• Nenhum resultado encontrado

A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o conceito de alienação em Paul Tillich

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o conceito de alienação em Paul Tillich"

Copied!
144
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

A DIALÉTICA DO DESESPERO EM KIERKEGAARD E SUA

INFLUÊNCIA SOBRE O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM

PAUL TILLICH

Por

Elias Gomes da Silva

(2)

ELIAS GOMES DA SILVA

A DIALÉTICA DO DESESPERO EM KIERKEGAARD E SUA

INFLUÊNCIA SOBRE O CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM

PAUL TILLICH

Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora, com vistas à obtenção de título de mestre, do Curso de Mestrado em Ciência da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Área de concentração: Linguagens da Religião Orientação: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

(3)

FICHA CATALOGRÁFICA

Silva, Elias Gomes da

Si38d A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o Conceito de alienação em Paul Tillich/-- São Bernardo do Campo, 2014.

144fl.

Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Faculdade de Humanidade e Direito, Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.

Bibliografia.

Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg

1. Homem – Cristianismo 2. Alienação 3. Pecado 4. Tillich, Paul I. Título CDD 230

(4)

A dissertação de mestrado sob o título A Dialética do Desespero em Kierkegaard e sua Influência sobre o Conceito de Alienação em Paul Tillich, elaborada por Elias Gomes da Silva foi apresentada e aprovada em 11 de Junho de 2014, perante banca examinadora composta por Dr. Rui de Souza Josgrilberg (Presidente/UMESP), Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (Titular/UMESP) e Dr. Ricardo Quadros Gouvêa (Titular/Mackenzie).

__________________________________________ Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

(5)

“Dedico este trabalho a Deus por guiar meus passos; e a todos que me

ensinaram o que aprendi: aos meus queridos através do amor; e aos meus

desafetos através da dor”.

(6)

AGRADECIMENTOS

À minha família: minha mãe, minha irmã e meu sobrinho, pelo apoio incondicional aos meus estudos.

Em particular à Claudia Rodrigues (minha esposa querida) pelo incentivo, compreensão, e motivação.

Ao meu amigo Admilson Leite pelo companheirismo que fora de grande importância nesta trajetória.

Ao Prof. Rui, pela orientação, pela paciência, pela confiança, sem as quais não seria possível a conclusão do curso.

Aos funcionários e professores do Departamento de Ciência da Religião da UMESP, que de alguma forma contribuíram significadamente neste trabalho.

(7)

“A condição de alienação do homem moderno é resultado do seu pecado, de um

ato de rebeldia contra o Senhor do Universo. Por causa de uma decisão

voluntária, ele mesmo quebrou suas relações com Deus, e vive alienado da fonte

da vida. Daí decorre também sua alienação com relação ao próximo e a crise

interna em que sempre vive.”

(8)

SILVA, Elias Gomes da. A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre o conceito de alienação em Paul Tillich. Dissertação de Mestrado em Ciência da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

A respectiva pesquisa procurou estabelecer a relação de influência da filosofia de Søren Kierkegaard sobre a construção teológica de Paul Tillich. Para tanto, utilizamos como pano de fundo ou estrutura argumentativa o conceito de Desespero humano de Kierkegaard, comparando-o ao conceito de Alienação do ser de Tillich. Objetivamos com isso, demonstrar o entrelaçamento dialogal composto no desenvolvimento da chamada doutrina do pecado em ambos os autores. Isto é, como o desdobramento da antropologia kierkegaardiana problematizou os fundamentos da teologia sistemática, sobretudo, na questão da harmatiologia, e, como esta mesma problematização, foi capaz de padronizar o modus operandi que determinou a elaboração feita por Tillich sobre o mesmo assunto. Obviamente, que, no decorrer dessa investigação, não se pretendeu “desqualificar” ou “eliminar” a originalidade dos autores, nem tampouco transformar seus argumentos em uma espécie de amálgama conceitual. Assim, antes de uma suposta crítica de ter se proposto uma “fusão arbitrária de ideias”, buscamos, mais uma vez apontar, soluções de dialéticas e centros comuns, que apontem para aqueles elementos de convergência, aonde de fato, o diálogo é possível.

Palavras chaves: desespero. alienação. pecado. antropologia.

(9)

SILVA, Elias Gomes da. The dialectic of despair in Kierkegaard and his influence on the concept of alienation in Paul Tillich. Dissertation in Science of Religion, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

ABSTRACT

Their research sought to establish the relationship of influence of the philosophy of Soren Kierkegaard on the theological construction of Paul Tillich. Therefore, we use as background or argumentative structure the concept of human despair Kierkegaard, comparing it to the concept of Transfer of being Tillich. We objectify it, demonstrate the dialogical intertwining compound in the development of so-called doctrine of sin in both authors. That is, as the unfolding of Kierkegaard's anthropology problematized the foundations of systematic theology, especially in the matter of harmatiologia, and how this same questioning, was able to standardize the modus operandi that led to the drafting done by Tillich on the same subject. Obviously, that in the course of this research, are not intended to "disqualify" or "eliminate" the originality of the authors, nor turn their arguments into a kind of conceptual amalgam. Thus, before a review is supposed to have brought an "arbitrary fusion of ideas" seek, once again pointing solutions dialectical and common centers, pointing to those elements of convergence, where in fact, dialogue is possible.

Keywords: despair. alienation. sin. anthropology.

(10)

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Principais características da soterologia de kierkegaardiana...41

(11)

SUMÁRIO

Introdução………....………..………..………12

1. O desespero humano em Kierkegaard e sua relação com a doutrina do pecado...16

1.1. O desespero humano como problema antropológico...18

1.2. O problema antropológico como um problema teológico ou a doutrina do pecado...28

1.2.1. O pecado como consequência de um eu teológico...33

1.2.2. O pecado como consequência de um eu desesperadamente escandalizado...35

1.2. 3. O pecado como consequência de um eu desesperadamente ignorante...40

1.3. Desespero e salvação...43

1.3.1. A “cura” do desespero...46

1.3.2. O caminho da edificação...51

2. O conceito e alienação em Tillich e sua relação com a doutrina do pecado...55

2.1. A alienação como um problema antropológico...58

2.1.1. A alienação como reflexo dialético da finitude humana...65

2.1.2. A alienação como reflexo direto da transição da essência à existência...65

2.2. O problema antropológico como um problema teológico ou como doutrina do pecado...68

2.2.1. Alienação como pecado...71

2.2.2. Alienação como descrença...71

2.2.3. Alienação como hybris...73

2.2.4. Alienação como “concupiscência”...75

2.2.5. Alienação como fato e como ato...76

2.2.6. Alienação individual e coletiva...78

2.3. Alienação e salvação...81

2.3.1. A “cura” do ser alienado...83

2.3.2. O messias e a vitória sobre a alienação...85

2.3.3. A coragem de ser...90

3. Entre Kierkegaard e Tillich...94

3.1. O panorama contextual e a influência mútua...96

3.2. A influência de Kierkegaard sobre Tillich segundo Tillich...108

3.3. A influência de Kierkegaard sobre Tillich no conceito de Alienação...114

3.4. A influência de Kierkegaard sobre Tillich na doutrina do pecado...117

3.5. A influência de Kierkegaard sobre Tillich no problema da salvação...124

4. Considerações finais...132

(12)

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve como principal finalidade, descrever, analisar e problematizar os conceitos de Desespero e Alienação a partir do pensamento desenvolvido pelo filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855); e pelo teólogo alemão Paul Tillich (1886-1965). O elemento de ligação entre os dois autores deve repousar, sobre a questão da chamada doutrina do Pecado Original. Isto é, como é possível, através destes conceitos (desespero e alienação), pensar efetivamente o problema do pecado? Nossa hipótese argumentativa irá defender que existe certa relação de influência entre a noção de desespero humano de Kierkegaard, e o conceito de alienação do ser de Tillich, utilizando como elemento estrutural o problema do pecado. Obviamente, no decorrer dessa investigação, não se pretendeu “desqualificar” ou “eliminar” a originalidade dos autores, nem tampouco transformar seus argumentos em uma espécie de amálgama conceitual.

