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3 SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE

3.2 O SERVIÇO SOCIAL COMO PROFISSÃO

A priori é relevante situar que a concepção aqui adotada está baseada no Projeto Ético- Político (PEP) do Serviço Social, referencial crítico que emerge o contexto da luta pela redemocratização do país, representando uma crítica sistemática ao Serviço Social “tradicional” e aos seus fundamentos teórico-metodológicos e ideopolíticos, implicando uma tentativa de ruptura com o conservadorismo. A construção do PEP significa a explicitação do compromisso da categoria com os valores emancipatórios e com a transformação social.

Esse processo resultou na redefinição de seus referenciais normativos (o Código de Ética, de 1993; a Lei de Regulamentação da profissão, do mesmo ano; e as Diretrizes Curriculares da ABEPSS, de 1996); na busca da requalificação do trabalho do(a) assistente social; no redirecionamento da formação profissional; no amadurecimento da pesquisa e da produção de conhecimentos; bem como em uma nova legitimidade junto aos usuários e movimentos sociais.

O Serviço Social é considerado uma profissão104, ou seja, uma especialização do

trabalho coletivo, no interior da divisão social e técnica do trabalho (NETTO, 2006), com estatuto jurídico reconhecido inicialmente através da Lei 3.252/1957 e atualmente referendado na Lei 8.669, de 17 de junho de 1993.

O significado do surgimento dessa profissão - enquanto parte das estratégias de enfrentamento das múltiplas expressões da questão social, no alvorecer da era dos monopólios (NETTO, 2001) - está associado à (re)produção das relações sociais, ou seja, com a reprodução tanto da vida material e do modo de produção, quanto das formas de consciência e modo de vida na sociedade, atuando em diversificadas situações sociais que afetam as condições de vida da população (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985; YASBEK, 2008). Neste sentido, a função social do Serviço Social remete às políticas sociais: seu espaço ocupacional é preponderante na       

104 É pertinente indicar, ainda que ultrapasse o escopo desse trabalho tal discussão, que há uma grande

heterogeneidade na terminologia adotada pelos autores para aludir ao exercício profissional: alguns utilizam o termo prática, como Guerra (2009); outros optam por ação profissional, a exemplo de Mioto (2007); outros, como Iamamoto (1998; 2009), defendem o termo trabalho, destacando que o uso deste em lugar de prática profissional não indica uma simples mudança de terminologia, mas a ultrapassagem de uma concepção que se referia exclusivamente à atividade do assistente social, como se os componentes desse exercício profissional (a dinâmica institucional, as políticas sociais, etc.) tivessem com ele uma relação de externalidade; já analistas como Lessa (2007) questionam tal uso do conceito de trabalho, trazendo à tona uma polêmica discussão. Aqui utilizaremos de forma indistinta os termos exercício profissional e trabalho.

execução das mesmas, o que faz com que contenha, como marca de sua constituição, “uma dimensão de interferência imediata no real, de ação na sociedade” (IAMAMOTO, 1992, p.194 – grifos nossos).

Segundo esta autora, o fato de que, apesar dos serviços sociais serem o suporte material e as entidades se constituírem na base organizacional que condicionam e possibilitam a atuação profissional, o trabalho do(a) assistente social assume muito mais o caráter de uma “ação global de cunho socioeducativo ou socializadora, voltada para mudanças na maneira de ser, de sentir, de ver e agir dos indivíduos, que busca a adesão dos sujeitos; incide tanto sobre questões imediatas como sobre a visão de mundo dos clientes” (IAMAMOTO, 1992, p.101).

Sobre essa dimensão pedagógica do exercício profissional do(a) assistente social, Abreu (2004) traz interessantes reflexões. Ela parte da afirmação de Gramsci (1978, apud ABREU, 2004, p.45) de que “toda relação de hegemonia é eminentemente pedagógica”, donde supõe a associação das relações pedagógicas à luta pela hegemonia como um componente relevante no processo de formação da cultura.

