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O passado nacional e a delimitação dos espaços públicos

No documento A NAÇÃO COMO POSSIBILIDADE: (páginas 124-130)

2. A difusão do passado nacional: a divulgação de uma “história do Brasil” nos

2.5. O passado nacional e a delimitação dos espaços públicos

Dinâmica que, sem desconsiderar a pretensa moderação dos escritos no âmbito da produção historiográfica, reafirma a necessidade de não promover uma avaliação segundo a qual havia consenso sobre o passado da nação.

Como destacado até esse ponto, as diferentes referências presentes nos textos de Abreu e Lima e de Macedo aos grupos e/ou partidos, são exemplos da inviabilidade dessa forma de avaliar a situação que marca a organização e o funcionamento do regime monárquico no país, sugerindo, primeiramente, um envolvimento igualmente distinto nos debates políticos do Império. Em segundo lugar, refletindo, como mencionei anteriormente, a inserção de suas obras, bem como deles próprios, em dois momentos marcados pela também diferença no que concerne à situação política do país, visto que para o primeiro a ação partidária é condenável e fruto da instabilidade ao passo que para o segundo ela é parte importante do jogo político.

Exemplo disso é o próprio Compêndio da História do Brasil, de Abreu e Lima, obra que atesta a atuação desse autor na delimitação dos espaços institucionais associados à Monarquia brasileira.

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GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004. p. 28.

Espaços dos quais, aliás, Abreu e Lima acaba alheado, sobretudo na capital, em virtude da recusa de seu manual didático pelo IHGB e pela vitória dos liberais moderados no que diz respeito ao ordenamento da política imperial desde a época da Regência, o que corrobora para o retorno do letrado pernambucano a sua província natal.

Em situação diversa, Joaquim Manuel de Macedo apresentava-se completamente inserido nos espaços institucionais dos quais Abreu e Lima fora excluído. Emblemático dessa situação é o fato de que, entre os muitos cargos exercidos por esse letrado fluminense em várias instituições importantes, ele atuou, como já assinalado, como primeiro secretário do mesmo IHGB que excluíra Abreu e Lima do discurso historiográfico oficial.

E foi nessa condição de primeiro secretário de tal instituto que Macedo também evidenciou sua importância e a de seus escritos no citado processo de delimitação dos espaços institucionais, pois, em certa passagem de um dos relatórios que produziu no exercício dessa função, no ano de 1856, esse escritor destaca a relação entre o IHGB e o governo imperial na formulação de políticas públicas no âmbito da cultura e do desenvolvimento da ciência, apontando que o grupo dos membros do referido instituto

(...) de pronto aprovou uma moção (...) propondo que o instituto histórico e geográfico do Brasil se dirigisse ao governo imperial, pedindo-lhe que houvesse de nomear uma comissão de engenheiros e de naturalistas nacionais, para explorar algumas das províncias menos conhecidas do Brasil (...) não tardou em validá-la a aprovação do governo imperial, que honrando nos então com uma prova da mais penhoradora confiança, convidou o instituto a escolher e propor as pessoas mais habilitadas para fazer parte da comissão exploradora.152

Ademais, no mesmo relatório, Macedo confirma aquilo que a leitura das suas

Lições e a do Compêndio deixa entrever: a escrita da história de um povo enquanto

tarefa política daqueles que a escrevem. Instigantes, então, são as palavras desse letrado fluminense ao relatar os assuntos relativos ao IHGB no ano de 1856, em passagem na qual ele afirma que “escrever ou também preparar a história de um povo é, como pensa com razão Courcelle Seneuil, exercer uma verdadeira

152 MACEDO, Joaquim Manuel de. “Relatório do primeiro secretário, o Sr. Dr. Joaquim Manuel de

magistratura politica (...)”153 .