Por outro lado, reconhecemos também, que toda tentativa de comparação entre autores distintos, costuma se estabelecer – ainda que não intencionalmente – a partir de ambiguidade. No entanto, quando analisamos o trabalho de um autor, não podemos nos esquecer de que ele sempre está ligado ao contexto maior. Toda produção de conhecimento ou saber é desenvolvido socialmente (TOMAZI, 2010, p. 9). Portanto, se quisermos interpretar a cosmovisão ou como pensavam as pessoas de determinada época, precisamos saber em que meio social elas viveram, pois o pensamento de um período da história é criado pelos indivíduos em grupos ou classes, reagindo e respondendo a situações, histórias e vigentes de seu tempo (TOMAZI, 2010, p. 9). Se quisermos saber por que indivíduos, grupos e classes pensam de determinada forma, e, por que explicam a sociedade deste ou daquele ponto de vista, precisaremos entender como os membros dessa mesma sociedade se organizaram (conceitualmente) para suprir suas necessidades, tais como: as relações sociais, as normas, os valores, os costumes, as tradições e a própria religiosidade (TOMAZI, 2010, p. 9).

(13)

suposta sugestão de poder classificá-lo como sendo uma espécie de indivíduo de “vida notável”. Porém, ainda continuará sendo perceptível, a relação de dependência que este tem com os períodos predecessores. [...] a sociedade não é um baile à fantasia, em cada um pode

mudar a máscara ou fantasia a qualquer momento (ELIAS, 1994, p. 34). Desde o

nascimento, estamos “presos” às relações que foram estabelecidas antes de nós e que existem e se estruturam durante nossa vida (TOMAZI, 2010, p. 15).

Do ponto de vista dos objetivos – gerais e específicos – busca-se descrever a complexidade do conceito de desespero humano apresentado por Kierkegaard, situando-o como um resultado de uma empresa argumentativa que se desenvolveu a partir do prisma de uma construção antropológica, onde em última instância, objetiva-se a formação e a constituição do eu, marcado por uma relação consigo mesmo (o finito) e com Deus ou a ideia de Deus (o infinito). Procuramos apontar as principais características daquilo que o autor chamou de desespero visto sob a categoria do eu relacionado com a problemática da doutrina do pecado em Paul Tillich. Ainda em um segundo momento, busca-se também especificar os objetivos da pesquisa, investigando e problematizando se é possível a partir do referido conceito de desespero apresentado por Kierkegaard, estabelecer ou não concordância ou equiparação como a concepção da doutrina de pecado (como sendo um estado de “alienação do ser”) elaborada por Tillich. Nossa hipótese, é que tanto a noção de desespero em Kierkegaard, como a concepção de pecado em Tillich, possui um intercâmbio fecundo de relações profundamente relevantes. Ou seja, estamos diante de um processo dialético, visto que se em Kierkegaard a autoconsciência do eu, remete a doutrina do pecado em Tillich, teríamos supostamente uma espécie de “processo inverso”.

(14)

outro solo, nomeadamente ‘extra’, ‘para além’ do solo da tradição “filosófica” ou “teológica” e suas facetas lógicas, epistemológicas, morais etc. Haja vista, talvez seja esta a grande inovação de Kierkegaard e Tillich que, de fato, precisa ser compreendida e que justifica este trabalho, com efeito de interpretar a religiosidade do pensamento ocidental, a partir de uma “exterioridade”, de outraótica, – de uma novaótica –, que justamente por esta “inovação” e distanciamento sejam capazes de enxergá-la em seu verdadeiro valor, ou seja, enquanto algo que contribui ou não para a expansão da vida. Nas palavras de Kierkegaard, de forma irônica, a verdade eterna nunca é facilmente encontrada através de argumentos sistemáticos (KIERKEGAARD, 2013, p. 46).

Do ponto de vista metodológico, estabelecemos uma abordagem de caráter bibliográfico. Como será explicitado ao longo do trabalho, o referencial teórico é suficiente para um levantamento das problemáticas que aqui forem elencadas. Foi feito uma análise apurada dos textos que contribuíram para o avanço da pesquisa. Criteriosamente estas obras constituir-se-ão de matérias publicadas em livros, ensaios científicos, artigos e revistas especializadas. Tudo isso, na tentativa e objetividade de extrair o máximo de avanço através de uma pesquisa bibliográfica rigorosa das fontes e comentadores. No decorrer desse trabalho, adotamos como critério, o de procurar estabelecer certa “autonomia” na descrição dos respectivos capítulos, permitindo assim, ao leitor, a possibilidade de compreender mais detalhadamente cada autor, de maneira mais individual possível, ou seja, a partir de seus próprios textos, procurando não fazer nenhuma relação precipitada e imediata. Estruturando o que fora dito, os respectivos capítulos terão três divisões.

No primeiro capítulo, as reflexões se destinam a analisar e a interpretar a maneira como Kierkegaard desenvolveu a sua estrutura argumentativa o chamado conceito de

desespero humano. A ideia principal é a de procurar apontar que, segundo esse autor, a

(15)

forte influência do filósofo nas reflexões do teólogo, sobretudo, em relação ao problema da alienação e do pecado, tendo como principal pano de fundo o conceito kierkegaardiano de

(16)

1. O DESESPERO HUMANO EM KIERKEGAARD E SUA RELAÇÃO COM A DOUTRINA DO PECADO

As reflexões desse primeiro capítulo se destinam em poder analisar e interpretar a maneira como o filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard desenvolveu a sua estrutura argumentativa, o chamado conceito de desespero humano. A ideia principal é a de procurar apontar que, segundo esse autor, a problemática em questão, encontra-se envolvida e entrelaçada a um problema de maior abrangência de caráter filosófico-antropológico que, por sua vez, deve remeter, necessariamente, à doutrina e ao dogma do pecado original. Obviamente, isso pressupõe que, embora estejamos diante de uma preocupação filosófica, essa deve também refletir a uma temática de caráter teológico, mítico e religioso. Portanto, é compreensível e faz-se necessário mais uma vez pensar nas múltiplas faces que comportam a difícil relação da interdisciplinaridade entre filosofia e religião ou entre filosofia e mito. 1 Isto é, assim como não se pode avançar em estudo teológico público e no plural, sem que antes o teólogo reconheça a sua inerente herança filosófica, sobre a qual a teologia encontra-se firmada, assim também não é possível ao filósofo desenvolver sua pesquisa se tão somente passar a ignorar dos ditames regulatórios e influenciantes que proporcionaram o seu nascedouro (PENNENBERG, 2008, p. 9- 10). Devemos reconhecer que a transição da exegese histórico-crítica da Bíblia para a teologia sistemática não pode ser efetuada adequadamente – em termos de passagem para a formação autônoma da opinião – sem uma consciência constituída filosoficamente (PANNENBERG, 2008, p. 17). 2

Poder-se-ia, desde logo, continuar perguntando por que Kierkegaard se propõe a fazer filosofia da religião sem recorrer necessariamente, aos tradicionais métodos do discurso? Ou seja, sem ter que apelar imediatamente a uma dogmática divinatória ou aos princípios lógicos e formais de uma teologia sistemática. Para responder essa pergunta, compreendemos que em Kierkegaard o trabalho discursivo que se propõe a estabelecer para compreensão do fenômeno

1 É necessário considerar que a filosofia nasce passando pelo interior da epopéia homérica e dos poemas de

Hesíodo, de tal modo ou forma que “o começo da filosofia não coincide com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico” (CHAUI, 2006, p. 35). Como também já afirmava J. P. Vernant que não se trata apenas de encontrar na filosofia o elemento antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo (VERNANT, 1958, p. 82).

2 Segundo Pannenberg (2008), os desdobramentos dessa discussão obrigatoriamente devem remeter a diversos

(17)

religioso, passa obrigatoriamente pela filosofia e pela literatura. 3 Embora Kierkegaard tenha se declarado um escritor religioso (KIERKEGAARD, 1986, p. 22), o fenômeno da religião e da religiosidade em sua obra, só pode ser compreendido quando se reconhece que sua análise do discurso e abordagem literária não se restringe puramente aos redutos de certa

canonicidade-confessante. Isto é, o estudo da religião em Kierkegaard não é

dogmático-exegético e muito menos ingênuo. Nesse sentido, os aportes teóricos por ele elencados foram tecidos sobre o emblemático uso da ironia. A ironia em Kierkegaard é pressuposto básico onde o indivíduo vê a possibilidade de consolidação de sua própria autonomia e liberdade, sendo essa, detidamente de caráter existencial. Assim, para compreender a construção filosófica da religiosidade na obra de Kierkegaard é preciso pensá-la como uma espécie de “espiritualidade vivida”. Para o autor não basta simplesmente dizer que és religioso, é necessário, sobretudo, vivenciar de fato, essa mesma religiosidade. Não basta simplesmente nascer cristão é necessário Tornar-se-cristão afirmava Kierkegaard (KIERKEGAARD, 1986, p. 98). O paradoxo que determina a originalidade da obra de Kierkegaard deve, sobretudo, repousar em sua perspicácia de procurar demonstrar, que não só perdemos – existencialmente – a nossa autonomia ou capacidade de se Tornar-se-cristão, como também a de se Tornar-se- indivíduo.

