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Do eu humano ao um eu teológico (KIERKEGAARD, 2010, p. 104). É justamente essa a expressão que Kierkegaard vai utilizar para caracterizar o processo de transição de um “problema de caráter antropológico” para um “problema caráter teológico”. Isto posto, na primeira parte de seu livro, Anti-Climacus procurou demonstrar que a gradação da consciência do eu, foi tratada a partir de um eu humano, cuja medida é o próprio homem (KIERKEGAARD, 2010, p. 104). Seja de forma inconsciente, cujo processo dialético acontece somente por oposição binária – sendo inclusive latente a ausência da eternidade – seja de forma consciente, através de um desespero de fraqueza ou de desafio (KIERKEGAARD, 2010, p. 68).

Em linhas gerais, ao pensar o conceito de um eu teológico, o autor supõe que o mesmo deixaria de estar simplesmente sobre si mesmo, passando a estar de ante a face de Deus ou da ideia de Deus. Kierkegaard explica que esse processo é verdadeiramente de fato dialético, sobretudo, na medida em proporciona uma espécie de entrelaçamento de contraponto entre: finitude e infinidade, entre a concretude do homem e a transcendência divina (KIERKEGAARD, 2010, p. 105). Kierkegaard também nos alerta, que ao mesmo tempo, em Deus ou a ideia de Deus serve com antítese do processo dialético que determina a constituição do eu, o mesmo também constitui uma espécie de critério de “medida e regra” para ética, que pode ou não determinar uma suposta “autonomia” da síntese do eu. 14

Nas palavras do autor temos:

[...] designarei como eu teológico, eu em face de Deus. E que a realidade infinita ele toma então, pela consciência de estar perante Deus, o eu humano agora a medida de Deus. [...] A medida do eu é sempre o que este tem diante de si, e assim se define o que seja “a medida”. Como só se adicionam grandezas da mesma ordem, todas as coisas são assim qualitativamente idênticas à sua medida; medida que é ao mesmo tempo as suas regras éticas; media e regra exprimem, portanto a qualidade das coisas. Não sucede conduto o mesmo no mundo da liberdade: aqui, se não for de qualidade idêntica à medida e à regra e medida, quando cega o juízo final, permanecem, contudo invariáveis, manifestam o que não somo: nossa regra e nossa medida [...] O desespero condensa-se à proporção da consciência do eu, mas o eu condensa-se à proporção da sua medida, e, quanto esta medida é Deus,

14 A Expressão deve sempre pairar sob o âmbito hipotético tendo em vista que Kierkegaard não teria proposto –

pelo menos não de formar direta – uma síntese em sua dialética. É justamente essa “ausência de síntese” que renderia ao autor o seu distanciamento de Hegel. Por outro, o mudos operandi de seus discursos filosóficos permite-nos pensar no convite de uma síntese forja pelo próprio leitor.

infinitamente. O eu aumenta com a ideia de Deus, e reciprocamente a ideia de Deus aumenta como o eu. Só consciência de estar perante Deus faz o nosso eu concreto, individual, um eu infinito, e é esse eu infinito que então peca perante Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 104-105).

É nítido aqui o convite que Kierkegaard nos faz aos seus modos de existência.15 Na primeira parte do livro, temos a presença dos elementos estéticos e éticos, já na segundo parte, os elementos religiosos. Na primeira parte, o eu que ainda não tem consciência de si, procura se apagar na aparência da imediaticidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Seja por se mergulhar na infinitude da imaginação (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Seja por estar fechado ou preso nas armadilhas da finitude (KIERKEGAARD, 2010, p. 50). Quando não, pode também optar entre a necessidade ou possibilidade, nunca sendo capaz de possuí-las de forma simultânea. É nesse sentido, que eu possui características estéticas. Ainda na primeira parte, (Capítulo II) Anti-Clímacus afirma que eu passa a ter consciência de si, podendo inclusive perfeitamente optar entre querer ser ou não a si mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 60). A capacidade de optar por isso ou aquilo determinam a existência ética do eu. Por fim, a criação e a nomenclatura de um eu teológico deve apontar para aquilo que o dinamarquês chamava de existência religiosa, ou como bem costumava falar outro pseudônimo de Kierkegaard (Johannes de Silentio) a suspensão teológica da moralidade (KIERKEGAARD, 2012, p. 61).

