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3. PROCESSOS ECOSSISTÊMCOS E REGULAÇÃO CLIMÁTICA

3.3. Amazônia: Ciclo Hidrológico

3.3.2. O pequeno e o grande ciclo da água amazônica

O mesmo mecanismo ecossistêmico, reproduzido em duas escalas diferentes (local e regional) é responsável por fomentar a circulação de água pela atmosfera na Amazônia. Semelhante a duas engrenagens, o pequeno e o grande ciclo hidrológico criados por gradientes de pressão e energia interagem para sugar umidade para atmosfera, recrutando água tanto da vegetação abaixo quanto de áreas adjacentes mais úmidas como os oceanos (figura 3.1).

O mecanismo ecológico é complexo, mas merece uma breve explicação tendo em vista legitimar o uso, neste trabalho, da área remanescente florestal como indicadores de qualidade dos serviços ambientais.

Figura 3.1. Biotic pump (Bomba biológica) criada pelos gradientes de temperatura e umidade atmosférica na floresta Amazônica. Os gradientes resultam do fato da taxa de evapotranspiração florestal ser maior que a dos oceanos (setas verticais), criando diferenças de pressão de vapor, sugando umidade dos oceanos e regiões adjacentes (setas horizontais). (adaptado de Sheil et al., 2009)

3.3.2.1. O pequeno ciclo: chuvas locais

A formação de uma gotícula de chuva depende de dois fatores: a presença de umidade e um núcleo de condensação de nuvens (NCN) (Artaxo, 2003). A floresta contribui com ambos os elementos (Bonan, 2008, Artaxo, 2003). Primeiro, analisemos o aporte de vapor de água oriundo da vegetação para depois explanarmos sobre os NCN.

O ar perto da superfície da floresta tem uma pressão de vapor23 que excede bastante a pressão do ar mais acima. Associado à diferença de pressão criada pelo declínio da temperatura (resultante do aumento da altitude), gradientes hídricos e

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Em ecologia, o pequeno ciclo está associado a água que evapora e precipita sem passar por sistemas bióticos, enquanto no grande ciclo pelo menos um dos compartimentos é um organismo. Neste trabalho, a conceituação de ambos os termos referem -s e à escala em que ocorre (local - pequeno e regional- grande).

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Vapor de pressão: propriedade física de um líquido que reflete a tendência de vaporização. Quanto maior a pressão de vapor, mais volátil é o líquido. É intimamente dependente da temperatura.

93 térmicos são criados, levando o ar mais quente e rico em vapor de água (maior pressão) próximo ao dossel a ascender a altitudes maiores, onde o ar é mais frio e seco (menor pressão). A queda da temperatura com o ganho de altitude condensa o vapor e parte da água precipita novamente sobre a floresta abaixo. Quanto maior a área florestada, mais intensa é a bomba de umidade (Makarieva e Gorshkov, 2007).

Simultaneamente, a vegetação libera partículas orgânicas voláteis que, devido ao tamanho e peso, ficam suspensas no ar e ascendem junto à umidade posta em movimento pelos gradientes anteriormente descritos, as quais podem funcionar como NCN. Um NCN (núcleo de condensação de nuvens) geralmente consiste em uma minúscula partícula de aerossol, em torno da qual o vapor de água condensa-se, agregando novas moléculas, crescendo até chegar a um peso e tamanho crítico nos quais precipita como gota de chuva. A maior parte dos aerossóis encontra na própria vegetação sua origem, formando um conjunto sortido de moléculas microscópicas suspensas no ar, tais como terpenos24, grãos de pólen, algas, bactérias, entre outras moléculas. Sem elas, a formação das chuvas pode ser comprometida.

3.3.2.2. O grande ciclo: chuvas regionais

A transformação do vapor de água em gota de chuva reduz a quantidade de umidade atmosférica local, criando um segundo gradiente de pressão regional (vácuo), o qual atrai, por sua vez, umidade de áreas adjacentes onde a quantidade de umidade é maior (Sheil et. al, 2009; Makarieva e Gorshkov, 2007). Está criada uma bomba biológica regional (biotic pump). É uma espécie de esteira biológica de umidade que leva água dos oceanos para regiões mais internas do continente (figura 3.1).

Se esta hipótese, apresentada por Makarieva e Gorshkov (2007), estiver certa, duas tendências de precipitação relacionadas à existência de cobertura vegetal são esperadas à medida que nos afastamos da costa em direção ao interior. Em uma, espera-se que em transectos lineares e contínuos de solo exposto a partir da costa para o interior, o volume precipitado tende a cair exponencialmente, enquanto na outra, supondo o mesmo transecto, porém florestado, não são esperadas alterações. Esta esteira mantida pela floresta frequentemente é referida com o nome de rios voadores.