Do ponto de vista estrutural, o primeiro capítulo terá as seguintes divisões: O desespero humano como problema antropológico, o problema antropológico como um problema

teológico, pecado e desespero: edificação ou cura. No primeiro tópico, procuramos

demonstrar que para Kierkegaard a temática antropológica é fundamentalmente importante para compreender sua filosofia. O problema do desespero humano é apresentado pelo autor como elemento fundante que determina a constituição do Eu. Já no segundo tópico (o problema antropológico como problema teológico) será abordada a difícil relação entre filosofia e teologia. Embora Kierkegaard não se considere um “filósofo sistemático”, 4 as diversas categorias da existência que aparecem em sua obra, dentre as quais se destaca o

3 Aqui tocamos o problema do método Kierkegaardiana. A guinada literária de Kierkegaard pode ser sintetizada

nos seguintes termos: sua obra contém elementos de filosofia e religiosidade, cuja estrutura discursiva nos é apresentada por meio de uma comunicação indireta, a qual dever ser analisada mediante critérios de interpretação específicos (SILVA, 2012, p. 1). Assim, em Kierkegaard a relação entre teologia, filosofia e

literatura, está posta como uma espécie de amálgama paradoxal.

4 Essa ausência de “titularidade filosófica sistêmica” é compreendida na medida em que o autor é abertamente

(18)

desespero humano, ao mesmo tempo em que representa uma construção filosófica, ela toca o problema religioso, nesse caso o problema do pecado. O último tópico ou seção se entrelaçam. É necessário primeiro compreender – ainda que de forma panorâmica – o problema teológico do pecado hereditário, sobretudo procurando fazer sempre referência à originalidade de Kierkegaard na abordagem do tema. Só depois é possível pensar e fazer referência a uma suposta edificação ou cura.

1. 1 O desespero humano como problema antropológico

O problema do desespero em Kierkegaard faz parte de sua antropologia. Não se trata de uma opção. No entanto, o nosso objetivo principal não é o tratar por completo – sistematicamente – a antropologia Kierkegaardiana, tendo em vista que para isso seria necessária uma pesquisa a parte. Por essa razão, objetivamos uma delimitação temática, para que possamos estabelecer uma análise criteriosa, de sua obra O Desespero Humano: doença até a Morte. Nesta obra, escrita em 1849, Kierkegaard utiliza o pseudônimo Anti-Climacus para sua publicação. No corpus kierkegaadiano, a utilização de cada pseudônimo, deve a princípio, possuir funções especifícas. É necessário compreender a estrátegia literária de Kierkegaard. Ou seja, se pensarmos em sua escrita pseudonímica como ressonância de ecos, de vozes interdiscursivas, veremos que esta se constitui em discurso intricado (LEÃO, 2011, p. 96). Para o autor, nós – os leitores – entrevemos os pseudônimos como máscaras sob as quais não se divisam rostos reais, pois Kierkegaard, o escritor de carne e osso – a que se convencionou chamar de autor empírico – é assim sujeito ficcionalizado e destituído de qualquer unidade (LEÃO, 2011, p. 96).

(19)

nada de finito, nem mesmo o mundo inteiro, poderá satisfazer eu de um homem que sente a grande necessidade do infinito (GRAMMONT, 2003, p. 68).

No que diz respeito a nossa pesquisa, a análise do discurso de Anti-Clímacus precisa ser comparada com a discursividade de outro pseudônimo de Kierkegaard denominado de Johannes Clímacus.5 De fato, Clímacus é um pseudônimo que possui uma espécie de “biografia” com psicologia e lógica própria (REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ele inclusive é descrito com um autor jovem, de grande capacidade intelectual e especulativa, sobretudo familiarizado com os gregos, além de leitor atento de Descartes, Leibniz e Espinosa (REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ora, Clímacus se declara ser o único dinamarquês que não consegue ser cristão, seja pela institucionalidade de uma religião confinada a um simples fenômeno geográfico, como também pela tentativa hegeliana de síntese entre cristianismo e filosofia; Anti-Clímacus é diametralmente o oposto deste, sendo considerado e apresentado por Kierkegaard um autor cristão em grau eminente, por definição (REICHMANN; VALLS, 2011, p. 11).

Em se tratando da obra do pseudônimo Anti-Clímacus O Desespero Humano, a mesma foi dividida em duas partes principais: (1) A Doença Mortal é o Desespero; (2)

Desespero e Pecado. Estas duas partes por sua vez, estão subdivididas em cinco livros. Cada livro, dividido em diferentes números de capítulos. Na primeira parte, temos diversos apontamentos de caráter filosófico-antropológicos, na segunda, diversos aportes de caráter

teológico-religiosos. Na primeira parte, o nosso autor dialoga com a tradição metafísica, por isso, é comum à utilização de termos como: finito e infinito, necessário e possível, liberdade e

determinação, o eu e o nada (KIERKEGAARD, 2010, p. 25-97). Na segundo parte,

Kierkegaard utiliza-se de alguns termos teológicos como: Deus e a ideia de Deus, pecado e tentação, o demoníaco, a salvação, a cura, a edificação e a remissão de pecados entre outros (KIERKEGAARD, 2010, p. 101-166).

Grosso modo, a antropologia kierkegaardiana tem como mola propulsora a ideia fundamental de que a constituição do eu é determinada por um processo dialético interno de relação do eu consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 25). Trata-se da relação ou inter-relação entre o finito e o infinito. Para Kierkegaard, o primeiro é identificado como homem, e

5 O respectivo pseudônimo que inspirou Kierkegaard teve uma existência real. Ele teria vivido no ano 600 da Era

Cristã, como monge no Mosteiro do Monto Sinai sendo um inclusive autor místico. Sua principal obra intitula-se

(20)

o segundo ora como Deus, ora como a ideia de Deus. Esse processo relacional é marcado e caracterizado por uma mescla sintetizante. Ele diz:

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. É, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa alheia a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para própria interioridade. O eu não é, a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25).

Nesse sentido, ao afirmar que: [...] o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25) Kierkegaard supostamente teria construído sua antropologia de maneira diferenciada da tradição filosófica cuja mediação está sempre posta sobre a base do gênero. Isto é, a natureza ou essência do homem é caracterizada não por uma determinação a priori, mas sim por uma construção existencialmente autônoma a posteriori. De fato, aparentemente, não é tão simples de ser percebido aqui o nascimento de um “novo paradigma”. Na tese kierkegaardiana, o eu

possui uma estrutura determinada originalmente – que é a de ser uma síntese, ainda que complexa – e essa estrutura original é, no sentido próprio do termo, uma natureza ou uma essência (FERRO, 2011, p. 141). Aparentemente na filosofia de Kierkegaard, portanto, a essência precederia a existência e Anti-Climacus faria parte de uma tradição antiga, daquela que parte da Grécia (FERRO, 2011, p. 141). Na tradição filosófica - na qual Aristóteles vai aparecer como uma espécie de “figura principal” - tornou-se convencional achar que o conceito de natureza humana é detidamente determinado a partir da ideia de um conjunto de elementos estruturais fixos na existência humana, elementos que ela não pode dispor, que, portanto, limitam-se e constrangem, e que constituem o âmbito a partir do qual a vida humana deve obrigatoriamente se desenrolar (FERRO, 2011, p. 141). Ora, se por natureza se entende qualquer coisa deste gênero, é certamente claro que Anti-Climacus admite a existência de uma natureza humana, e que ela possui, como se afirmou, a estrutura de uma síntese (FERRO, 2011, p. 141).

