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Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registram 45.460 casos de estupro no Brasil no ano de 2015167, uma pequena queda comparada aos dados do ano de 2014 quando foram registrados 50.438 casos de estupro no país. Estes números são baseados nos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde brasileiro, que é alimentado pela notificação de casos de doenças e agravos que constam da lista nacional de doenças de notificação compulsória feitos por funcionários da saúde durante o atendimento de vítimas de estupro168.

Contudo, de acordo com o relatório final da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) sobre Violência contra a Mulher, “a notificação ainda é muito baixa e há estados em que muitos municípios não notificaram um caso sequer”169. Por isso, a CPMI recomendou a capacitação dos funcionários da saúde para a realização da notificação e o estabelecimento de metas para ampliar a notificação. Ou seja, os números apresentados no Anuário talvez sequer reflitam a totalidade de atendimentos em unidades de saúde em casos de estupro.

Outro levantamento de âmbito nacional é o Relatório Consolidado de Ocorrências de Estupros Registrados pela Polícia Civil realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP por intermédio do módulo de estatísticas do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas - SINESP. De acordo com o último relatório (referente ao ano de 2014), foram registrados no sistema de segurança pública do Estado 43.950 casos de estupro170. Ou seja, nem todos os casos de atendimento no sistema de saúde resultam em denúncia perante o sistema de segurança pública.

Estes dados, porém, representam somente uma parcela da totalidade de casos de estupro ocorridos no Brasil, uma vez que a sua subnotificação é destacada em todas

166 Human Rights Watch, "O Bom Policial Tem Medo", Os custos da violência policial no Rio de Janeiro, julho de 2016. Relatório anexado à Perícia de Cecilia Coimbra enviado pelos Representantes à Corte IDH em 30 de setembro de 2016

167 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2016, p. 38-39. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/10o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica (acesso em 09/11/2016)

168 A Portaria nº 204, de 17 de fevereiro de 2016 possui a lista de doenças e agravos que devem ser notificados, entre as quais consta no artigo 2º, inciso I: “ agravo: qualquer dano à integridade física ou mental do indivíduo, provocado por circunstâncias nocivas, tais como acidentes, intoxicações por substâncias químicas, abuso de drogas ou lesões decorrentes de violências interpessoais, como agressões e maus tratos, e lesão autoprovocada”.

169 Senado Federal. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, Brasília, Junho de 2013. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=130748&.

170 Dados disponíveis em: https://www.sinesp.gov.br/estatisticas-publicas

as pesquisas sobre o tema. A este respeito, o Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (IPEA) em pesquisa nacional sobre o estupro no Brasil estimou que somente 10% dos casos de estupro chegam ao conhecimento da polícia171. Ou seja, poder-se-ia estimar que são quase meio milhão de casos de estupros no Brasil por ano. O Fórum Nacional de Segurança Pública faz uma estimativa mais cautelosa e baseada nas estimativas realizadas pelo governo dos Estados Unidos da América, de que a subnotificação seria em torno de 35%172. Ou seja, os casos seriam em torno de 150 mil por ano.

Destarte as imprecisões e subnotificações, os dados do Sinan revelam que quase 90% dos estupros no Brasil são cometidos contra mulheres e que cerca de 0,5% por agentes policiais identificados no momento da denúncia e/ou atendimento médico173. Isto representa cerca de 230 casos de estupro por agente de segurança do Estado por ano no Brasil.

Uma das barreiras para um maior acesso à mulher vítima de estupro ao sistema de saúde e segurança pública para solicitar proteção, que impacta a produção de dados sobre o tema, é a qualidade do atendimento nestas instituições. Neste sentido a perita Debora Diniz afirmou que mesmo nas delegacias especializadas para o atendimento em atenção às mulheres, “as mulheres vítimas de violência registram experiências de estigma, suspeição e revitimização pela escuta policial”174. Segundo a perita, esta situação é agravada quando a violência é cometida por agentes da segurança pública, pois “o sujeito violentador é também membro da organização que centraliza a entrada para os equipamentos protetivos do Estado”175.

A perita também atribui esta subnotificação ao estigma, discriminação e ausência de efeitos protetivos decorrentes da denúncia, bem como “o medo de represálias por parte do agressor, que pode tomar a forma de repetição da violência sexual e das ameaças contra a família da vítima”176. Segundo a perita, este medo é agravado quando os agressores são agentes da segurança pública e protegidos pelo Estado177. Além disso, como assinalou a perita Diniz,

a violência de gênero nas operações policiais é feita de maneira a deixar poucos rastros de materialidade: há a centralidade no sexo oral para esconder as evidencias para a perícia medica de consumação de violência sexual; ou até, muito recentemente, a prática de sexo anal como uma das formas mais comuns de abuso sexual, pois a penetração do pênis no anus não era considerada pela legislação brasileira como estupro178.