Curioso, nesse sentido, é notar que Macedo, ao retratar as condições das terras recém-incorporadas aos domínios portugueses, no longínquo século XVI, menciona que “no seu solo correm os maiores rios do mundo, levantam-se altas e admiráveis serras, dilatam-se extensos e fertilíssimos vales, e campos desmedidos e fecundos” (I, p. 55), enquanto Abreu e Lima, por seu turno, no capítulo primeiro do tomo I de seu Compêndio, antes de tratar das primeiras formas de administração da colônia portuguesa na América, lista também as características naturais do território, destacando aspectos da geografia, da zoologia, da mineralogia e da fitologia.

No exercício da mencionada “magistratura política”, as penas desses dois autores engrandecem a natureza, mostrando, é claro, a relação da escrita romântica brasileira com a valorização da paisagem nacional e indicando o desejo de trazer ao conhecimento do público-leitor os traços característicos do país. E não apenas no âmbito dos recursos naturais, pois tanto em Compêndio quanto nas Lições, a narrativa dos dois autores constantemente volta-se para os acontecimentos das províncias, em um claro exercício de produção de uma história regional.

Trazer à tona os episódios relacionados às histórias locais, das diferentes províncias brasileiras, e produzir a leitura desse passado regional deixando entrever o tipo de vínculo do indivíduo que escreve com o mesmo, remete, então, o modelo de história pátria apresentado pelos manuais didáticos de história do Brasil ao complexo quadro de constituição de uma forma específica de espaço público e ao, anteriormente mencionado, processo de institucionalização dos conflitos.

Dessa forma, a relação com o seu público específico é mais um dado para corroborar com a percepção dos manuais didáticos de história do Brasil enquanto outra expressão do espaço(s) público(s) em formação no período imperial, já que há uma nítida preocupação dos dois autores, Abreu e Lima e Macedo, em anunciar, com toda a clareza, os destinatários de seus textos, sendo eles, conforme já indicado, no primeiro caso, a “mocidade brasileira” e, no segundo, os alunos do Colégio de Pedro II.

Nesse sentido, é bastante interessante a observação da historiadora Selma Rinaldi de Mattos a respeito da destinação dos dois manuais didáticos a públicos distintos, pois, segundo ela,

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(...) em Macedo, a identificação dos “alunos” como leitores pressupõe uma relação pedagógica e uma instituição específica, além de um programa da disciplina fixado pelo estabelecimento padrão do Império, algo que parece distante das preocupações de Abreu e Lima, que parece muito mais operar com a representação de uma “idade da vida” (...)154

Portanto, essa historiadora sublinha o fato de que, com relação ao público, a obra de Abreu e Lima tem uma abrangência aparentemente maior do que aquela sugerida pelo texto de Macedo, pois o primeiro estaria envolvido em uma discussão mais ampla sobre as formas de produção e divulgação da história pátria – e daí, inclusive, surgira a polêmica com Januário da Cunha Barbosa e Varnhagen – ao passo que o segundo revelaria uma especificidade em termos de seus possíveis leitores.

Contudo, ainda seguindo as indicações de Selma Mattos, destaco que houve uma alteração no texto original de Compêndio da História do Brasil de Abreu e Lima, visto que na sua segunda edição, publicada meses após a primeira, definiu-se, por sugestão dos editores, os irmãos Laemmert, uma sensível redução do número de páginas – com a supressão dos documentos anexos que encerram o segundo volume – para atender as demandas de livros escolares dos colégios do país, o que permitiu a apresentação do texto em um único volume e o tornou, por conta disso, principalmente, mais atraente aos propósitos educacionais.

Aliás, esse é um dado bastante curioso, tendo em vista que mesmo recusado e criticado por membros ilustres do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro e, por conseguinte, não respaldado pela instituição oficialmente encarregada da organização e veiculação da história pátria, o Compêndio de Abreu e Lima, conforme sugerem alguns estudos155, foi adotado no Colégio de Pedro II, outra instituição dotada de caráter oficial, é válido lembrar, até o momento em que foi substituído pelas Lições de Macedo, somente em 1861.

Nota-se, então, que a existência de um projeto centralista no âmbito da produção do conhecimento histórico durante o período imperial no Brasil, como defende Manoel Luís Salgado Guimarães em passagem citada na introdução, não é

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MATTOS, Selma Rinaldi de. Para formar os brasileiros: o Compêndio de História do Brasil de Abreu e Lima e a expansão para dentro da do Império do Brasil. Op. cit. p. 96.

