• Nenhum resultado encontrado

O NASCEDOURO DO MOVIMENTO DE PROMOÇÃO DA SAÚDE: O

1 POLÍTICA DE SAÚDE E PROMOÇÃO DA SAÚDE

1.4 O NASCEDOURO DO MOVIMENTO DE PROMOÇÃO DA SAÚDE: O

Antes de iniciarmos as discussões teóricas sobre nascimento do Movimento de Promoção da Saúde (MNPS) e, consequentemente, das críticas a ele colocadas, é importante situar rapidamente o cenário sócio-político do decênio em foco. Nele delineia-se uma forte crise estrutural do capitalismo, indicando o esgotamento dos “anos de ouro” do crescimento capitalista.

De acordo com Mota (2010), a crise contemporânea não se configura como setorial (comercial ou financeira), mas global, de caráter mundial. Citando Mandel (1990), a autora afirma que é uma crise das relações de produção capitalistas, assim como de todas as relações sociais burguesas, que se alia a uma retração duradoura do crescimento econômico, agudizado pelas flutuações conjunturais da economia.

Como estratégia para superação de tal crise, afirma Harvey (2006, p.117), delineia-se “uma transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social e política a ele associado”. Ou seja, o pacto keynesiano abre margem para a ideologia neoliberal; a financeirização se fortalece; o fordismo cede espaço à acumulação flexível com todas as suas consequências, inclusive as transformações no mundo do trabalho e na organização política dos trabalhadores.

A mundialização da crise faz com que não possa ser enfrentada setorialmente ou através de capitalistas individuais, requisitando para tanto a intervenção do Estado e das organizações internacionais (MOTA, 2010). Desta forma, entendemos que a organização estatal passa a ser um papel fundamental na criação de condições para a produção de superlucros.

Neste cenário uma das receitas amplamente divulgadas é o neoliberalismo, adotado como uma das estratégias de superação da crise econômica estrutural dos países capitalistas ocidentais, que propõe a retomada – com redefinições – de preceitos liberais no campo econômico, com reverberações no campo das políticas sociais. Tal ideário ganha força especialmente nos anos 1980 e 1990 nos países periféricos, porém também vem sendo o referencial de variadas contrarreformas atualmente em curso em diversos países da Europa.

Para Fontes (2010), no neoliberalismo o Estado não seria reduzido, mas “sarado”, enxuto de suas “gorduras” (que seriam os direitos sociais). Nesta perspectiva, se buscava

construir “(...) um Estado pitbull, com o fito de defender o capital frente a eventuais ameaças da população. Tratou-se, portanto, de fortalecer o Estado para sustentar o capital, reduzindo todas as adiposidades que representavam as conquistas populares” (FONTES, 2010, p.18).

Em tal contexto, os objetivos universalistas do Estado de Bem-Estar Social são frontalmente atacados, na defesa dos interesses do capital desregulado (PEREIRA, 2009). Destarte, as medidas de proteção social são comprimidas em nome da crescente elevação da taxa de juros – que fertiliza o sistema bancário e instituições financeiras - e da ampliação do superávit primário, conforme afirma Iamamoto (2009). Laurell (2008) identificou que as medidas neoliberais para o campo das políticas sociais são: corte nos gastos sociais estatais, com deliberado desfinanciamento das instituições públicas; incremento da demanda privada; esforços para garantir a obtenção de formas estáveis de financiamento dos serviços sociais privados (seja através da compra, com recursos públicos, dos serviços-benefícios do setor privado, seja pela via do incremento da indústria de seguros privados); centralização dos gastos sociais em programas seletivos para pobres.

Na análise de Neves e Sant’Anna (2005), a pedagogia da hegemonia do período neoliberal busca redefinir o padrão de politização fordista, processo que vem ocorrendo a partir de alguns movimentos: 1) manutenção de amplos setores da população no nível mais primitivo das relações de força, sem que tenha consciência de seus papéis sociais e políticos; 2) demolição ou redefinição dos aparelhos privados de hegemonia das classes subalternas, especialmente através da precarização das relações de trabalho e da desregulamentação dos direitos trabalhistas; 3) incentivo do Estado à ampliação dos grupos de interesses não relacionados diretamente às relações de trabalho; 4) papel dos organismos internacionais na difusão da nova hegemonia.

No campo da saúde, a pedagogia da hegemonia passa pela necessidade de controlar custos crescentes do modelo biomédico, que já vinham sendo criticados praticamente desde o início do século, como vimos. Surgem propostas de racionalização dos gastos de saúde que apregoam a necessidade de que o Estado assuma apenas “cestas básicas de serviços de saúde”, deixando ao mercado a resposta às demais necessidades de saúde (VASCONCELOS; SCHMALLER, 2011).

Laurell (2008) indica que, nesse período, acontece uma inovação no discurso das agências multilaterais, ao justificar a privatização e a retração do Estado como melhor caminho para se alcançar maior equidade.

Especialmente nos países centrais, as alterações resultantes da urbanização e do desenvolvimento econômico nos padrões de morbimortalidade populacionais se faziam sentir (SILVA JÚNIOR, 1998), com crescente destaque para as Doenças Não Transmissíveis (DNT).

