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De acordo com o perito Michel Misse, “quando uma pessoa é morta por policiais – sejam eles militares ou civis –, e estes agentes alegam ter havido legítima defesa, devido a uma resistência à prisão, faz-se um Registro de Ocorrência (RO), na delegacia distrital da Polícia Civil mais próxima ao local do fato”130. Neste Registro, realiza-se uma classificação administrativa em que homicídio é considerado como um “auto de resistência" no Rio de Janeiro, ou “resistência seguida de morte” em São Paulo.

O fundamento jurídico para essa classificação administrativa geralmente é atribuído ao artigo 292 do Código Processual Penal, que autoriza o uso de meios necessários para "defender-se ou para vencer a resistência" e prevê a lavração um auto subscrito, mediante a presença de duas testemunhas, que segundo Misse geralmente são os próprios policiais envolvidos131. Assim mesmo, usa-se como fundamento a legítima defesa como causa de exclusão de ilicitude com tipo penal de homicídio, prevista no artigo 23 do Código Penal brasileiro132.

127 Declaração durante audiência de 13 de outubro de 2016. 128 Idem.

129 Declaração por affidavit de Ignacio Cano, anexo I da petição de 30 de setembro de 2016, p. 4.

130 MISSE, Michel (coord.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Anexo 09 do EPAP, p. 28. Um resumo deste estudo foi apresentado em seu laudo pericial encaminhado pelos Representantes à Corte em 03 de outubro de 2016.

131 MISSE, Michel (coord.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Anexo 09 do EPAP, p. 29. Um resumo deste estudo foi apresentado em seu laudo pericial encaminhado pelos Representantes à Corte em 03 de outubro de 2016.

132 MISSE, Michel (coord.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Anexo 09 do EPAP, p. 29. Ver também Anistia Internacional. Você

Assim, com a classificação dos homicídios decorrentes de ação policial como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, de acordo com o perito Marlon Weichert, “a investigação da polícia judiciária já nasce com um viés de culpar a vítima e justificar a conduta do agente de segurança que teria matado o civil como um ato de resistência em legítima defesa”.133

Assim mesmo, o perito Misse alerta que quando o “auto de resistência” é praticado durante uma operação da Polícia Civil, o seu registro deve ser realizado na delegacia pré-fixada como o “cartório” da operação, de modo que, normalmente, as mortes causadas por agentes da Polícia Civil tendem a ser investigadas em sua própria delegacia de origem, como ocorreu no presente caso.134

Deste modo, a aplicação sistemática destas classificações produz efeitos que superam sua nomenclatura, pois representam uma linha de investigação viciada que desde o início culpa a vítima e não o perpetrador. Neste sentido, segundo Misse, é comum que os inquéritos possuam a identificação de crimes supostamente praticados pela vítima morta, entre os quais a tentativa de homicídio contra os policiais e de resistência à prisão, por exemplo.135

Conforme afirmado pelo perito Lagrasta,

Uma vez classificado como “resistência”, um caso raramente é investigado com afinco. Ao contrário, são juntadas algumas poucas peças informativas aos laudos técnicos para preencher os requisitos formais de uma investigação, a maior parte delas com deficiências. Frequentemente, os policiais envolvidos apresentam entorpecentes e armamento supostamente apreendidos com o morto, para incriminá-lo, mas a veracidade dessa alegação não é minimanente apurada (como o exame para verificar se o morto manipulou arma de fogo, por exemplo, ou a apreensão e pericias das armas dos policiais). Os laudos de exame cadavérico são deficientes, e os depoimentos dos policiais envolvidos são superficiais e extremadamente repetitivos, senão idênticos136.

Adicionalmente, como destaca o perito Lagrasta, raramente os investigadores tomam o depoimento de civis137.

O perito Michel Misse afirmou em seu laudo pericial que “este tipo de inquérito, ao contrário dos demais homicídios, não visa a buscar a autoria das mortes, mas é desenvolvido, em tese, com o objetivo de se verificar se os agentes atuaram em legítima defesa e dentro dos padrões legais”138. Ou seja, como afirma o perito Lagrasta, o inquérito é “desenvolvido com o objetivo de se investigar os mortos, e não

matou meu filho!: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. 2015, anexo 55 do EPAP, pp. 28-29. Ver também Human Rights Watch. Força Letal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e São Paulo. 2009, anexo 56 do EPAP, pp. 24 a 29.

133 Perícia de Marlon Weichert, apresentado pelos Representantes em 3 de outubro de 2016, p. 19. Ver também a perícia do Dr. Caetano Lagrasta, apresentado pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, págs. 7 a 15.