É justamente esse tipo de leitura que precisa ser criticamente refeita ou reelaborada. Segundo Nuno Ferro (2011), existe uma imprecisão tanto na leitura que fazemos de Aristóteles, como também – dentro desse contexto – consequentemente de Kierkegaard. É necessário, sobretudo, fazer uma diferenciação ou comparação entre os diversos sentidos de

(21)

(quinto), Aristóteles criou diversos sentidos de natureza que acabou de certa forma, determinando o rumo da metafísica essencialista (ARISTÓTELES, 2002, p.199). Em geral, todos eles estão relacionados com o princípio interno de movimento ou crescimento num ente (FERRO, 2011, p. 142). Assim, são naturais, neste sentido do termo, aqueles entes que possuem uma unidade real dinâmica, que são unos e passam a ser o que são a partir de si, de tal modo que contêm os princípios do seu desenvolvimento que crescem, portanto, a partir de dentro, passe a redundância (FERRO, 2011, p. 142). Aristóteles, na passagem indicada, apenas indica que tal princípio é imanente, mas não específica – ou pelo menos não é claro que o faça – a relação entre o princípio dos atos e os atos condicionados por tal princípio, quer dizer, que determinação está em causa nesse princípio de unidade e de desenvolvimento (FERRO, 2011, p. 142-143). Por outro lado, citando também o exemplo apresentado por Aristóteles no livro Θ (nono), o autor procura mostrar que o quadro muda completamente (FERRO, 2011, p. 143). Ou seja, nesse livro, Aristóteles expõe a diferença entre potências

racionais e potências não racionais, a saber: potências naturais ou naturezas

(ARISTÓTELES, 2002, p. 399, 401).6 Proporcionalmente, a diferença consiste no fato das potências não racionais – as naturezas, como se disse – não admitirem efeitos contrários, e estarem, portanto, determinadas a um único efeito, a um único ato (FERRO, 2011, p. 143). Já as chamadas potências racionais são capazes, por si mesmas e não por acidente, de efeitos ou atos contrários, e não estão, assim, determinadas ontologicamente (FERRO, 2011, p. 143). Esta diferença entre tipos ou gêneros de potências ocasionará fortes polêmicas, sobretudo a partir do sec. XIII, que serão decisivas para a compreensão moderna e contemporânea que temos de nós próprios. Não é obviamente possível seguir a pista destas polêmicas, apesar de haver nelas traços claros na obra de Kierkegaard (FERRO, 2011, p. 143).

Jean Paul Sartre (2011) entende que o procedimento aqui adotado, permite compreender que o problema antropológico em Kierkegaard deve remeter a uma mudança de paradigma no campo filosófico, sobretudo, metafísico. É justamente essa mudança que o filósofo francês vai valorizar. Sartre reconhece que esse é um dos grandes fatores que ainda faz Kierkegaard – mesmo depois de sua morte em 1855 – continuar um “ser vivente”,

6 Nas palavras de Aristóteles temos: enquanto as potências racionais são as mesmas para ambos os contrários,

(22)

atualizado e dialogando com a geração contemporânea (SARTRE, 2011, p. 168). Ele diz: [...] não se trata de se concentrar no problema religioso da encarnação do Cristo, nem nos

problemas metafísicos (SARTRE, 2011, p. 168). O que Sartre busca é se concentrar e

valorizar a questão do [...] paradoxo da existência histórica (SARTRE, 2011, p. 169). A questão chave, ou seja, o grande diferencial da filosofia kierkegaardiana foi procurar [...] estabelecer um conhecimento histórico de uma verdade eterna (SARTRE, 2011, p. 169). Essa noção é chamada por F. Farago (2006) como sendo um processo de criação humana onde o

movimento de transcendência repousa no coração da imanência (FARAGO, 2006, p. 91).

Trata-se de um paradoxo. Perceba, Anti-Clímacus parece ter em mente uma das perguntas fundamentais levantadas por Kant: o que é o homem? Ele responde: o ser humano é espírito (ROOS, 2009, p. 69). Mas se ficasse apenas confinado nessa afirmação, aparentemente, estaríamos de novo naquelas típicas e conhecidas definições confessionais. Mas Anti-Clímacus não para ai. Ele diz: [...] Mas o que é espírito? Espírito é o eu (self)

(KIERKEGAARD, 2011, p. 25). Em outro lugar: [...] eu não possui existência real, e não é

senão o que será (KIERKEGAARD, 2011, p. 46). A capacidade de valorizar a concretude da

existência humana, eis a grande originalidade de Kierkegaard (SARTRE, 2011, p. 170). Uma nova antropologia que visa e se preocupa, sobretudo em entender, de maneira diferente a ideia de ação, reformulando a concepção do sujeito em suas dimensões jurídica, política e religiosas, bem como as correlatas estratégias ou formas de legitimação do sujeito. Em Rubem Alves (2012), a legitimação do sujeito é caracterizada pela sua capacidade de não, mas reagir, mas principalmente responder (ALVES, 2012, p. 57). O reagir é um ato que se localiza na esfera do biológico. O responder, contudo, pertence à esfera da liberdade (ALVES, 2012, p. 57). No que diz respeito à História da Filosofia Contemporânea focaliza-se o processo de desconstrução e reconstrução do sujeito, desde a redução do cogito a uma ilusão gramatical até a uma perspectiva existencialista, fenomenológica ou hermenêutica.

(23)

Todavia, é necessário responder o questionamento: Como se forma ou se desenvolve o fenômeno do desespero na antropologia de Kierkegaard? Para responder esse questionamento é preciso que fique bem claro que a antropologia kierkegaardiana é forjada através de um processo relacional, composto por uma tríade dialética (BERARDINI, 2011, p. 24). Na antropologia de Kierkegaard, o homem, o espírito e o eu possui características correlatas. Portanto, esse vínculo levanta uma identificação entre os termos (BERARDINI, 2011, p. 24). Estes três termos - o homem, o espírito, e o eu - são os mesmos? Confiantemente responder a esta questão não é de imediato possível. Deve se prestar atenção às palavras que se seguem, a fim de encontrar uma brecha frutífera dentro do problema (BERARDINI, 2011, p. 24).

O problema do desespero acontece no interior da antropologia kierkegaardiana, sobretudo porque em geral, sua filosofia busca valorizar – tanto nos textos pseudônimos como na comunicação direta – o conceito de possibilidade (FERREIRA, 2006, p. 19). Isto é, dentro do ponto de vista das prioridades, nos meandros das categorias do necessário e do contingente, Kierkegaard vai concentrar seus eforços reflexivos na segunda, ou seja, na possibilidade (FERREIRA, 2006, p. 19). Portanto, se os objetos e o mundo da natureza (pontências não racionais) pertencem ao mundo do necessário, o homem (pontência racional), existente concreto em relação consigo mesmo, e com os outros, pertencem ao mundo do possível (FERREIRA, 2006, p. 19). A existência do homem – do nascimento a morte – é marcada pelo fenômeno do contingente. [... ]A existência é contigência (FERREIRA, 2006, p. 19). Nesse sentido, [...] o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p. 25), porque a concretude de sua existência depende da coragem do próprio eu, ou seja, de querer ser ele próprio, no processo de relação consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 101).

Ora, é justamente neste ponto que o desespero é forjado. O terreno das possibilidades é amplo. Proporcionalmente, devido essa mesma amplitude, tende a ser escorregadio, nebuloso e incerto. Assim, existir para Kierkegaard, sempre será um risco. A dificuldade de entender a nebulosidade e a incerteza de sua própria existência faz com que eu se desespere. Trata-se de uma discordância interna, ou seja, uma espécie de má relação consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 28-29).

Kierkegaard (2010) afirma:

(24)

portanto, em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza. De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo própria [...] (KIERKEGAARD, 2010, p. 28-29).

Mas é possível escaparmos do desespero? É possível ficarmos existencialmente imunizados contra ele? Contudo ainda, insiste Kierkegaad afirmando que não. 7 Pois, para o autor, desespero é universal (KIERKEGAARD, 2010, p. 37). Nesse sentido, a totalidade de tudo que temos percebido até agora, é que não podemos nos imunizar totalmente dele. Assim, ao mesmo tempo em que Kierkegaard afirma que desespero é discordância interna da relação do eu consigo mesmo, por outro também, paradoxalmente, o autor defende a impossibilidade de furgirmos dele. Fazendo uma alusão às ciências médicas, o autor tenta nos convencer de sua teoria, que o fenômeno do desespero humano é uma espécie de “enfermidade” ou doença inerente e latente dentro de nós, ou seja, [...] Não é ser desesperado que é raro, o raro, o

raríssimo, é realmente não ser (KIERKEGAARD, 2010, p. 38). A universalidade do

desespero é descrita por Kierkegaard da seguinte forma:

Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecimento ou que ele nem ousa conhecer, receio de uma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem de um doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, por lampejos, raramente, um medo inexplicável lhe revela a presença interna [...] Não é ser desesperado que é raro, o raro, o raríssimo, é realmente não ser [...] Geralmente, quem se não confessa doente passa por são, e mais ainda se é ele quem se considera saudável. Os médicos, pelo contrário, olham de outro modo as doenças. Porque têm uma ideia precisa e desenvolvida do que seja a saúde, e por ela se regulam para julgar nosso estado. Não ignoram que, assim como há doenças imaginárias, há saúdes imaginárias; por isso receitam remédios para tornar o mal patente (KIERKEGAARD, 2010, p. 37-38).