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Novamente destaco dos estudos de Selma Rinaldi de Mattos (2007), Arlette de Medeiros Gasparello (1993) e Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo (1997) como importantes referências nas quais me apoiei para as informações relativas aos manuais didáticos, em especial a relação dos mesmos com o Colégio de Pedro II e o ensino secundário de forma geral.

compatível com essa situação, apontada acima, em que a versão desautorizada e não reconhecida como a oficial foi difundida entre os alunos do Colégio de Pedro II, a instituição modelar do ensino secundário no Brasil, até o início da década de 1860. E mesmo que o Compêndio da História do Brasil, o instrumento de divulgação da tal versão, tenha sido preterido a partir da publicação de Lições de História do

Brasil, ainda não é de todo adequado considerar o triunfo de uma visão homogênea

a respeito do país e de seu passado, pois, conforme aponta Gilberto Luiz Alves,

os manuais didáticos no Colégio de Pedro II, elaborados por profissionais que, por formação, revelavam-se pouco aptos

para articulá-los às suas especializadas destinações

pedagógicas, eram livros que disputavam, ainda, o emprego em outros níveis de ensino e numa fatia do mercado que ia além da reduzida clientela escolar.156

Situação que se revela mais interessante quando, estendendo a observação para além dos limites cronológicos propostos para esse estudo, destaco a referência, presente no estudo de Alves, sobre a proliferação de outro manual didático – a Pequena História do Brasil por Perguntas e Respostas, escrito por Joaquim Maria de Lacerda e publicado originalmente em 1880 – nos estabelecimentos de ensino secundário, públicos e particulares, dos principais centros urbanos do país.

Acrescento a essa informação, as colocações de Maria de Lourdes M. Haidar, mencionadas em outra parte desse capítulo, a partir das quais a autora remete à defesa da liberdade de ensino assumida por muitos indivíduos e grupos constituintes da sociedade imperial, e sugiro que, ao invés da proposição de uma visão uniforme oriunda de uma instituição – o IHGB – que, aparentemente, alcançaria com suas ações todo o conjunto nacional, deve-se enxergar na publicação de manuais didáticos de história do Brasil, o convívio, tenso, entre múltiplos e conflitantes modelos, reforçando, assim, a importância do sistema representativo na organização do Estado imperial.

O Compêndio da História do Brasil de Abreu e Lima e as Lições de História do

Brasil de Joaquim Manuel de Macedo, expressando, então, formas distintas e, em

certas passagens, até divergentes sobre o passado nacional e estando inseridas na conjuntura por mim apontada anteriormente, de esforços da elite letrada no sentido

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ALVES, Gilberto Luiz. Manuais didáticos de história do Brasil no colégio Pedro II: do Império às primeiras décadas da República. Op. cit. p. 21.

de dialogar com seu público-leitor, são exemplos bastante significativos do papel desempenhado pela produção escrita oitocentista na estruturação do regime monárquico.

Sob esse aspecto, resgatar o passado foi também parte do empreendimento dos setores dominantes da sociedade imperial, entre eles os membros da elite intelectual, tais como Abreu e Lima, Macedo e Varnhagen, configurando esse resgate, acima de tudo, enquanto uma atividade de seleção, na qual a memória coletiva preenchia o importante papel de ligação entre os fatos já ocorridos e seus projetos de nação.

Por conseguinte, ao recolher os difusos episódios da história do país e redistribuí-los na narrativa dos setores dominantes, os indivíduos que receberam a tarefa de elaborar e difundir a identidade nacional acentuaram a capacidade da memória coletiva no sentido de promover a síntese entre o ontem e o amanhã.

3. O LOCAL DO PÚBLICO: O PAPEL DA IMPRENSA PERIÓDICA NA DINÂMICA

No documento A NAÇÃO COMO POSSIBILIDADE: (páginas 124-130)