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O neoconstitucionalismo: principais aspectos para uma nova compreensão

também grande utilidade para a compreensão da estrutura lógica dos princípios jurídicos consoante às premissas neoconstitucionais.

Por último, a terceira classificação é aquela que maior atenção merece nesse estudo, na medida em que, pautando-se nos pressupostos neoconstitucionais, classifica as normas jurídicas em regras e princípios. A proeminência desta classificação para este trabalho se revela ao passo em que se busca desvendar o tratamento conferido pela Constituição de 1988 à legalidade, de modo que se conclua se tratar ou não de norma jurídica e, nesse caso, se deve ser classificada como norma ou princípio jurídico e, por conseguinte, se pode ser submetida ao método de ponderação de aplicação do Direito.

Nesse sentido, para uma mais acurada assimilação desta última classificação, a ser desdobrada ao longo de todo este estudo, importante o aprofundamento da contextualização histórica e dogmática que acarretou no surgimento de correntes do pensamento jurídico não mais satisfeitas com os dogmas positivistas.

2.2 O neoconstitucionalismo: principais aspectos para uma nova compreensão de normas jurídicas

No cenário já apresentado de formação do Estado Democrático de Direito, mormente no período subsequente à Segunda Guerra Mundial, verificou-se, especialmente em resposta às atrocidades cometidas sob a justificativa de se estar dando cumprimento à lei, um movimento de superação do positivismo até então dominante, tendo como ponto de partida o reconhecimento de que o Direito não surge no mundo por si só, mas está indissociavelmente relacionado com valores que lhes são prévios e com ideais de justiça derivados da experiência civilizatória dos povos.8 De acordo com Ana Paula de Barcellos, a reação que se buscava pôde ser notada nos futuros textos constitucionais, onde restaram expressamente fixadas decisões políticas do constituinte acerca de valores fundamentais orientadores da organização política, bem como os objetivos a serem perseguidos pelo Estado para a realização de tais valores. 9

O principal marco no desenvolvimento deste novo Direito Constitucional é a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, com especial destaque para a criação do Tribunal

7 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. op. cit., p. 185

8 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de janeiro: Renovar, 2002, p. 23-24.

9Idem, p. 24.

Constitucional Federal. A partir daí se inicia uma fecunda produção doutrinária e jurisprudencial a influenciar todo o Direito Constitucional no âmbito dos países de tradição romano-germânica. Outras importantes referências são a Constituição italiana de 1947 e, ao longo da década de 70, a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal, 1976, e da Espanha, 1978.10

No Direito brasileiro, esse novo olhar para o Direito Constitucional também ocorre com a redemocratização, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, em especial mediante a inclusão de um largo catálogo de direitos fundamentais e diversos princípios jurídicos, exigindo-se “a criação de uma nova categoria para descrever, compreender e melhor operacionalizar a aplicação efetiva dos materiais normativos positivados em nossa Constituição Cidadã”. 11

A Constituição deixa então de ser concebida como um texto a ser simplesmente considerado pelo legislador em suas decisões, passando a atuar como um efetivo “programa positivo de valores”.12

Essa incorporação de conteúdos substantivos na Constituição acarreta uma nova forma de enfrentamento da relação entre Direito e moral, eis que os princípios constitucionais, assim concebidos, provocam uma penetração moral no Direito positivo.13Da correlação entre o Direito e a moral se conclui que o marco filosófico do pós-positivismo é justamente a confluência das duas grandes correntes do direito com paradigmas opostos: o jusnaturalismo, fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, e o positivismo, voltado à objetividade científica e que equipara o Direito à lei. Enquanto o Direito natural, ao ser considerado anticientífico e metafísico, foi relegado pela cientificidade proposta pelo Direito positivo, este último deixou de se preocupar com a legitimidade e a realização de justiça, o que levou às barbáries cometidas no fascismo na Itália e no nazismo na Alemanha, que se utilizaram do discurso da legalidade para fundamentar suas ações.14A solução, assim, consistiu na constitucionalização dos direitos, apartando-se tanto da concepção de lei em seu sentido propugnado pelo positivismo, como das ideias concebidas

10 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: QUARESMA, Regina [et. al.] (Coord.). Neoconsitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, p. 53.

11 MAIA, Antonio Cavalcanti. As transformações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo. In: QUARESMA, Regina [et. al.] (Coord.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro:

Forense, p. 6.

12 ARIZA, Sastre. Ciência jurídica positivista y neoconstitucionalismo. Madrid: McGraw Hil, 1999, p. 130.

13 MAIA, Antonio Cavalcanti. As transformações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo. op. cit., p. 6.

14 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. op. cit., p. 53.

pelas vertentes jusnaturalistas, podendo-se destacar dessa confluência uma peculiar caracterização da referida constitucionalização: uma não fácil, mas possível, conciliação entre os direitos voltados à liberdade e os direitos voltados à Justiça.15

Nesse contexto de superação do jusnaturalismo e fracasso político do positivismo, abre-se espaço para a concepção pós-positivista do Direito, que, em linhas gerais, busca ir além da legalidade estrita, porém, mediante uma leitura moral do direito, sem desprezar o direito posto.16