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Terpenos: moléculas menores que 2 micrômetros e que, após oxidadas, crescem até atingirem tamanho suficiente para funcionarem como núcleos de condensação

94 3.3.2.2.1. Rios Voadores: o grande ciclo hidrológico sul americano

Pesquisas ao longo dos últimos quarenta anos vêm demonstrando que as massas de ar formadas próximas ao equador sobre o oceano cruzam o continente sul- americano de leste a oeste (figura 3.2). Em baixas latitudes precipitam sua umidade ao mesmo tempo em que são reabastecidas pelo aporte hídrico oriundo da vegetação (Marengo, 2006, Salati, 1978; Salati, 1984, Sheil et al., 2009, Bonan, 2008, Ferreira et al, 2005). A marcha prossegue até encontrarem a cordilheira dos Andes, a qual reorienta a umidade para latitudes sul mais elevadas, trazendo pluviosidade para o centro-sul brasileiro, nortes da Argentina e chaco Paraguaio (figura 3.2).

Parte da água precipitada durante o trajeto escorre superficialmente para os rios, retornando ao oceano, enquanto a maior parte é retida pela vegetação e volta à atmosfera por meio da evapotranspiração (tabela 3.2). Dessa perspectiva, a floresta funciona como reservatório hídrico, o qual impede o retorno prematuro da água para os oceanos e permite o avanço da umidade a áreas mais internas do continente, as quais, do contrário, seriam mais áridas.

Esse curso percorrido pela umidade de norte a sul do continente constitui o chamado Jato de baixa altitude sul americano (LLJ), o qual José Marengo chamou de Rios Voadores, pois se estima que o volume de água transportado seja próximo a vazão do Rio Amazonas. A tabela 3 sugere que a água exportada por tais fluxos aéreos para outras regiões do continente sul americano corresponde a 52% da vazão do Amazonas em sua foz (Fearnside, 2004). Interações estabelecidas entre os Rios

Figura 3.2 Circulação Atmosférica da South American Low Level Jet

east of the Andes (SALLJ).

Massas de ar úmidas formadas sobre o oceano adentram o continente, trazidas por ventos lestes. Ao se depararem com a cordilheira Andina, reorienta seu trajeto para o sul, abastecendo a bacia do Prata no centro-sul brasileiro e nortes argentinos e paraguaios (fonte: Fearnside, 2004).

95 Voadores e outros Biomas brasileiros, como o Pantanal e o Cerrado, ainda são pouco compreendidas.

Tabela 3.2 Fluxo de água na Amazônia (trilhões de m³/ano) e comparação com a vazão média na foz do rio Amazonas (%).

Fonte: adaptado de Fearnside, 2004 e Filgueiras, 2005 *Comparação referente apenas ao valores sugeridos por Fearnside, 2004

3.3.2.2.1.1. Sazonalidade dos Rios Voadores

Os rios voadores são constantes o ano todo, mas apresentam maior intensidade no verão (novembro a março), alimentado pelos ventos equatoriais, enquanto no inverno (maio a setembro), perdem força. Durante esta estação, o centro-sul do continente recebe massas de ar provindas do Atlântico subtropical, as quais trazem quantidade significativamente menor de umidade quando comparada a dos rios voadores.

Observações empíricas demonstram que enquanto o pico pluviométrico da bacia amazônica ocorre de janeiro a abril, o período de maior vazão dos rios é entre maio e agosto, refletindo o papel da floresta na contenção, armazenagem e liberação gradual da água. Costa et al. (2003, apud Marengo 2006) identificou aumento nas médias anuais e no volume máximo de água despejado perto da foz do Amazonas pelo rio Tocantins nos últimos 40 anos, apesar dos valores de precipitação não terem sofrido alterações significativas no mesmo período. Entre 1960 e 1995 o acréscimo à vazão chegou a 25% da média histórica, coincidindo com o aumento nas taxas de desmatamento na área de abrangência da bacia, sugerindo uma correlação direta entre as duas dinâmicas. O mesmo destino pode aguardar tributários amazônicos que tem suas cabeceiras em território mato-grossense, como o Xingu e Tapajós.