Neste contexto, conforme apontam Vasconcelos e Schmaller (2011), existia a constatação de que os elevados custos da medicina curativa não se expressavam no aumento da qualidade de vida e saúde da população, sem contar que os serviços de saúde não estavam organizados para responder ao novo quadro sanitário. Isso por que

Grande parte das doenças modernas (cardiovasculares, tumores, enfermidades mentais, intoxicações forçadas ou voluntárias etc.) só é vulnerável às ações preventivas ou, pelo menos, a uma associação precoce entre higiene e terapia, enquanto a tendência espontânea – não apenas dos médicos, mas das pessoas, que percebem o mal apenas quando o organismo está manifestamente lesado – é para tratamentos amiúde tardios (BERLINGUER, 1988, p.21 - grifo do autor).

Num contexto de hegemonia da racionalidade biomédica, "a incorporação de alta tecnologia elevou progressivamente os custos dos procedimentos, conduzindo os sistemas de saúde dos países ocidentais a uma crise estrutural” (CZERESNIA, 2003b, p.9). Concomitantemente, segundo esta analista, expandiu-se a tendência de capitalização intensiva e ampliaram-se as despesas da assistência médica. Conforme indicamos anteriormente, isso ocorria em um momento no qual se apregoava a necessidade de redução dos gastos públicos com políticas sociais. A contraface de tal direcionamento seria a ampliação do espaço do setor privado na prestação dos serviços de saúde.

Neste cenário, instituições como o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio passaram a assumir o papel de “Ministério da Saúde” dos países periféricos nos anos 1980 e 1990 (MERHY; FRANCO, 2007). Assim, em suas recomendações de contenção de gastos públicos e focalização das políticas sociais, tais instituições apontam para a necessidade de divisão na prestação de serviços de saúde: os serviços de atenção básica versus os secundários e terciários.

Uma expressão disso, segundo Correia (2005a), é a ampliação da rede pública nos serviços de atenção básica, enquanto se restringe o acesso aos demais serviços, baseada no equivocado pressuposto de que entre a população pobre predominam as doenças infectocontagiosas (quando na verdade tal população também é vítima das doenças crônico- degenerativas), que não exigem uso de equipamentos dispendiosos e tratamentos sofisticados.

É importante situar que havia também outros vetores que colocavam em questão a racionalidade biomédica.

Diversos movimentos sociais, desde os anos 1960, lutavam por direitos sociais, pela libertação das colônias africanas e pela redemocratização dos países da Latino-América (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).

Neste cenário, as lutas populares reivindicavam o enfrentamento do agudizamento das desigualdades sociais, inclusive no campo da saúde (VASCONCELOS; SCHMALLER, 2011). Alguns movimentos criticavam as fragilidades do modelo biomédico, que seriam segundo Pasche e Hennington (2006), o distanciamento do compromisso com a qualificação da vida, expresso na medicalização e iatrogenia43; a precarização da clínica, cujo foco estava na

doença e não no sujeito portador de necessidades de saúde; o impacto pouco significativo das ações médicas na saúde da população, não obstante o florescente incremento das despesas na área; a dificuldades de acesso aos serviços de saúde; a submissão das necessidades sociais de saúde à lógica e à dinâmica do mercado e do consumo.

Berlinguer (2007) evidencia que, neste processo, teve importante contribuição o desenvolvimento de programas de saúde comunitários com foco na prevenção e na participação comunitária. Segundo este autor, as experiências de Sri Lanka, de Costa Rica e de Cuba, com baixo custo e com importantes impactos na saúde da população, mostravam que os níveis de saúde podem melhorar também onde a renda per capita não é elevada, desde que haja empenho do Estado e da população e adesão dos profissionais de saúde à criação de serviços difusos, qualificados e acessíveis, a disseminar educação de base e a enfrentar as raízes sociais das doenças.

Estas influências vão desembocar no surgimento da Medicina Social Latino Americana       

43 Em todas as suas consequências (como procedimentos prescindíveis, consumo exagerado de medicamentos, não

(no lastro da corrente com mesmo nome que existia no século XIX na Europa, sobre a qual já tratamos), bem como na Reforma Sanitária Brasileira, esboçando críticas à racionalidade biomédica.

Os estudos sobre a determinação social do processo saúde e doença, sob a influência das ciências sociais referenciadas no marxismo, punham em relevo as limitações da lógica explicativa das endemias e epidemias com base na dinâmica específica dos micro-organismos (CAMPOS, 2005). Denunciavam que as condições sanitárias estavam associadas às condições de vida e trabalho. Neste sentido, defendiam que a melhoria da saúde da população necessariamente deveria passar pela superação das desigualdades sociais em geral.

Desse modo, é em um cenário marcado, de um lado, por reivindicações por mudanças no modelo sanitário e, por outro, pela proliferação de recomendações de corte nos gastos de públicos e de enxugamento do Estado no que tange às políticas sociais, que emergem com forte tonalidade proposições que questionam o modelo biomédico e vão contribuir para a tessitura da NPS.