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O poder como marco da análise civilizatória

Os sistemas políticos sofrem variações à medida que tendem a se adaptar às contingências, mas, ao fazê-lo, mantêm resquícios dos sistemas anteriores. Tal processo de desenvolvimento pode ser observado ao se considerar as questões relativas ao poder. Por isso, nesta seção, propomos seguir uma análise segundo estes termos.

Seguindo o que foi dito sobre o poder, nos capítulos anteriores, se propõe que o tipo de mudança histórica que se quer explicar pode ser observado analisando-se a mudança nos papéis relativos à personalidade, à propriedade e à organização bem como as condições e mudanças nas condições da punição condigna, da retribuição compensatória e das manifestações implícitas e explícitas do poder condicionado. A história assim escrita seria bastante complexa, mas existem contornos gerais evidentes[...]95 a ser perseguidos e compreendidos. Aqui, alcançar esse ponto será nosso objetivo.

4.1.1 uma análise considerando o poder

Os contornos do movimento de sistemas políticos e econômicos, considerando o poder, podem remontar a toda uma trajetória civilizatória do homem em qualquer tempo; isso porque o poder está sempre, em alguma medida, por trás das relações entre os seres humanos. Assim, esse tipo de análise pode conduzir os estudiosos a um ponto em que as limitações fáticas e cognitivas demonstram suas falências para encontrar a origem do processo, porque sempre será possível remontar a uma causa anterior, em regresso ao infinito.

Para o que se propõe nesta dissertação, bastará com que se teçam algumas rápidas considerações sobre o período anterior à Paz de Westphalia e, a partir de este momento, seguir a diante.

No período que antecede Westphalia, identificado como uma era pré-capitalista, não é tão fácil entender a base do poder temporal quanto empreender uma compreensão sobre o poder da Igreja. Esse último poder era muito mais sofisticado, evidente e não possuía um rival à altura. Por esse motivo, em alguma medida, a Igreja Católica ditava as diretrizes para as relações internacionais no Ocidente.

Isso não quer dizer seja impossível identificar outros tipos de poder durante esse período. Ao contrário, pode-se identificar a influência do poder exercido pelo comércio em Ascenção. Embora este poder tenha se mantido até determinado grau oculto, foi corresponsável por mudanças que culminaram na transformação do significado de “propriedade”. Se antes a terra era sinônimo de riqueza (a “propriedade” per excelence), depois dessa época, o “metal” passou a rivalizar com a riqueza agrária. Para os economistas, esse é o processo que marca a passagem da fisiocracia para o metalismo.

Houve épocas na trajetória da humanidade, na qual os poderes religioso e secular coincidiam na mesma pessoa, sejam porque os governantes se sentiam “tocados e escolhidos por Deus” ou porque concebiam a si mesmos como Deuses. “Entretanto, ‘na maioria das épocas e lugares, a distinção entre sacerdote e o rei tem sido evidente e peremptória’”96.

Isso é especialmente verdadeiro para o mundo ocidental da era pré-capitalista. Nesse período, o poder secular era repartido entre o baronato – os senhores feudais – e as Nações-Estados emergentes (e também rivais). Dentre a personalidade, a propriedade e a organização, a forma de poder mais festejada – nos registros históricos – é a personalidade do líder. Em geral, aqueles que são ousados, sanguinários e compulsivos ganham maior fama e sua memória se torna mais perdurável.

A importância dos líderes era indubitável, mas se percebia nesse tipo de poder uma grave deficiência implícita: essas personalidades surgiam, exerciam sua poderosa influência e, então, padeciam. Junto com elas, o poder temporal que criavam também sucumbia. Esta deficiência do poder temporal contrasta com a personalidade de tipo permanente e imortal da qual emanava o poder da Igreja97.

Quando adveio a secularização, os “Estados Nacionais” ainda se aproximavam muito do modelo religioso, se valendo de protocolos análogos aos religiosos, mimetizando a imortalidade da Igreja e emulando seus instrumentos do poder. Não raramente o Estado também se permitia transpor para sua área de atuação o mesmo discurso da Igreja. Sobre esse último ponto, Woodrow Wilson, presidente americano, disse certa vez:

“Foi como se na providência de Deus um continente tivesse ficado intacto e à espera de um povo pacífico, que amasse a liberdade e os direitos dos homens mais do que qualquer outra coisa, chegasse e estabelecesse uma nação poderosa”98.

96 RUSSELL, Bertrand. Power: a new social analysis. New York: W.W. Norton, 1938, pp. 50-51. 97 GALBRAITH, John Keneth. Op. cit., pp.99-100.