134 MISSE, Michel (coord.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Anexo 09 do EPAP, p. 30.

135 MISSE, Michel (coord.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Anexo 09 do EPAP, p. 31.

136 Perícia de Caetano Lagrasta, apresentado pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 7. 137 Idem, pág. 14.

138 Perícia de Michel Misse, encaminhada pelos Representantes à Corte em 03 de outubro de 2016, p. 6.

as mortes”139, uma vez que toda a atividade investigativa se desenvolvia no sentido de caracterizar a conduta das vítimas mortas. Como afirmou o perito Weichert em audiência, “eu diria que se desenvolveu o “direito penal da vítima” em contraponto ao “direito penal do fato”140.

Neste sentido, Lagrasta destacou que a oitiva de familiares, que geralmente não são testemunhas dos fatos investigados, tem a finalidade de estabelecer o caráter moral das vítimas e tentar associá-las a condutas criminosas141. O autor conclui que:

Em todas as instâncias de apuração dos “autos de resistência” notou-se um consenso sobre a legitimidade de se matar “bandidos”, estando o “problema dos autos de resistência” na morte dos chamados “inocentes”. Há um senso comum generalizado, não apenas entre policiais, mas entre atores das demais instituições do Sistema de Justiça Criminal e na opinião pública como um todo, de que matar um criminoso não constitui crime, pois se acredita que eles “merecem” morrer.142 No mesmo sentido, o perito Michel Misse afirmou que as perguntas dirigidas às testemunhas que prestam depoimento na Delegacia “costumam centra-se na caracterização moral da vítima, com o objetivo de saber de ela usava ou não drogas, se trabalhava ou estudava e, principalmente, se era ou não envolvida com atividades ilegais”143. O perito afirma que o mesmo ocorre durante as audiências, quando as testemunhas são questionadas sobre a existência de tráfico na comunidade em que houve a morte, pois “a mera existência do tráfico em favelas é elaborada como a base retórica fundamental para a justificação de homicídios cometidos por policiais nessas áreas”.144

Esse discurso do “bandido bom é bandido morto” e a tolerância social com a violência policial foi objeto de pesquisa recente do Instituto Datafolha para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública que revelou que cerca de 60% dos brasileiros e brasileiras concordam com a afirmativa145. O modelo de conduta das instituições policiais, seu corporativismo e a permissividade social e dos demais órgãos do sistema de justiça em relação às execuções sumárias têm corroborado para a impunidade relativa a estes crimes.

Ou seja, face a uma versão de confronto em que a vítima é taxada de bandido, o sistema de justiça tem adotado uma posição de legitimação da versão de confronto e não investigação dos fatos como execuções sumárias, ainda que hajam elementos para tanto. Assim, não são feitas diligências ao local para perícias ou para procurar testemunhas das mortes que poderiam elucidar as circunstâncias das mortes e identificar os responsáveis, diligências fundamentais para a realização de justiça.

139 Perícia de Caetano Lagrasta, apresentado pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 52. 140 Declaração do perito Marlon Weichert ante a Corte IDH durante a audiência pública em 13 de outubro de 2016.

141 Perícia de Caetano Lagrasta, apresentado pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 52. 142 Idem, p. 115.

143 Perícia de Michel Misse, encaminhada pelos Representantes em 03 de outubro de 2016, p. 6. 144 Perícia de Michel Misse, encaminhada pelos Representantes em 03 de outubro de 2016, p. 12. 145 O Estado de São Paulo. Pesquisa mostra que 6 em 10 brasileiros acham que “bandido bom é bandido morto”. 02 de novembro de 2016. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pesquisa-mostra-que-6-em-10-brasileiros-acham-que-bandido-bom-e-bandido-morto,10000086016

Em sua perícia, o perito Michel Misse revela que os inquéritos policiais classificados como tal recebem nenhuma prioridade dos agentes investigadores e “ficam indo e vindo, virtual ou fisicamente, entre as delegacias e a central de inquéritos do MP [Ministério Público], em um movimento que pode chegar a durar cerca de cinco anos e foi batizado por policiais e promotores como "pingue-pongue", sem que muita coisa seja feita para investigá-los”146.. Esse “pingue -pongue” revela a ausência de controle efetivo da atividade policial pelo Ministério Público e permite que as investigações se arrastem por anos, favorecendo o seu arquivamento ou prescrição.

Como assinalou o perito Weichert durante a audiência, “na prática, é usual encontrar inquéritos que levam anos entre idas e vindas entre a policia e o Ministério Público, sem que este tente interferir efetivamente na investigação, embora isso fosse possível, desejável, e, muitas vezes, necessário”147.