Vejo ainda em Kierkegaard basicamente duas linhas (fora a problemática do pecado) que estruturam as personificações do desespero humano que determinam o fio condutor de sua antropologia:

(i). A do desespero considerado apenas quanto aos fatores dialéticos da síntese do eu

(KIERKEGAARD, 2010, p. 46-59). Nesse tipo de personificação do desespero, Kierkegaard vai apresentar quatro aspectos diferenciados, que são: (a) O desespero da infinitude, ou a carência do finito; (b) O desespero do finito, ou a carência do infinito; (c) O desespero do

7 Nessa mesma obra, Kierkegaard sinaliza em uma nota de roda pé, que talvez somente as crianças estivessem

(25)

possível, ou a carência da necessidade; (d) O desespero da necessidade, ou a carência do

possível. Em todos esses aspectos, Kierkegaard está pensando sobre âmbito dialético

(KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Ora, para nosso autor, isso deve ocorrer porque nenhuma forma de desespero pode ser pensada ou descrita adequadamente de forma direta. Toda apropriação conceitual das diversas variantes que determinam o desespero humano, só podem ser de fato compreendidas, a partir de seu contrário, ou seja, dialeticamente (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). A dialética da existência humana, afirma Kierkegaard, possui semelhanças como as formulações da filosofia Fichte 8 (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). [...] Assim como o eu, também a imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o, cria o possível do eu (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Portanto, sua intensidade é o possível da intensidade do eu. A força contrária entre as categorias do finito e infinito, do possível e do necessário, é essencial para transformação do eu (KIERKEGAARD, 2010, p. 52). Com efeito, o eu só pode se transformar sendo livre. A rigor, é justamente essa suposta ausência de síntese na filosofia kierkegaardiana que determinariam o convite à liberdade;

(ii). A do desespero visto sob a categoria da consciência (KIERKEGAARD, 2010, p. 60- 97). Nessa sessão, as personificações apontadas por Kierkegaard foram duas: (a) O desespero que se ignora ou a ignorância desesperada por ter um eu, um eu eterno; (b) O desespero consciente de sua existência; seja por fraqueza (quando o eu não deseja ser a si

próprio); seja por desafio (quando o eu deseja ser a si próprio). Do ponto de vista da

filosofia Kierkegaardiana, quando o desespero é pensando sob a categoria da consciência o mesmo pode ser visto ou configurado a partir de dois aspectos principais. Isto é, o “desespero-fraqueza” e o “desespero-desafio”. 9 No primeiro aspecto, o mesmo pode ser identificado

8 Ao ter feito alusão à filosofia de Fiche, Kierkegaard possibilitou o desencadeamento de diversas pesquisas.

Vários estudiosos, tanto de Kierkegaard como de Fiche, tem procurado estabelecer certa aproximação entre os dois. As pesquisas têm avançado desde sua dissertação sobre Ironia, como também a doença para morte. As faixas de espectro temático têm variado entre a teoria da autoconsciência e a base das reflexões ética a partir de uma antropologia religiosa. Um bom comentário sobre a relação dos dois autores pode ser encontrado no trabalho dos alemães J. Stolzenberg e S. Rapic – Kierkegaard und Fichte: praktische und religiöse Subjektivität

(2010) lançado pela editora De Gruyter.

9 É interessante observar que o próprio Kierkegaard foi quem classificou o primeiro como sendo uma versão

feminina do desespero e o segundo uma versão masculina. Ainda sobre as duas versões de desespero, o autor também procurou deixar claro duas coisas: (1) De que as respectivas versões correm o risco de existirem somente do ponto de vista ideal; (2) Do pensamento ou erro de se achar que na mulher não se possam encontrar formas masculinas de desespero, e inversamente formas de desespero feminino no homem, todavia, ele insiste em dizer que se trata de exceções, visto que comumente às versões tendem a seguir a potencialidade dos gêneros (KIERKEGAARD, 2010, p. 69). Essa suposta “rigidez” de Kierkegaard para com o gênero feminino, tem levantado diversos debates e questionamento na comunidade acadêmica e inclusive gerado algumas pesquisa. Para um estudo mais sistemático sobre o tema, recomendo dois livros de Kierkegaard: Diário de um Sedutor

(1843); O Banquete (In vino veritas) (1845). Ambos fazem parte de obras maiores do autor. O primeiro está

(26)

como fraqueza (KIERKEGAARD, 2010, p. 68). Para Kierkegaard é fundamental compreendermos essa designação. O desespero-fraqueza é o desespero do imediato (KIERKEGAARD, 2010, p. 73). Nesse contexto, o homem do imediato, ao desesperar-se, nem sequer tem um eu suficiente para ao menos desejar ou sonhar ter sido aquilo que não foi. Assim, procurar defender-se de outra maneira desejando ser outro (KIERKEGAARD, 2010, p. 73). A imediaticidade na filosofia de Kierkegaard deve remeter ao seu modo estético de existência, cujo apego está em confundir interioridade do eu com exterioridade do mundo (KIERKEGAARD, 2010, p. 73). A segunda versão do desespero visto sob a categoria da consciência é chamado pelo autor de desespero-desafio. Em geral, nessa versão, o eu busca ser ele mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 90). O desespero-desafio também é caracterizado como uma espécie de eu que é senhor de sua própria casa. Porém, paradoxalmente o drama da existência, convence-nos sem muita dificuldade que esse príncipe absoluto é um rei sem reino, que, no fundo, sobre o nada governa. Ele diz: O homem desesperado não faz, portanto, mais que construir castelo no ar, e bater-se sempre sobre moinhos de vento

(KIERKEGAARD, 2010, p. 92).

Hannah Arendt (2002) afirma que através do conceito de desespero humano Kierkegaard promove-se de forma magnífica o nascimento de uma nova antropologia (ARENDT, 2002, p. 24). Partindo de uma crítica consciente de Hegel, ele constrói seus argumentos. Ela diz: [...] Ao sistema hegeliano que pretendida apreender e explicar o “todo”, ele expôs a “pessoa única”, o homem individual, para qual não foi deixado nenhuma

lugar no Todo (ARENDT, 2002, p. 24). Para Arendt, a impessoalidade do sistema hegeliano

gerou o desespero do homem. Em outras palavras, Kierkegaard parte do desespero do indivíduo em mundo completamente explicado (ARENTD, 2002, p. 24). Assim, o elemento universal, como o qual a filosofia até então estivera ocupada na tarefa do conhecimento puro, deve ser trazido para uma relação real com o homem (ARENDT, 2002, p. 25).

Da mesma forma, W. Pannenberg (2008) entende que essas personificações do desespero humano apresentados por Kierkegaard, é fruto de uma espécie de “guinada antropológica” que ressoa como uma senha, sobretudo no entendimento da esquerda hegeliana (PANNENBERG, 2008, p. 269). 10 Em sua obra Filosofia e Teologia: tensões e

Errante em Kierkegaard. Sobre a figura feminina em o Banquete, a um ensaio publicado por Ana C. C. Barbosa – In Vino Veritas: o amor em o Banquete kierkegaardiano pela Revista Cadernos UFS – Filosofia (2010).

10 A expressão é cunhada da chamada “esquerda hegeliana”. Trata-se de um grupo de estudantes jovens

(27)

convergências de uma busca comum, Pannenberg chama nossa atenção defendendo que Kierkegaard faz parte de um gama de autores cujo pensamento justifica-se sobre a base e normatividade do princípio antropológico (PANNENBERG, 2008, p. 269). Ora, nesse sentido, se fizermos uma comparação das reflexões de Kierkegaard como outros autores também considerados hegelianos de esquerda, vamos nos deparar facilmente com elementos de caráter correlatos (HABERMAS, 2007, p. 264).