A correlação entre Direito e moral requer uma pluralidade de valores e princípios, sem que haja valores absolutos, mas sim uma coexistência entre eles. Segundo Gustavo Zagrebelsky, somente tem caráter absoluto o que ele considera ser o metavalor de uma sociedade pluralista, a saber, uma pluralidade de valores – aspecto material –, que para conviverem exigem um leal enfrentamento entre si – aspecto procedimental. Essa é a ideia de ductilidade constitucional defendida pelo jurista, consistente em uma convivência entre os diversos valores, sem que prevaleça uma relação de exclusão e imposição pela força, mas sim uma relação inclusiva de integração mediante uma rede de valores e procedimentos comunicativos.17

Com singular clareza, Luis Prieto Sanchís enuncia três principais consequências da conexão entre Direito e moral. De acordo com a primeira, a validade da norma, mais do que depender de sua adequação formal e material com a Constituição, depende de uma consistência prática com esse horizonte de moralidade, a ser verificado pela argumentação constitucional. A segunda implica em uma renovada compreensão da Teoria do Direito e da Interpretação, de sorte que o jurista deve estar comprometido com o papel construtivo do Direito, deixando de atuar apenas em busca de sua mera descrição. Por fim, estando o Direito diretamente relacionado com a moral, os valores morais acabam por tornar mais vigorosa a necessária obediência às normas jurídicas.18

A onipresença e aplicação direta da Constituição, juntamente com a aludida pluralidade de valores nela positivados, modifica a própria compreensão do método de aplicação do Direito. Isso porque, os princípios jurídicos, por possuírem diferentes pesos, requerem aplicação diversa da subsunção, entendida esta como a identificação dos fatos às hipóteses e a imputação dos efeitos associados a elas no consequente normativo, sendo a

15 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. op. cit., p. 68.

16 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. op. cit., p. 54.

17 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. op. cit., p. 14-15.

18 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucionaly derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trota, 2003, op.

cit., p. 103-104.

ponderação, compreendida como o sopeso dos valores constitucionais em vista das situações fáticas e jurídicas postas, o método adequado para sua aplicação.19Esse modelo, pautado em uma ordem objetiva de valores diretamente aplicáveis, a exigir ponderação dos aplicadores do Direito, agentes estatais e particulares, é o que se passou a denominar de neoconstitucionalismo.20

Para Susanna Pozzolo, crítica desse movimento, a expressão neoconstitucionalismo busca designar uma noção de Constituição fortemente substancial, que atua como um programa de finalidades e que exige a técnica da ponderação, de modo a retomar os vínculos entre Direito e moral.21

Pode-se, assim, destacar como aspectos centrais deste novo constitucionalismo a atribuição de normatividade aos princípios e a formação de uma nova hermenêutica constitucional pela reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica.22Como Teoria do Direito, Luis Prieto Sanchís assim resume suas principais características:

Mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, no lugar espaços isentos em favor da opção legislativa ou regulamentar, onipotência judicial no lugar de autonomia do legislador ordinário; e, por último, coexistência de uma constelação plural de valores, às vezes com tendências contraditórias, no lugar de uma homogeneidade ideológica em torno de um punhado de princípios coerentes entre si e em torno, sobretudo, às sucessivas opções legislativas.23

Em artigo sobre o debate travado entre Luis Preto Sanchís e Juan Antonio Garcia Amado, Carlos Bernal Pulido destaca as premissas que considera fundamentais desta teoria: o denso conteúdo substantivo da Constituição; a onipresença da Constituição, dotada de direitos fundamentais que irradiam por todo o sistema jurídico; a abertura constitucional e a possibilidade de sua interpretação por todos os operadores, e não somente pelo legislador; a aplicação da Constituição mediante a ponderação; a existência de um modelo argumentativo de relação entre a Constituição e as leis, de tal forma que inexiste questão jurídica que não

19 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de Direito Administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros.

p. 14-15.

20 Idem, p. 15.

21POZZOLO, Suzana. Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da Constituição.

Revista Brasileira de Direito Constitucional – n. 7 – jan.--jun. 2006 – v. I, p. 231-253.

22 MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de Direito Administrativo neoconstitucional. op. cit., p. 54.

23 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales, op. cit., p. 104.

possa ser constitucionalizada, descartando-se a inexistência de um mundo político apartado da influência constitucional.24

Nesse mesmo artigo, Carlos Bernal Pulido um dos principais precursores do neoconstitucionalismo, ao lado de juristas como Jan-R Sieckmann, Martin Borowski, Luis Prieto Sanchís e Carlos Santiago Nino, ao reconhecer que a expressão neoconstitucionalismo concentra e ideia de diferentes autores, inclusive com posicionamentos divergentes entre si, elege três pontos que entende refletir os aspectos primordiais do neoconstitucionalismo. O primeiro deles se refere à compreensão da Constituição como entidade linguística e a ideia de que as disposições constitucionais estabelecem princípios no sentido de mandamento de otimização, conforme concebido inicialmente por Robert Alexy que se aplicam pelo método da ponderação. O segundo é o de que os direitos fundamentais são princípios e, portanto, também aplicáveis pela ponderação.25 Por fim, destaca a racionalidade da aplicação do Direito pela ponderação, sendo este o método mais adequado para se alcançar uma solução com a necessária objetividade – sendo utópico o alcance de uma perfeita objetividade – mediante um procedimento prático de raciocínio jurídico pautado na argumentação.26

A partir deste breve panorama histórico e dogmático do neoconstitucionalismo, imperiosa uma mais detida diferenciação entre regras e princípios como espécies normativas e, por conseguinte, dos métodos próprios de aplicação de cada um deles.