Isto é, as relações pedagógicas fazem parte do nexo orgânico entre a racionalização da produção e do trabalho e a organização da cultura, mediante o qual são articulados os interesses econômicos, políticos e ideológicos, plasmando subjetividades e normas de condutas individual e coletiva, elementos moleculares de uma cultura (ABREU, 2004, p.45). Neste sentido, de acordo com a analista em foco, o Serviço Social se inscreve nos processos de organização/reorganização da cultura e se configura enquanto uma profissão de cunho educativo, estando o exercício profissional implicado com o processo de construção da hegemonia ou de uma contra-hegemonia.

É importante lembrar que a função pedagógica do Serviço Social tradicionalmente esteve associada a propostas subalternizantes, aglutinadas em torno de vertentes que Abreu (2004) denomina de pedagogia da “ajuda” ou da “participação”105. Contudo, a partir da

      

105 Segundo Abreu (2004, p.52), a pedagogia da “ajuda” e da “participação” estão relacionadas à ideologização da

assistência como “assistência educativa”, com propensão à fetichização dessa forma de intervenção. “Tais estratégias pedagógicas tendem a dissimular as formas de reprodução do trabalhador nos limites precários da política social, portanto deslocadas das relações salariais, limites esses impostos pelas necessidades de reprodução do capital e do seu controle sobre o trabalho, e, consequentemente, da manutenção deste mesmo trabalhador e sua família em permanente estado de necessidade em relação aos meios de subsistência física. Estas propostas pedagógicas consubstanciam-se numa visão psicologista da questão social como questão moral, reforçam no

tessitura do PEP, a profissão vem buscando contribuir para a construção de uma pedagogia emancipatória pelas classes populares106, para usar a expressão da autora mencionada.

Tais propostas traduzem modalidades de assimilação/recriação pela profissão das referências educativas presentes no movimento político-cultural da luta pela hegemonia, bem como revelam formas de inserção dos assistentes sociais em processos diferenciados de organização da cultura, que são também indicativas da própria cultura profissional. Demarcam perfis pedagógicos da prática profissional que não constituem, portanto, exclusividades do Serviço Social e nem recortes que se sucedem na historia da profissão (ABREU, 2004, p. 46).

É válido mencionar que, apesar de oficialmente regulamentada como profissão liberal, a inserção do(a) assistente social no mercado predominantemente ocorre através do assalariamento. Dessa maneira, seu trabalho possui valor de uso e valor de troca, estando inserido, portanto, nos dilemas da alienação e determinações sociais que marcam a coletividade dos trabalhadores, e inscrito nas tensões entre o direcionamento que se deseja imprimir ao trabalho concreto e os constrangimentos do assalariamento (IAMAMOTO, 2009).

Não obstante, conforme assinala a analista citada (2007a), a possibilidade de imprimir direção social ao trabalho profissional é decorrente da relativa autonomia que o(a) assistente social possui (respaldada pela legislação profissional), cuja concretização depende da correlação de forças econômicas, políticas e culturais, dos diferenciados espaços ocupacionais, envolvendo relações com os sujeitos sociais, contribuindo seja para uma pedagogia tradicional, seja para uma pedagogia emancipatória pelas classes subalternas (ABREU, 2004). Nesse sentido, “as       

âmbito da reprodução a mediação individual nas respostas oficiais de enfrentamento da questão social, contribuindo para a fragmentação e dispersão das lutas sociais do trabalhador”.

106 A autora citada afirma que a pedagogia emancipatória pelas classes subalternas possui a participação como um

eixo central da luta por uma nova hegemonia, “(...) que se traduz, principalmente, em dois processos complementares: a politização das relações sociais e a intervenção crítica e consciente na sociedade, processos que constituem a referência material das relações pedagógicas na perspectiva da formação de uma nova superior cultura” (ABREU, 2004, p. 55). É importante destacar que, de acordo com analista em tela, o compromisso profissional com as lutas das classes subalternas agrega duas direções, que nem sempre se excluem: “(...) uma que limita os compromissos profissionais com as lutas das classes subalternas pela defesa dos direitos civis, sociais e políticos, da democracia e justiça social, portanto no horizonte das conquistas que consubstanciaram a experiência do chamado Estado de bem-estar, horizonte este que se colocou tardiamente nas lutas sociais dessas classes, cuja culminância é a inserção de suas demandas na Constituição Federal como direitos; horizonte este tido muitas vezes como o fim último da intervenção profissional. A outra direção enfatiza o compromisso profissional com as lutas sociais da classe trabalhadora, que apontam para a superação da ordem burguesa e a construção de uma nova sociedade – a socialista -, a qual incorpora a luta por direitos como uma mediação no processo mais amplo da luta emancipatória da sociedade capitalista” (ABREU, 2004, p. 57).

necessidades e aspirações dos segmentos subalternos, a quem o trabalho do assistente social se dirige predominantemente, podem potenciar e legitimar os rumos impressos ao mesmo, na contramão das definições ‘oficiais’” (IAMAMOTO, 2009, p.353).