Por exemplo, de maneira análoga, Kierkegaard compartilha com a filosofia de L. Feuerbach na medida em que também considera a religião sistematicamente construída ou institucionalizada como sendo nada mais que expressões humanas (PAULA, 2009, p. 21). Nesse sentido, tanto Kierkegaard como Feuerbach admitem a ineficácia das produções teológicas. Isto é, a teologia deve ser considerada uma produção distante da realidade em que afirmapesquisar, estando no âmbito de mera produção humana (PAULA, 2009, p. 22). Porém, o filósofo dinamarquês, ao contrário da concepção feuerbachiana, não acreditava na ciência como fator do progresso humano (PAULA, 2009, p. 22). Assim, também, é possível aproximar suas reflexões como filosofia de K. Marx, sobretudo ao denunciar a consciência de crise que acompanha uma modernidade inquieta de uma sociedade burguesa (HABERMAS, 2007, p. 264). Não obstante isso, distanciando-se dele, Kierkegaard busca o caminho que permite sair do pensamento especulativo e da sociedade burguesa corrompida, apegando-se a subjetividade com verdade, pois para o mesmo, esta não significaria a simples inversão da relação entre teoria e práxis, mas a confecção autônoma de uma resposta existencial à questão luterana dirigida a um Deus misericordioso, que frequentemente o atormenta (HABERMAS, 2007, p. 264).11

Ainda comparando Kierkegaard a Marx, Hannah Arendt continua afirmando que de modo similar, embora no polo diametralmente oposto, tanto Kierkegaard como Marx, defendem que o homem poderia “mudar o mundo” ao invés de tentar explicá-lo (ARENDT, 2002, p. 26). Comum a ambos havia o fato de que eles queriam chegar de imediato na modernos caracterizados por uma estrutura de auto-relação que ele denomina de subjetividade: “o princípio do mundo moderno é em geral a liberdade da subjetividade, princípio segundo o qual todos os aspectos essências presentes na totalidade espiritual se desenvolvem para alcançar o seu direito” (HABERMAS, 2000, p. 25). No entanto, é justamente sobre essa razão objetiva hegeliana que Kierkegaard vai se posicionar contra. O que também não invalida a teoria que defende que de fato seja impossível uma “compreensão adequada” do pensamento de Kierkegaard a não ser a partir do pensamento de Hegel. Dentre os que defendem esse impasse é possível citar T. Adorno. Para o filósofo alemão, Kierkegaard não só depende do pensamento de Hegel com também desenvolveu seu próprio fazendo uma leitura supostamente “equivocada” de diversos pressupostos hegelianos (ADORNO, 2011, p. 162).

11 É por isso que Habermas afirma que Kierkegaard deve ser considerado um filósofo pós-moderno, ou seja,

(28)

atividade humana, sobretudo por que não aderiram à ideia de começar a filosofia sobre uma nova base ou sistema, uma vez que passaram a desconfiar e duvidar das respectivas prerrogativas e da possibilidade de um conhecimento puro e contemplativo (ARENDT, 2002, p. 26). Porém, a grande diferença – segundo Hannah Arendt – é que Marx supostamente teria voltado a aceitar a certeza da filosofia hegeliana, filosofia que o seu “por de cabeça para baixo” mudou menos que o filósofo alemão supôs (ARENDT, 2002, p. 26). Diferente de Kierkegaard que procurou manter-se ligado ao seu desespero em relação à filosofia, por essa razão suas reflexões tornaram-se mais importante para o desenvolvimento posterior da própria filosofia (ARENDT, 2002, p. 27).

Na argumentação que se segue, (próxima sessão) logo perceberemos que as perspectivas antropológicas de Kierkegaard não se restringem a simples rejeição do conceito de razão formulado pelo mundo moderno, mas dialoga com outro elemento que também nasce na modernidade: a crítica da religião (FARAGO, 2006, p. 173-174). Em Kierkegaard, os elementos antropológicos tipicamente personificados em versões diferentes de desespero devem de forma geral remeter-nos a elementos teológicos (PANNENBERG, 2008, p. 277). Isto é, em todas as formulações de sua liberdade, o ser humano individual, segundo Kierkegaard, tem como referência o eterno. A exposição mais impactante desses fatos feita por Kierkegaard encontra-se nos seus dois escritos de maior relevância teológica, a saber: O

conceito de Angústia (1844) e, especialmente, a sua obra-prima O desespero Humano – a

doença para a morte (1848). Os dois escritos tratam, no horizonte da doutrina do pecado ou auto-equivocação quanto à liberdade (PANNENBERG, 2008, p. 279).

1. 2 O problema antropológico como um problema teológico ou a doutrina do pecado

(29)

Ora, como pode ser observado até agora, para Kierkegaard o problema do desespero é um problema antropológico, mas, que, por sua vez, deve também remeter a um problema de caráter teológico, ou seja, o problema do pecado. Ele afirma:

Pecamos quando, perante Deus ou com a ideia de Deus, desesperados, não queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou desafio elevando à suprema potência; é, portanto, condenação do desespero. O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a ideia de Deus; o que faz do pecado aquilo que os juristas chamam “desespero qualificado” a sua natureza dialética, ética, religiosa, é a ideia de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 101).

No entanto, os conceitos teológicos que aparecem (inclusive a doutrina do pecado) em toda filosofia Kierkegaardiana não são de imediato, fáceis de serem pontualmente identificados e compreendidos, visto que Kierkegaard não faz exegese de textos bíblicos. Na verdade trata-se de estratégia literária do próprio Kierkegaard. Isto é, antes do homem passar pelo processo de se “tornar um cristão” é necessário apreender ou reaprender a “tornar-se um indivíduo” (KIERKEGAARD, 1986, p. 98). Nesse sentido, os textos de Kierkegaard remetem-nos à ideia de um paradoxo. Esse paradoxo no modo de escrita Kierkegaardiano só pode ser compreendido, sobretudo, na medida em que lembramos que o mesmo não é um filósofo de sistema. Ou seja: [...] Kierkegaard não é um filósofo de sistema: nunca aspirou a reduzir o Universo a uma harmoniosa concatenação de conceitos – nunca procurou reduzi-lo

a um esquema abstrato (MONTEIRO, 2010, p. 10).

Monteiro (2010) defende que esse caráter “não sistêmico” da filosofia Kierkegaardiana tem gerado uma espécie de problema na comunidade acadêmica. Exatamente por não ser filósofo de sistema, a análise de seu pensamento torna-se presa fácil a escolha absolutizante do fio condutor (MONTEIRO, 2010, p. 10). Afirma: [...] Uma alma religiosa verá nele, de preferência, o prospecto dos caminhos que levam a Deus pelo desnudamento da alma individual [...] Os “metafísicos” por paixão irão sem dúvida ao encontro de

Kierkegaard contra Hegel (MONTEIRO, 2010, p. 10). Isso tudo tente a ser agravado,

(30)

No primeiro aspecto, costuma-se afirmar que Kierkegaard não poderia ser considerado de maneira imediata um “kierkegaardiano” 12 (HOCHMULLE, 2005, p. 342). Para esses, é preciso dar a devida atenção ao estudo da obra de Kierkegaard, sobretudo em decorrência de seu recurso à comunicação indireta, valendo-se de forma simultânea da ironia e da maiêutica socráticas (HOCHMULLE, 2005, p. 343). Nesse sentido, a própria divisão de suas obras em veronímicas e heteronímicas, bem como em escritos estéticos e escritos ético-religiosos ou escritos éticos e escritos religiosos (para além dos estéticos), acentua ainda mais essa dificuldade (HOCHMULLE, 2005, p. 344). Diante desses pressupostos, a melhor forma de tentar compreender a obra de Kierkegaard seria estabelecendo uma leitura à moda do próprio Kierkegaard, ou seja, procurando deixar o leitor o mais próximo de sua própria autonomia (HOCHMULLE, 2005, p. 345).

Já no segundo aspecto, temos uma crítica mais elaborada produzida pelo filósofo alemão Theodor Adorno. Ele defende a impossibilidade de tentar confundir a filosofia de Kierkegaard como poesia, literatura ou teologia (ADORNO, 2010, p. 11). Para esses, ao lermos a obra de Kierkegaard, a primeira coisa de que precisamos para compreendê-la é distingui-la da poesia propriamente dita, visto que os fundamentos que norteiam a filosofia de Kierkegaard, não podem ser necessariamente de imediato, os fundamentos poéticos (ADORNO, 2010, p. 12). Assim, embora a obra do nórdico esteja carregada de elementos poéticos, os mesmos devem ser entendidos como metáforas, estratégia e alegorias, que visam a atingir uma espécie de telos superior (ADORNO, 2010, p. 41). Portanto, não poderíamos desconsiderar que [...] a seriedade estratégica de Kierkegaard se pretendesse anular a

dignidade da palavra pelo recurso psicológico aos pseudônimos (ADORNO, 2010, p. 40).