171 IPEA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar). Brasília,

março de 2014, p. 26. Disponível em

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf.

Pesquisa citada em amicus curiae da PUC-RJ e em perícia de Debora Diniz, encaminhada pelos representantes em 30 de setembro de 2016.

172 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, op. cit., p. 38. 173 IPEA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Op. Cit., p. 8-10.

174 Perícia de Debora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 5. 175 Perícia de Debora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 5-6. 176 Perícia de Debora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 6. 177 Idem.

178 Perícia de Debora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 6.

Nesse contexto, o descrédito da palavra da vítima também é apresentado com uma barreira à denúncia dos casos de estupro pelas peritas Debora Diniz179 e Cecilia Coimbra, a qual afirma que, “nos casos de violência sexual, apresentar a denúncia e acompanhar a investigação dos fatos tem implicações subjetivas muitos duras para as mulheres, em quem frequentemente não se acredita. Os fatos são minimizados e se atribui responsabilidade às vítimas seguindo estereótipos de gênero”.180

Debora Diniz também responsabiliza o atendimento nos serviços de saúde que, segundo a perita, testam a palavra da vítima “pela palavra produzida pelos profissionais de saúde dos serviços de acolhimento à vítima; a palavra da vítima não é considerada suficiente para a garantia de direitos, por isso, muitas mulheres não procuram os serviços de saúde: temem ser revitimizadas pelos serviços que deveriam garantir direitos, oferecer acolhimento e anonimato ao seu sofrimento”.181

Assim mesmo, a perita Debora Diniz confirma os dados das pesquisas de que as principais vítimas de crimes sexuais no Brasil são meninas e mulheres e que com relação a meninas esta violência ocorre principalmente por homens conhecidos ou por autoridades da comunidade como policiais ou representantes religiosos, o que aumenta a chance do silenciamento e encobrimento do crime em razão do seu papel de autoridade e dos riscos imediatos de suspeição da mulher sobre o anúncio da violência182.

Considerando esta subnotificação e a ausência de dados mais concretos sobre violência sexual no Brasil, são ainda mais raros os dados referentes a ocorrência destas formas de violência em operações policiais. O relatório da organização Anistia Internacional intitulado Por Trás do Silêncio: experiências de mulheres com a violência urbana no Brasil, mencionado no amicus curiae da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro no presente caso, traz alguns dados e alguns casos de violência sexual no contexto de operações policiais183. Neste sentido afirma que:

Embora as mulheres não sejam os principais alvos das operações policiais, elas sofrem abusos e discriminação como moradoras. As mulheres são ameaçadas e atacadas quando tentam proteger seus parentes homens; sofrem agressões verbais e até mesmo abusos sexuais nas mãos da polícia; são feridas e mortas em meio ao fogo cruzado. [...]

As mulheres relataram ainda diversos casos de abuso sexual por parte de policiais nas comunidades. No entanto, é difícil ter uma ideia da verdadeira extensão desses abusos, pois pouquíssimos casos são denunciados oficialmente e raros são investigados.184

Quanto à ausência de investigação e responsabilização dos crimes de estupro no Brasil, os dados sobre as denúncias não são sistematizados e publicados pelo Estado,

179 Perícia de Débora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 7-9. 180 Perícia de Cecilia Maria Bouças Coimbra, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 13.

181 Perícia de Débora Diniz, encaminhada pelos Representantes em 30 de setembro de 2016, p. 9. 182 Idem, p. 11 e 12.

183 Anistia Internacional. POR TRÁS DO SILÊNCIO: Experiências de mulheres com a violência urbana no Brasil,AMR 19/001/2008, Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/amr19/001/2008/pt/ 184 Idem, p. 38 e 42.

o que dificulta o conhecimento público sobre a efetividade das investigações a fim de se exercer o controle social e monitoramento da atividade do Estado. Contudo, uma matéria publicada recentemente pela revista Época conseguiu acesso a alguns destes dados.

De acordo com a matéria, no ano de 2015 foram registrados 4.887 casos de estupro no Estado do Rio de Janeiro e no mesmo ano só foram apresentadas 291 denúncias por estupro pelo Ministério Público Estadual, o que não corresponde a 6% do total dos casos registrados185.