Cumpre lembrar que o(a) assistente social geralmente não efetua sua atuação de maneira insulada, mas como parte de um trabalhador coletivo, já que, de acordo com Iamamoto (2007a), se insere entre as especializadas acionadas de forma conjunta para realizar os objetivos das instituições empregadoras, cuja resultante é um trabalho coletivo ou cooperado (IAMAMOTO, 2009).

Nesse contexto, os espaços institucionais nos quais os profissionais estão inseridos são refratados por distintos e antagônicos interesses, que envolvem os conflitos entre as classes fundamentais e as relações destas com o Estado.

Esses distintos espaços são dotados de racionalidades e funções distintas na divisão social e técnica do trabalho, porquanto implicam relações sociais de natureza particular, capitaneadas por diferentes sujeitos sociais, que figuram como empregadores (o empresariado, o Estado, associações da sociedade civil e, especificamente, os trabalhadores). Elas condicionam o caráter do trabalho realizado (voltado ou não à lucratividade do capital), suas possibilidades e limites, assim como o significado social e efeitos na sociedade (IAMAMOTO, 2009, p.19).

Vale registrar que, embora não tenha surgido como um ramo do saber no quadro da divisão do trabalho entre as ciências (IAMAMOTO, 1992), com o processo de amadurecimento teórico e político vivenciado nos últimos decênios a partir da tessitura do PEP, o Serviço Social deixou de se constituir em um “mero desaguadouro” das reflexões tecidas pelos cientistas sociais, para usar a terminologia de Netto (2001), e passou a produzir conhecimentos teóricos, o que resultou numa nova relação dos assistentes sociais com as ciências humanas e sociais.

Sposati (2007) mostra que, atualmente, é consensual a compreensão de que, no Brasil, o Serviço Social produz conhecimentos que ultrapassam as respostas práticas a diversas questões. Assim, como mostram Mota (2009b) e Netto (2006), o Serviço Social brasileiro, nos últimos anos, se constituiu enquanto uma área de produção de conhecimentos107, apoiada por

      

107 Nesta perspectiva, Mota (2009b) argumenta que, enquanto profissão, o Serviço Social brasileiro tem

produzido conhecimentos a partir da prática e em relação mais direta com ela; já enquanto área de produção de conhecimento, sua existência tem relação com a conformação da pós-graduação na área, cuja produção teórica

agências públicas de fomento à pesquisa, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

É importante demarcar também que, nas últimas décadas, assistentes sociais tem se inserido em espaços que extrapolam a execução terminal de políticas sociais, como o campo da gestão, formulação e assessoria das referidas políticas, especialmente a partir dos processos de descentralização e municipalização resultantes da nova lógica federativa decorrente da Constituição Federal de 1988.

Vale considerar que o terreno sócio institucional no qual se processa o trabalho do assistente social envolve instituições estatais (abrangendo as esferas executivas, legislativas e judiciárias), empresas privadas, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, e assessoria a organizações e movimentos sociais, conforme a analista referida. Tais instituições podem estar envolvidas com as mais diversas políticas setoriais, como educação, assistência social, previdência social, saúde, entre outras. Neste sentido, evidentemente, as competências e atribuições profissionais em cada espaço ocupacional possuem particularidades, apesar de possuírem traços semelhantes. Neste sentido,

(...) os processos de trabalho nos quais os assistentes sociais se inserem possuem especificidades e diferenciam-se de instituição para instituição, razões que demandam dos profissionais apreender as suas particularidades, principalmente tendo como referência as relações estabelecidas no mundo do trabalho (NICOLAU, 2001), que “em circunstâncias diversas, vão atribuindo feições, limites e possibilidades ao exercício da profissão” (IAMAMOTO, 2001, p. 106) (CASTRO; OLIVEIRA, 2011, p.27).