Haja vista, a exposição do estético em Kierkegaard possui relevâncias filosóficas significativas, cujas figuras estéticas devem ser pensadas apenas como metáforas, estratégicas e alegorias objetivando um telos superior, que não se limita a simples narrativas poéticas ou literárias (SILVA, 2012, p. 2). O problema é que o leitor pode sentir dificuldades de assimilar essas afirmações por dois motivos: (1) Embora Kierkegaard tenha buscado estabelecer uma construção teórica não tão “abstrata”, ou seja, em oposição ao sistema hegeliano que por sua vez colocava o homem como um simples “predicado” de suas reflexões, ao ter priorizado a sua atenção na existência humana, Kierkegaard acabou sendo responsável mesmo sem “pretensão” a uma nova forma de se fazer filosofia. Diante disso, mesmo sendo consideradas

12 Sobre esse ponto, geralmente argumento de refutação é tentativa de afirmar que obra de Kierkegaard embora

(31)

como “não convencionais”, as análises de Adorno não estariam tão distantes da realidade, sobretudo, na medida em que, para o autor alemão, embora Kierkegaard tenha escarnecido incansavelmente de Hegel, o mesmo seria muito mais parecido com ele do que gostaria de pensar (ADORNO, 2010 p. 234). Por exemplo: os elementos da “resignação infinita” que compõem a filosofia de Kierkegaard, ainda que hipoteticamente tente excluir essa suposta totalidade, o mesmo acaba sem perceber remetendo-se à totalidade, comparado inclusive com os ideais de homem dos projetos de Feuerbach (ADORNO, 2010, p. 235); (2) o fato de Kierkegaard ter desenvolvido seu pensamento filosófico através de uma construção e estratégica literária perpassada por diversos elementos como; ambiguidades, ironias, imaginação, pseudônimos, poética, duplicidades, subjetividade auto-reflexiva, jogos

discursivos e paradoxos, proporcionaram que sua obra fosse sempre lida a partir de uma

perspectiva dialógica e polifônica (SILVA, 2012, p. 3).

(32)

(teológico filosófica) que compõem a obra de Kierkegaard, pode-se observar que em meados dos 1920 suas reflexões foram destacadas por Heidegger e Jaspers, sendo direcionadas para uma ontologia antropológica (ADORNO, 2010, p. 344), legando com isso a Kierkegaard os atributos de um filosófico clássico. Para Adorno, essa trajetória de “vitória” constitui-se uma espécie de inverdade, sobretudo em relação às máximas e aos conteúdos doutrinários do próprio Kierkegaard (ADORNO, 2010, p. 347).

No entanto, esses dois posicionamentos, precisam ser comparados como o posicionamento do próprio Kierkegaard. Não podemos nos esquecer de que estamos lindando com uma espécie de “pensador existencial” (PONTES, 2011, p. 174). Nesse sentido, ao refletir sobre o seu método, o autor procurou afirmar que sua principal intenção não poderia ser mais clara: pregar o cristianismo em meio à cristandade (PONTES, 2011, p. 176). Ora, de maneira estratégica inspirado em Sócrates: de modo indireto, fazendo-se mais ou menos ignorante, ou, quando muito, apenas “bem informado” (PONTES, 2011, p. 176), ou seja, constrói-se uma ilusão para lidar com outra ilusão, sendo a primeira a serviço da verdade ou de Deus (PONTES, 2011, p. 177). Assim, Kierkegaard, reconhece estar sozinho nesta empreitada, pois não buscava o reconhecimento de ninguém, embora o futuro pudesse ser-lhe mais clemente (KIERKEGARD, 1986, p. 22). Do ponto de vista da análise do discurso, é como Kierkegaard supostamente procurasse “desaparecer” até para si mesmo como escritor (FOUCALT, 1992, p. 23). Nota-se que, em seus textos “estéticos” (aqueles assinados por pseudônimos) deixam um espaço, em si mesmo, para outro que não existe de fato, sendo, talvez, a ilusão de um ideal pessoal não realizado ou de como se processaria as “etapas no caminho de tornar-se indivíduo”, quem sabe (PONTES, 2011, p. 176). Ora, por exemplo: voltemos para o objeto de nossa pesquisa. Vejamos o conceito de pecado, isto é, a doutrina do pecado original. 13 Como ela aparece nos escritos Anti-Climacus (O Desespero Humano)? Ela foi sistematicamente elaborada por meio de um discurso de uma teologia acadêmica ou de uma exegese bíblica? Os pressupostos apresentados pelo autor dinamarquês são confessionalmente claros? Obviamente que não. É, por isso, que a postura literária de Kierkegaard nem sempre agrada os teólogos tradicionais. Como veremos a seguir, essa suposta não convencionalidade do discurso

13 Não podemos deixar de afirma que a temática do pecado, não se restringe ao livro de Anti-Clímacus

(Desespero Humano), mas deve perpassar a maior parte da obras Kierkegaard. Sobre isso, W. G. Kirkconnell (2011) realizou um estudo preciso onde o mesmo pode demonstrar a presença temática do pecado em diversas partes do corpus kierkegaardiano. Em seu Kierkegaard on Sin and Salvation o problema do pecado está presente em diversas obras. Seguindo a mesma sequência apresentada pelo autor, as principais são: Migalhas Filosóficas, O Conceito de Angústia, Discursos Edificante, Pós-Escrito não Cientifico as Milhas filosóficas entre outras. A originalidade de Kirkconnell reside em estabelecer sua pesquisa observando todas elas concomitantemente como a questão soterológica.

(33)

filosófico-teológico de Kierkegaardiano, sobretudo, em relação à doutrina do pecado, tornou-se a sua originalidade.

1.2.1 O Pecado como consequência de um eu Teológico

Do eu humano ao um eu teológico (KIERKEGAARD, 2010, p. 104). É justamente essa a expressão que Kierkegaard vai utilizar para caracterizar o processo de transição de um “problema de caráter antropológico” para um “problema caráter teológico”. Isto posto, na primeira parte de seu livro, Anti-Climacus procurou demonstrar que a gradação da consciência do eu, foi tratada a partir de um eu humano, cuja medida é o próprio homem (KIERKEGAARD, 2010, p. 104). Seja de forma inconsciente, cujo processo dialético acontece somente por oposição binária – sendo inclusive latente a ausência da eternidade – seja de forma consciente, através de um desespero de fraqueza ou de desafio (KIERKEGAARD, 2010, p. 68).

Em linhas gerais, ao pensar o conceito de um eu teológico, o autor supõe que o mesmo deixaria de estar simplesmente sobre si mesmo, passando a estar de ante a face de Deus ou da ideia de Deus. Kierkegaard explica que esse processo é verdadeiramente de fato dialético, sobretudo, na medida em proporciona uma espécie de entrelaçamento de contraponto entre: finitude e infinidade, entre a concretude do homem e a transcendência divina (KIERKEGAARD, 2010, p. 105). Kierkegaard também nos alerta, que ao mesmo tempo, em Deus ou a ideia de Deus serve com antítese do processo dialético que determina a constituição do eu, o mesmo também constitui uma espécie de critério de “medida e regra” para ética, que pode ou não determinar uma suposta “autonomia” da síntese do eu. 14

Nas palavras do autor temos:

[...] designarei como eu teológico, eu em face de Deus. E que a realidade infinita ele toma então, pela consciência de estar perante Deus, o eu humano agora a medida de Deus. [...] A medida do eu é sempre o que este tem diante de si, e assim se define o que seja “a medida”. Como só se adicionam grandezas da mesma ordem, todas as coisas são assim qualitativamente idênticas à sua medida; medida que é ao mesmo tempo as suas regras éticas; media e regra exprimem, portanto a qualidade das coisas. Não sucede conduto o mesmo no mundo da liberdade: aqui, se não for de qualidade idêntica à medida e à regra e medida, quando cega o juízo final, permanecem, contudo invariáveis, manifestam o que não somo: nossa regra e nossa medida [...] O desespero condensa-se à proporção da consciência do eu, mas o eu condensa-se à proporção da sua medida, e, quanto esta medida é Deus,

14 A Expressão deve sempre pairar sob o âmbito hipotético tendo em vista que Kierkegaard não teria proposto –

(34)

infinitamente. O eu aumenta com a ideia de Deus, e reciprocamente a ideia de Deus aumenta como o eu. Só consciência de estar perante Deus faz o nosso eu concreto, individual, um eu infinito, e é esse eu infinito que então peca perante Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 104-105).