98 WILSON, Woodrow. Apud KISSINGER, Henry. In: KISSINGER, H. Diplomacia. Lisboa: Gradiva, 2007, p. 36.

Muitos antes, Adam Smith já havia expressado uma opinião semelhante, em suas palavras: “religion, even in its crudest form, gave a sanction to the rules of morality long before the age of artificial reasoning and philosophy”99.

Com o afastamento da religião de dentro do Estado, desapareceu a cadeia hierárquica do Ser (Deus), o qual dava a todas as coisas o seu justo, firme e inquestionável lugar na ordem geral das coisas100. Foi preciso, então, engenho para promover a construção de uma outra estrutura hierárquica que substituísse o vácuo criado pelo afastamento da Igreja, principalmente, o vácuo ético e moral provocado na consciência dos indivíduos e em suas relações sociais.

4.1.1 O poder e a ambiência internacional: a capacidade de influenciar a sociedade internacional.

Em cada século se observa a emersão um país com o poder, a vontade e o ímpeto intelectual e moral, para moldar todo o sistema internacional, de acordo com seus próprios valores. No século XVII, a França do Cardeal Richelieu introduziu a abordagem moderna para as relações internacionais, baseando-as no Estado-Nação e colocando o interesse nacional como propósito último das ações estatais em âmbito internacional. No século XVIII, a Grã-Bretanha elaborou o conceito de equilíbrio de poder, que dominou a diplomacia europeia durante os duzentos anos seguintes. No século XIX, a Áustria de Metternich reconstruiu o Concerto da Europa, mas a Alemanha de Bismarck desmantelou-a, remodelando a diplomacia europeia num jogo de sangue-frio de uma política de poder. A partir do século XX, nenhum país tem influenciado as relações internacionais tão decisivamente e, ao mesmo tempo, tão ambivalentemente como os Estados Unidos.101

Não obstante, nenhuma das sociedades citadas tem insistido tão firmemente, na inadmissibilidade de intervenção de outros países nos seus assuntos internos ou defendido tão veementemente a aplicabilidade universal de seus valores, como tem feito os Estados Unidos. Nenhuma nação tem sido tão pragmática na sua conduta diplomática quotidiana ou tão ideológica na perseguição das suas convicções morais históricas como os tem sido os Estados Unidos. Nenhum país tem sido tão relutante em comprometer-se no estrangeiro, mesmo ao empreender alianças e acordos sem precedentes, como eles tem sido.

99 Passim.

100 CASSIRRER, Op. cit. p. 186

As particularidades adquiridas pelos Estados Unidos, ao longo da sua história, produziram duas atitudes – relativas à política externa – contraditórias. A primeira é a de que a América cumpre melhor os seus valores aperfeiçoando a democracia interna, atuando, ao mesmo tempo, como guia do resto da humanidade; a segunda é a de que os valores americanos impõem à América uma obrigação de cruzada por todo o mundo. Dividido entre a nostalgia de um passado primitivo e a aspiração a um futuro perfeito o pensamento americano tem oscilado entre o isolacionismo e o intervencionismo, embora, desde a Segunda Guerra Mundial, estas duas realidades tenham permanecido predominantemente interligadas.

Embora, uma análise a respeito das abordagens da política internacional dos Estados Unidos da América desde o final do século XIX ao começo do século XX conduz à crença de que as posições assumidas por esta nação, uma postura isolacionista e outra missionária, seriam aparentemente contraditórias. Muitos autores afirmam suas qualidades:

a de que os Estados Unidos possuíam o melhor sistema governativo do mundo e o resto da humanidade podia alcançar a paz e a prosperidade abandonando a diplomacia tradicional e adotando o respeito da América pelo direito internacional e pela democracia102.

Ambas as escolas de pensamento – a da América como guia e a da América como missionaria – consideram normal uma ordem global internacional baseada na democracia, no comércio livre e no direito internacional. Por nunca ter existido um sistema com essas características, a evocação desses pensamentos parece, frequentemente, aos olhos das outras nações como sendo uma perspectiva utópica e, muitas vezes, também ingênua.

No entanto, o cepticismo estrangeiro nunca ofuscou o idealismo de Woodrow Wilson, de Franklin Roosevelt, de Ronald Reagan ou mesmo de todos os outros presidentes do século XX. Se essas três visões têm alguma influência, essa foi a de estimular a crença americana de que a história pode ser ultrapassada e de que é necessário aplicar os preceitos morais da América se o mundo aspira realmente a alcançar a paz103.