Em relação ao exercício profissional desenvolvido pelas/os assistentes sociais, compreendemos, com Soares (2010a), que sua configuração está relacionada às demandas institucionais, às demandas dos usuários dos serviços, assim como à relativa autonomia

      

nem sempre tem relação direta com o exercício profissional, embora se debruce sobre questões fundamentais para entender a realidade social. Sendo assim, prossegue a analista, embora esse tipo de conhecimento, através de uma série de mediações, possa ter implicações na atuação do(a) assistente social, ele não se limita à intervenção ou à obrigação de se constituir em conhecimento “aplicável”. Nesse sentido, a produção teórica do Serviço Social no país, hoje, não diz respeito diretamente apenas ao “fazer” profissional, mas abrange os elementos implicados no mesmo, como as relações sociais, a questão social, as políticas sociais, entre outros.

profissional, assim como, acrescentamos, é norteado pelos projetos profissionais108 e societários

abraçado pelas/os profissionais.

Atualmente se concebe que o trabalho do(a) assistente social, embora possua um perfil interventivo, não é meramente técnico, mas sim composto de uma unidade indissociável entre as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa, ou seja, é formada pelo “nó”, pela unidade (consciente ou não para o(a) assistente social) entre estas diferentes dimensões.

Assim, enquanto a dimensão política da prática encontra-se imbricada nos objetivos e finalidades das ações, principalmente nas possibilidades de interferir nas relações e situações geradoras das desigualdades e nos mecanismos institucionais para elas voltados; a dimensão ética reclama por princípios e valores humanos, políticos e civilizatórios; e a dimensão prático- operativa109 consiste na capacidade de articular objetivamente os meios

disponíveis e os instrumentos de trabalho para materializar os objetivos com base nos valores (MOTA, 2003, p.11).

Em outros termos, as ações profissionais se constituem nos “(...) fundamentos teórico- metodológicos e ético-políticos em ato” (MIOTO; NOGUEIRA, 2009, p.234).

Destarte, o perfil do(a) assistente social já não seria (conforme os projetos conservadores que marcaram a história da profissão) um(a) técnico(a) treinado(a) para intervir com eficácia, mas “um intelectual que, habilitado para operar numa área particular, compreende o sentido social da operação e a significância da área no conjunto da problemática social” (NETTO, 1996, p.126 – grifo original).

Nesta concepção, a pesquisa é tida como um dos elementos constitutivos do trabalho profissional, percebida como indispensável no desenvolvimento das competências e atribuições profissionais. Em outras palavras, “na relação dialética entre investigar e intervir, desvelando as       

108 Quanto a estes, Netto (2006, p.98) afirma que refletem “a imagem ideal da profissão, os valores que a

legitimam, sua função social e seus objetivos, conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas e etc.”. Como afirma Montaño (2006), um projeto profissional não é algo isolado, mas necessariamente inspirado e articulado com projetos societários, numa clara dimensão política, que possui conexões com a busca e a manutenção da hegemonia, processo sobre o qual dissertamos no capítulo precedente.

109 É importante mencionar, conforme discorre Santos (2006), que a dimensão técnico-operativa resulta das

outras duas: ao se definir os meios para se alcançar a finalidade posta, é fundamental que se tenha clareza do pôr teleológico, dos valores que o impregnam e daqueles que norteiam a direção teórica adotada. Assim, a dimensão técnico-operativa não pode ser tratada de maneira descolada das dimensões teórico-metodológica, ético-política e investigativa e a escolha do “como fazer” deve ser realizada a partir das demandas postas ao Serviço Social; do resultado da análise da realidade; da intencionalidade do profissional e da direção social impressas pelos sujeitos profissionais (SANTOS, 2006).

possibilidades de ação contidas na realidade, os conhecimentos teórico-metodológicos, os saberes interventivos e procedimentais110 (...) constituem-se componentes fundamentais”

(GUERRA, 2009, p.701) para o exercício profissional do(a) assistente social.

Como nosso interesse é o Serviço Social no campo da saúde, é nesse universo que adentraremos nesse momento, tratando inicialmente acerca das profissões sanitárias.