impulso necessário ao desencadeamento de conflitos sociais, quando eles são orientados na direção da restauração das expectativas frustradas, assim como na ampliação dos valores e características a serem reconhecidos como socialmente úteis.

Lembrando a primeira das três dimensões do reconhecimento anteriormente trabalhadas, as relações primárias – cujo laço afetivo entre mãe e bebê e o sentimento de cuidado e compreensão daí resultantes efetivam o amor como reconhecimento, o ser-consigo-mesmo no outro – proporcionam o desenvolvimento da autoconfiança na criança. De forma inversa, a agressão física, o abandono e outras formas de maus-tratos, rompem esse laço de confiança, ferindo o próprio entendimento da realidade social desse indivíduo. Explica Honneth (2003, p. 215):

Os maus-tratos físicos de um sujeito representam um tipo de desrespeito que fere duradouramente a confiança, aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo; daí a conseqüência ser também, com efeito, uma perda de confiança em si e no mundo, que se

estende até as camadas corporais do relacionamento prático com os outros sujeitos, emparelhada com uma espécie de vergonha social.

Dessa forma, perdemos a capacidade não só de confiarmos em nós mesmos, mas também nos outros, tornando inviável qualquer forma de acordo ou estabelecimento de padrões de reciprocidade como poderia imaginar-se, pois não acreditamos no cumprimento de qualquer acordo. É importante acrescentar que esse sentimento de vergonha social, oriundo da falta de confiança em si mesmo, repercute de forma direta na esfera pública, inibindo o indivíduo de participar, pelo medo das consequências de seus posicionamentos ou por acreditar na não relevância de seus pronunciados. De forma geral, se o amor e o cuidado ensinam a confiar, os maus-tratos e a negligência fazem o contrário.

Passemos agora à segunda forma de desrespeito, expresso na privação de direitos. Nessa, a exclusão social, assim como a limitação ou diferenciação de acesso às salvaguardas legais e constitucionais, subtrai dos sujeitos o sentimento de possuir igual valor aos demais parceiros da interação, rebaixando-o à condição de sujeito de valor menor ou, até mesmo, de não sujeito. Essa modalidade de não reconhecimento soa como uma afronta a imputabilidade moral do indivíduo que não é considerado no estabelecimento da vontade geral, sendo como se ele não possuísse os atributos necessários à participação na esfera pública das decisões:

Por isso, a particularidade nas formas de desrespeito, como as existentes na privação de direitos ou na exclusão social, não representa somente limitação violenta da autonomia pessoal, mas também sua associação com o sentimento de não possuir o status de um parceiro da interação com igual valor, moralmente em pé de igualdade; para o indivíduo, a denegação de preensões jurídicas socialmente vigentes significa ser lesado na expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral [...] (HONNETH, 2003, p. 216).

Repetindo a fórmula anterior, se a garantia de direitos universais responsáveis pela dignidade humana e a participação na constituição da vontade geral davam ao sujeito o sentimento de autorrespeito, a sua

negação proporciona-lhe o sentimento inverso. Honneth ressalta que, devido ao fato de essa forma de reconhecimento ser historicamente variável, a forma de desrespeito a ela relacionada não se refere somente à universalização de direitos, mas inclui o alcance de direitos materiais.

Quanto ao terceiro momento do reconhecimento (aquele vinculado à valorização dos atributos pessoais relacionados ao projeto de autorrealização dentro de um quadro cultural historicamente definido), a forma de desrespeito manifesta-se na desvalorização social, em que valores e características associados a determinados indivíduos ou grupos não são reconhecidos, possuindo, dessa forma, menos importância social.

A repercussão de tal fenômeno no plano das experiências individuais opera como se o sujeito soubesse que não encontrará solidariedade alguma para a realização do seu estilo de vida: “Portanto, o que aqui é subtraído da pessoa pelo desrespeito em termos de reconhecimento é o assentimento social a uma forma de auto-realização que ela encontrou arduamente com o encorajamento baseado em solidariedades de grupos” (HONNET, 2003, p. 218). Em outras palavras, o que é afetado aqui é a autoestima, pois sabe que não possui valor para a sociedade.

Assim como para as formas de reconhecimento, Honneth procura os desdobramentos psicológicos e sociais nos indivíduos nas referentes ao não reconhecimento. Afirma, então, que, de acordo com estudos com vítimas de torturas e maus-tratos, é comum o aparecimento da categoria

morte psíquica. Por sua vez os estudos direcionados à privação de

direitos o que temos seria a morte social e, por fim, o desrespeito a determinados estilos de vida acarretaria a vexação. Conclui Honneth (2003, p. 219-220), “[...] as reações negativas que acompanham no plano psíquico a experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base motivacional na qual está ancorada a luta pó reconhecimento”.

São exatamente essas experiências psíquicas a fonte desencadeadora das lutas sociais moralmente motivadas que fazem a ponte entre o sofrimento decorrente do desrespeito e a ação prática pelo estabelecimento de novos padrões éticos. Pois tais reações negativas trazem à tona para o indivíduo o sentimento de não reconhecimento, impulsionando-o na reversão dessa situação. Esse movimento teórico só é possível com o auxílio da categoria contrachoque25, desenvolvida por

25 O fracasso repercute nos indivíduos de duas maneiras. Quando é causado por uma limitação

Dewey, em que as experiências de fracasso dos indivíduos, quando provocadas pelo desrespeito a expectativas normativas socialmente legítimas, levam-nos a sentimentos como os anteriormente trabalhados por Honneth, gerando uma crise moral. Honneth, com base em Dewey, constitui duas formas de insucesso; enquanto uma delas acaba sendo internalizada pelo indivíduo como seu erro, a outra torna-se motivo de conflitos sociais:

Se as ações orientadas ao êxito fracassam nas resistências com que deparam imprevistamente no campo das tarefas vencidas, então isto leva a perturbações técnicas no sentimento amplo; em contrapartida, se ações dirigidas por normas ricocheteiam em situações porque são infringidas as normas pressupostas como válidas, então isso leva a conflitos morais no mundo da vida social (HONNETH, 2003, p. 222).

Enfim, se o fracasso foi motivado pela incapacidade do indivíduo em seguir uma determinada norma, ele a entende na forma de um sentimento de culpa. Mas, se o fracasso é o resultado do desrespeito da norma por parte de um parceiro de interação, gera-se uma indignação moral.

Contudo esse sentimento de sofrimento e a subsequente ação prática de restauração somente ganham a forma de ações coletivas, superando a experiência pessoal, quando existe um entorno político capaz de ampliar tal experiência, fazendo com que outros sujeitos entendam tal situação não como algo isolado, mas o resultado de uma injustiça generalizada. Sobre isto escreve Mattos (2006, p. 96), “[...] a condição para que questões privadas sejam publicizadas é que elas sejam passíveis de generalização. [...] O surgimento de movimentos sociais depende de uma semântica coletiva, isto é, de que a ofensa que eu sinto ressoe da mesma forma ou de forma parecida para outros sujeitos”. Portanto, a perpetuação dessas ações de não reconhecimento contribui na reificação de práticas em que o outro e o mundo são vistos com indiferença, de modo contemplativo, esquecendo-se, assim, o substrato moral necessário a integração/ transformação social. A seguir desenvolveremos com mais calma tal idéia.

dos parceiros de interação. As lutas por reconhecimento são desencadeadas em sua maioria por estes segundo fenômeno.