Roos (2009) aponta também para outro fator determinante na filosofia de Kierkegaard, sobretudo em relação ao eu teológico e o dogma do pecado. Trata-se do entrelaçamento que o mesmo faz entre conceito de desespero e conceito de angústia. Embora reconhecessem que nossa pesquisa está sobreposta ao primeiro conceito e a obra de Anti-Clímacus, de fato, não podemos ignorar a maneira como eles se complementam (ROOS, 2009, p. 1). Isto é, assim, como pseudônimo Anti-Clímacus chama o processo de má relação consigo mesmo de desespero – na primeira parte do seu livro – e de pecado na segunda (KIEKREGAARD, 2010, p. 28-29), em O Conceito de Angústia, o autor pseudônimo Vigilius Haufniensis procura enfatizar que o indivíduo é responsável pela própria desestabilização da síntese, o que de

15 Kierkegaard afirma haver três estágios nos quais o eu é inserido de acordo com sua visão e experiências

individuais. Isto é, estético, ético e religioso (GARDINER, 2001, p. 50). Segundo Gardiner (2001) os dois primeiro estágios (estético e ético) foram interpretados por alguns estudiosos através de termos de contrates teóricos mais familiares como hedonismo e moralismo convencional. Outros a partir da típica distinção kantiana da inclinação sensual e exigência imperativa da razão (GARDINER, 2001, p. 51). Do ponto de vista de uma suposta predileção em seu livro Temor e Tremor de 1843, o pseudônimo Johannes de Silentio embora permaneça no âmbito do ético, demonstra-se plenamente consciente das visíveis limitações da esfera à qual pertence, sobretudo, mais especificamente, ele está preocupado com a inabilidade dele em procurar abranger os fenômenos da fé (GARDINER, 2001, p. 63). O objetivo de Kierkegaard era estabelecer, vividamente, o caráter desconcertante dessas exigências do estádio religioso, onde somente os escândalo e paradoxo da existência são possível (GARDINER, 2001, p. 64).

acordo com a terminologia teológica usada na obra será chamado de pecado – e que Anti- Climacus descreverá como desespero em toda a primeira parte de A Doença para a Morte chamando-o de pecado somente na segunda parte (ROOS, 2009, p. 2).

Proporcionalmente, se a angústia é o desencadeamento da relação do homem como mundo de possibilidade, o desespero é resultado do homem em sua relação consigo mesmo. Para Kierkegaard, o desespero é culpa do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade. Trata-se de uma doença morta: [...] eterno morrer sem, no entanto morrer (KIERKEGAARD, 2010, p. 20) visto que, do ponto de vista cristão, nem mesmo a morte deve ser de fato considerada uma doença mortal, muito menos qualquer outro tipo de sofrimento terreno temporal (KIERKEGAARD, 2010, p. 20). Ora, se quisermos falar de uma doença mortal no sentido estrito, dever-se-ia tratar de uma doença mortal, cujo fim fosse à morte em que a morte fosse o fim, pois paradoxalmente o desespero é viver a morte do eu (KIEREKGAARD, 2010, p. 21).

Portanto, no texto de Vigilius Haufniensis, Kierkegaard procura dar ênfase no conceito de liberdade atrelado ao conceito responsabilidade, sobretudo, no que diz respeito à desestabilização da síntese (ROOS, 2009, p. 2). É justamente esta questão que deve ser retomada nos escritos de Anti-Climacus, ganhando forma também no que diz respeito a realizar a síntese corretamente (ROOS, 2009, p. 3). Há que se perceber que a responsabilidade (ante a face de Deus ou da ideia de Deus) implicada no processo de desestabilização da síntese corresponderá à responsabilidade implicada justamente no processo de tornar-se um indivíduo procurando restabelecer a síntese que constitui o ser humano em sua devida relação consigo mesmo e com Deus (ROOS, 2009, p. 3).