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Relação lei e regulamento, fundamento e competência

4 A REALIZAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO PELA ADMINISTRAÇÃO

5.2 O Regulamento no ordenamento jurídico brasileiro

5.2.1 Relação lei e regulamento, fundamento e competência

Viu-se que pelos princípios da legalidade administrativa, e seus corolários princípios da primazia e da reserva de lei, que, independente da extensão que se imprima ao critério para distinguir o conteúdo a ser disciplinado por lei ou por regulamento, não se tergiversa sobre a existência desse delimitador constitucional que, em vista das próprias concepções de Estado de Direito, separação de Poderes e legalidade, conferem às leis, a priori, a competência para inovar na ordem jurídica, estabelecendo direitos e deveres, e aos regulamentos editados pelo Executivo a competência para regulá-la, se necessário. Tal como pontuado por Seabra Fagundes ao comparar as características normativas da lei e do regulamento, não obstante a similitude dos aspectos de generalidade e abstração de ambos, o regulamento se distancia da lei ao não impor inovação na ordem vigente, não lhe cabendo alterar situações jurídicas, mas apenas “pormenorizar as condições de modificação originária de outro ato (a lei)”.33

32“Trata-se de subsunção, ou seja, diante da instituição de crimes ou tributos incide, inevitavelmente, a regra:

exige-se o veículo lei.” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. op. cit., p. 72).

33FAGUNDES, Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, op. cit., p. 24.

Ocorre, porém, conforme já advertia Rui Barbosa, que os limites de atuação do legislador e da Administração na atividade de normatização nem sempre são tão claros assim:

[…] a Constituição nitidamente separa da função de legislar a de regular, cometendo cada uma, como primitiva, a um só poder. Mas as duas, verdade seja, não se podem considerar substancialmente distintas e rigorosamente delimitáveis. Do regular ao legislar, do legislar ao regulamentar, nem sempre são claras as raias. Entre as duas competências medeia uma zona de fronteira indecisa, mista, porventura comum, em que ora as leis regulamentam, ora os regulamentos legislam.34

Sem que se permita uma confusão entre o legislar e o regulamentar, a advertência ora destacada deve ser compreendida como a dificuldade prática que muitas vezes se impõe para se verificar se determinado conteúdo regulamentar está ou não a extravasar os limites estabelecidos pela Constituição, e a que deve ficar adstrito, sendo inconteste que eventual expansão de fronteiras o tornará desconforme ao Direito. A não admissão desta invasão de competências normativas foi assim anotada por Pontes de Miranda:

Se o regulamento cria direito ou obrigações novas, estranhas à lei, ou faz reviverem direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações ou exceções, que a lei apagou, é inconstitucional. Por exemplo: se faz exemplificativo o que é taxativo, ou vice-versa. Tão-pouco pode ele limitar, modificar ou ampliar direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações ou exceções. Não pode facultar o que na lei se proíbe, nem lhe procurar exceções à proibição, salvo se estão implícitas.35

Em vista dessas considerações preliminares, mormente das mencionadas distinções entre o conteúdo e a competência para edição de leis e regulamentos, a serem aprofundadas, para uma compreensão mais precisa da figura do regulamento deve-se observar, consoante os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, que, na verdade, não se trata este de um nomen juris, que “isola com precisão uma categoria de atos uniformes”, mas sim de um designativo que “em diferentes países e em diferentes épocas, tem servido para recobrir atos de virtualidade jurídicas distintas e nem sempre oriundos de fonte normativa equivalente”.36 Nesse passo, observa o referido jurista que a precisa compreensão desse instituto jurídico sempre dependerá do Direito positivo de cada ordenamento, de modo que, a par deles, o que se pode extrair como denominador comum “é tão somente o caráter geral e normalmente abstrato que possuem”, bem como o fato de serem expedidos “por órgão diverso daquele ao

34BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição brasileira, São Paulo: Livraria Acadêmica, Saraiva & Cia., 1932-4, v. I, p. 410.

35PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à Constituição de 1946. t. III, 1963, p. 121.

36BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. op. cit., p. 347.

qual esteja cometida a edição de leis (Legislativo)”, que, na grande maioria dos casos, é a Administração Pública.37

Por tais razões que, no Direito brasileiro, para a verificação da competência da Administração Pública editar regulamento e, consequentemente, para a análise do regime jurídico a ser conferido a tal instituto, deve-se sempre ter em vista os termos expressamente previstos no artigo 84, inciso IV, da Constituição, seu fundamento no Direito nacional, que, conforme visto, a priori, prevê a edição de regulamentos tão somente visando à fiel execução da lei.

Antes de se adentrar na análise da natureza jurídica, conceito e principais características do regulamento no Direito brasileiro, impende-se relembrar a premissa de que, no Estado Democrático de Direito, os poderes acaso conferidos a alguém se inserem em um contexto de fins a serem atingidos, devendo ser compreendidos, na realidade, não como fins em si mesmo, mas como instrumentos a serem utilizados para a consecução do interesse público.38 Nesse sentido são as tão conhecidas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentos ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse alheio.39

Daí a conclusão de que, se o correto é se referir a atribuição de competências e não a atribuição de poderes, por conseguinte, deve-se falar em “competência regulamentar” e não em “poder regulamentar”. 40

Diante deste entendimento de competência regulamentar como instrumentalizadora da consecução do interesse público, de se registrar que, em determinadas hipóteses, sobretudo quando a atividade regulamentar foi imprescindível para o atingimento do interesse público a ser obtido, o exercício desta competência se imporá como uma verdadeira obrigação à Administração, da qual não poderá se omitir.

Não há, em tais hipóteses, uma faculdade de atuação pela Administração, a ponto dela poder escolher entre regulamentar ou não. Até porque, do contrário, além de se violar o

37 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. op. cit., p. 349.

38ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2013, p. 267.

39BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. op. cit., p. 57.

40MELLO, Vanessa Vieira de. Regime jurídico da competência regulamentar. São Paulo: Dialética, 2001, p.

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princípio da isonomia, na medida em que a lei seria aplicada diversamente pelos distintos órgãos da Administração, estaria se admitindo que esta se desincumbisse de um dever, haja vista que “aquilo que é necessário não pode depender do exercício de uma faculdade” que implique “no agir ou não agir, segundo a vontade do agente”.41