É nítido aqui o convite que Kierkegaard nos faz aos seus modos de existência.15 Na primeira parte do livro, temos a presença dos elementos estéticos e éticos, já na segundo parte, os elementos religiosos. Na primeira parte, o eu que ainda não tem consciência de si, procura se apagar na aparência da imediaticidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Seja por se mergulhar na infinitude da imaginação (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Seja por estar fechado ou preso nas armadilhas da finitude (KIERKEGAARD, 2010, p. 50). Quando não, pode também optar entre a necessidade ou possibilidade, nunca sendo capaz de possuí-las de forma simultânea. É nesse sentido, que eu possui características estéticas. Ainda na primeira parte, (Capítulo II) Anti-Clímacus afirma que eu passa a ter consciência de si, podendo inclusive perfeitamente optar entre querer ser ou não a si mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 60). A capacidade de optar por isso ou aquilo determinam a existência ética do eu. Por fim, a criação e a nomenclatura de um eu teológico deve apontar para aquilo que o dinamarquês chamava de existência religiosa, ou como bem costumava falar outro pseudônimo de Kierkegaard (Johannes de Silentio) a suspensão teológica da moralidade (KIERKEGAARD, 2012, p. 61).

Roos (2009) aponta também para outro fator determinante na filosofia de Kierkegaard, sobretudo em relação ao eu teológico e o dogma do pecado. Trata-se do entrelaçamento que o mesmo faz entre conceito de desespero e conceito de angústia. Embora reconhecessem que nossa pesquisa está sobreposta ao primeiro conceito e a obra de Anti-Clímacus, de fato, não podemos ignorar a maneira como eles se complementam (ROOS, 2009, p. 1). Isto é, assim, como pseudônimo Anti-Clímacus chama o processo de má relação consigo mesmo de desespero – na primeira parte do seu livro – e de pecado na segunda (KIEKREGAARD, 2010, p. 28-29), em O Conceito de Angústia, o autor pseudônimo Vigilius Haufniensis procura enfatizar que o indivíduo é responsável pela própria desestabilização da síntese, o que de

15 Kierkegaard afirma haver três estágios nos quais o eu é inserido de acordo com sua visão e experiências

(35)

acordo com a terminologia teológica usada na obra será chamado de pecado – e que Anti-Climacus descreverá como desespero em toda a primeira parte de A Doença para a Morte

chamando-o de pecado somente na segunda parte (ROOS, 2009, p. 2).

Proporcionalmente, se a angústia é o desencadeamento da relação do homem como mundo de possibilidade, o desespero é resultado do homem em sua relação consigo mesmo. Para Kierkegaard, o desespero é culpa do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade. Trata-se de uma doença morta: [...] eterno morrer sem, no entanto morrer

(KIERKEGAARD, 2010, p. 20) visto que, do ponto de vista cristão, nem mesmo a morte deve ser de fato considerada uma doença mortal, muito menos qualquer outro tipo de sofrimento terreno temporal (KIERKEGAARD, 2010, p. 20). Ora, se quisermos falar de uma doença mortal no sentido estrito, dever-se-ia tratar de uma doença mortal, cujo fim fosse à morte em que a morte fosse o fim, pois paradoxalmente o desespero é viver a morte do eu

(KIEREKGAARD, 2010, p. 21).

Portanto, no texto de Vigilius Haufniensis, Kierkegaard procura dar ênfase no conceito de liberdade atrelado ao conceito responsabilidade, sobretudo, no que diz respeito à desestabilização da síntese (ROOS, 2009, p. 2). É justamente esta questão que deve ser retomada nos escritos de Anti-Climacus, ganhando forma também no que diz respeito a realizar a síntese corretamente (ROOS, 2009, p. 3). Há que se perceber que a responsabilidade (ante a face de Deus ou da ideia de Deus) implicada no processo de desestabilização da síntese corresponderá à responsabilidade implicada justamente no processo de tornar-se um indivíduo procurando restabelecer a síntese que constitui o ser humano em sua devida relação consigo mesmo e com Deus (ROOS, 2009, p. 3).

1.2.2 O Pecado como consequência de um eu desesperadamente Escandalizado

O problema do pecado na filosofia kierkegaardiana deve tocar também na questão da fé (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Em Kierkegaard, a ausência ou a deformação da fé remete-nos a problema do escândalo. Isto é, a definição do pecado implica a possibilidade do escândalo – afirma o autor – e a definição de escândalo implica a possibilidade da incredulidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Ora, sobre a questão da fé, Anti-Clímacus procurou justificar sua presença no fenômeno do desespero, a partir de um texto da epístola aos Romanos (14: 23) que diz: “Tudo que não provém da fé é pecado”.

(36)

Esta oposição do pecado e da fé domina o cristianismo e transforma, cristianizando-os todos, os conceitos éticos, que dele recebe assim o mais profundo relevo. É sobre o critério soberano do cristão que ela repousa: se está ou não perante Deus, critério que implica outro, por sua vez decisivo no cristianismo: o absurdo, o paradoxo, a possibilidade do escândalo. A presença deste critério é de extrema importância todas as vezes que se quer definir o cristianismo, pois é o escândalo que defende o cristianismo contra qualquer especulação (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).

[...] é o escândalo que defende o cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).

Como essa afirmação, mais uma vez podemos entender porque Kierkegaard não se propõe a fazer teologia confessional ou acadêmica. Nesse sentido, seu discurso supostamente não estaria de acordo nem como os padres apologistas dos primeiros séculos, nem tão pouco com as propostas modernas ou contemporâneas de teólogos acadêmicos, visto que o escândalo é quem determina a defesa do cristianismo diante de qualquer tipo de especulação existencial, racional ou científica.

Os desdobramentos desses enunciados são caracterizados por Kierkegaard como sendo fruto de um eu que ao estar diante de Deus ou da ideia de Deus recusa-se a crer, portanto, se escandaliza (KIERKEGAARD, 2010, p. 109). Kierkegaard também defende que o escândalo do cristianismo deve repousar sobre a pena que: estar diante Deus ou a ideia de Deus não pode ser pensado sobre a perspectiva universal ou de gênero, como antes achavam os metafísicos, visto que o eu deve sempre se encontrar isoladamente diante de Deus ou da ideia de Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 109).

Anti-Clímacus afirma:

[...] Onde se encontra então, aqui, a possibilidade do escândalo? Senão nesse ponto inicial, que a realidade do homem devia consistir em existir Isolado

perante Deus; e neste segundo ponto, consequência do primeiro, de que seu pecado deveria ocupar a Deus. Este tête-à-tête do Isolado e de Deus jamais entrará na cabeça dos filósofos; eles não fazem outra coisa senão universalizar imaginariamente os indivíduos na espécie. Foi isso que levou um cristianismo incrédulo a inventar que o pecado não é senão o pecado, sem que estar ou não perante Deus acrescente ou diminua alguma coisa. Em suma, queria eliminar o critério: perante Deus (KIERKEGAARD, 2010, p. 108-109).

Partindo da perspectiva de autores como Massimo Iiritano (1999) e Sergio Berardini (2010), podemos então pensar na influência do desenvolvimento dos conceitos de Angústia e

Desespero elaborados por Kierkegaard, pela instrumentalidade dos pseudônimos: Virgilius

Imagem

Tabela 1 – Principais características da soterologia de kierkegaardiana

Referências

Documentos relacionados

A tem á tica dos jornais mudou com o progresso social e é cada vez maior a variação de assuntos con- sumidos pelo homem, o que conduz também à especialização dos jor- nais,

(grifos nossos). b) Em observância ao princípio da impessoalidade, a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, vez que é

A placa EXPRECIUM-II possui duas entradas de linhas telefônicas, uma entrada para uma bateria externa de 12 Volt DC e uma saída paralela para uma impressora escrava da placa, para

Se você permanecer em silêncio e não der nenhuma informação, o Serviço de Imigração talvez não tenha nenhuma prova que você esteja aqui ilegalmente, eles talvez não

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

a) ( ) Ao emitir títulos a empresa se propõe a pagar uma quantia fixa de juro semestralmente e o valor de face na data do vencimento. E esta taxa de juros não é fixa, pois a