Descrição Fluxo (m³/ano) Comparação

(%) * Fearnside,

2004

Vila Nova et. al

1976

Do Atlântico para Amazônia por ventos Alísios

10 ± 1

-

152%

Vazão Média do rio Amazonas em sua foz

6,6

-

100%

Precipitação na baça hidrográfica do Amazonas

15,05

14,4

228%

Evapotranspiração

8,43

8,9

128%

Vapor levado por ventos para outras regiões (Rios Voadores)

96 Durante a estiagem, a contribuição da reciclagem para as precipitações locais ganha importância frente às massas de ar oceânicas, mantendo umidade no interior do continente, mesmo que menor quando comparado a estação chuvosa. No norte do Mato Grosso, durante os meses de seca, a participação da umidade oriunda da vegetação nas precipitações locais é mais significativa que durante o verão (figura 3.3), contribuição fundamental na manutenção das chuvas durante períodos em que o aporte de umidade oceânica diminui (Marengo 2006).

Aqui se coloca uma questão crucial: os impactos do desmatamento no ciclo hidrológico são diversos em função da região considerada. Há regiões cujo regime de chuvas e vazão dos rios são mais vulneráveis ao desmatamento que outras. Assim, estratégias de adaptação e mitigação às mudanças climáticas para o norte do MT – região na qual a remoção da mata irá resultar em estiagens mais pronunciadas - não devem ser idênticas ás do norte de Roraima – região na qual a proximidade com o mar cria um aporte mais constante de umidade - mas incorporar as especificidades que o local exerce no ciclo hídrico da bacia.

A tabela 3.3 resume os serviços ecossistêmicos climáticos fornecidos pelas florestas e cerrados apresentados acima e, quando disponíveis, quantificações dos parâmetros ecológicos relacionados (estoque de carbono, sequestro de carbono e evapotranspiração).

Figura 3.3. Comportamento sazonal da precipitação na porção sul da bacia amazônica, a qual corresponde ao norte do Mato Grosso (P= precipitação; ET= evapotranspiração) Observa-se uma queda acentuada nas precipitações no inverno (maio a setembro), enquanto a participação da evapotranspiração nas precipitações locais (linha pontilhada) aumenta consideravelmente durante o mesmo período, evidenciando a importância da vegetação para a manutenção das chuvas durante a estiagem. (fonte: Marengo, 2006)

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Tabela 3.3 Participação dos cerrados e florestas no balanço do carbono e ciclo hidrológico local e regional. Os valores referentes aos três compartimentos de estoque de carbono discriminados não foram obtidos para a mesma área, mas fazem referencia aos valores mínimos e máximos obtidos a partir de estudos pontuais em diferentes localidades. Desta forma, o valor total apresentado como estoque de C é fruto do somatório de um mosaico de referencias. Porém, é satisfatório visando dimensionar o volume de carbono envolvido no balanço.

Cerrado

Amazônia

Referência

Estoque de C

235 - 380 t C/ha 413-557 t C/ha

Biomassa áerea 2 – 36 t C/ha 115 - 220 t C/ha

Ottmar et al. (2001), Abdala et al. (1998); Castro e Kauffman (1998);

Laurance et al².(1999); Matos e Kirchener (2008); Lima et al. ²

(2007); Gibbs et al.² (2007)

Biomassa raízes 11 - 47 t C/há 22-61 t C/ha

Grace et al. (2006), Castro e Kauffman (1998), Abdala et. al.,

(2008), Miranda et al. (2004), Klinge² (1973), Nepstad et

al.(1994); Fearnside (1994)

Matéria Orgânica do Solo 221-297 t C/há 94 t C/ha (até 1m)

276 t C/ha (até 8m)

Abdala et al. (1998), Castro (1996), Rezende (2002), Brossard et al.

(1997), Moraes et al.² (1995), Trumbore et al.² (1995)

Sequestro de Carbono

0,1-2,5 t C/ha/ano 1-9 t C/ha/ano

Rocha et al. (2002), Miranda et al. (1997), Malhi² (1998); Nobre e

Nobre² (2002); Higuchi et al². (2004); Philips et al². (2008); Grace et al.² (1996), Aguiar²

(2006)

Sequestro de Metano

(Solo)

(?)

27,5 kg CO2

equivalente /ha/ano Fernandes et al.(2002)

Emissões de CO2

(Desmatamento)

19.063 t CO2/Km² (59 t C/ha) 41.507 t CO2/Km² (90 t C/ha)

Primeiro Inventário Brasileiro (2004)

Taxa de Reciclagem

(?) 20-60%

Marengo et al.(2006); Salati et

al.(1984); Makarieva e Gorshkov

(2007)

Umidade exportada

(centro-sul brasileiro)

(?) 3,4 x 10¹² m³/ano (50% da foz do Amazonas) Fearnside (2004) ² estudos para relativos ao balanço de carbono da Amazônia

3.4.

IMPACTO DO DESMATAMENTO NOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS