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O Poder Judiciário e o Ministério Público no Brasil

Como o objetivo desta tese é compreender a atuação da Justiça Federal nos processos de corrupção julgados de 1991 a 2014, é necessário expor a estrutura do Poder Judiciário brasileiro, a inserção do seu ramo federal comum nessa estrutura e seu histórico resumido. Da mesma forma, como o Ministério Público Federal é um ator essencial no resultado da atuação judicial, uma vez que todas as ações julgadas foram por ele propostas, convém apresentar sua organização, bem como um breve exame de sua recente e impressionante evolução, tida como de forte impacto no desempenho do sistema de integridade nacional como um todo.

A estrutura do Poder Judiciário é prevista no art. 92 da Constituição Federal10. Já o Ministério Público foi definido pelo constituinte de 1988 no art. 128 da CF 11.

O Quadro 3.1 a seguir ilustra um esquema da estrutura do Poder Judiciário:

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“Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I - o Supremo Tribunal Federal; I-A - o Conselho Nacional de Justiça; II - o Superior Tribunal de Justiça; III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

§ 1º O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e os Tribunais Superiores

têm sede na Capital Federal.

§ 2º O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território

nacional.”

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“Art. 128. O Ministério Público abrange: I - o Ministério Público da União, que compreende: a) o Ministério Público Federal; b) o Ministério Público do Trabalho; c) o Ministério Público Militar; d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; II - os Ministérios Públicos dos Estados.

§ 1º O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado

pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução. (...).”

Fonte: Constituição Federal. Superior Tribunal Militar Tribunal Superior Eleitoral Tribunal Superior do Trabalho Tribunal Regional Eleitoral Tribunal Regional do Trabalho Tribunal Regional Federal Tribunal de Justiça Militar (*) Juízes Militares Juntas e Juízes Eleitorais Juízes do Trabalho Juízes Federais Juízes de Direito Justiça Militar (Federal) Justiça Eleitoral Justiça do Trabalho Justiça Federal Justiça Estadual

Quadro 3.1 - Organograma do Poder Judiciário.

Justiça Comum Justiça Especializada (Federal)

Superior Tribunal de Justiça

Tribunal de Justiça Conselhos de Justiça Militar Justiça Militar (Estadual) Justiça Especializada (Estadual)

Os órgãos da Justiça Estadual estão sombreados. Todos os demais pertencem à Administração Pública federal.

1a instância ou 1o grau 2a instância ou 2o grau t r i b u n a i s s u p e r i o r e s

Caso contrário, o próprio Tribunal de Justiça julgará os recursos da Justiça Militar estadual.

(*) Só poderá haver Tribunal de Justiça Militar nos estados da Federação em que a respectiva Polícia Militar tiver efetivo superior a 20 mil integrantes.

Como pode ser verificado no quadro acima, o Poder Judiciário brasileiro é dividido em Justiça comum e Justiça especializada. A Justiça especializada abrange a Justiça do Trabalho (arts. 111 a 116 da CF), a Justiça Eleitoral (arts. 118 a 121 da CF) e a Justiça Militar (arts. 122 a 124 da CF). Já a Justiça comum é segmentada em Justiça comum federal (arts. 106 a 110 da CF) e Justiça comum estadual (arts. 125 e 126 da CF). Pertencente à Justiça comum, o Superior Tribunal de Justiça – STJ é um órgão Administração Pública federal, mas cuja atuação não se limita aos assuntos da União. Com competência recursal, o STJ pode revisar tanto os casos julgados pela Justiça comum federal como aqueles provenientes da Justiça comum estadual. Já o Supremo Tribunal Federal – STF é o guardião de nossa Constituição. Também é a instância máxima do Poder Judiciário e está hierarquicamente acima de todos os demais órgãos do Judiciário, quer das justiças comuns estadual e federal ou das justiças especializadas. Dessa forma, se a análise do caso envolver questões constitucionais, o STF pode revisar qualquer decisão proferida pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

A Justiça Federal

Nos termos do art. 106 da Constituição, a Justiça Federal é composta pelos juízes federais (órgãos de julgamento de primeiro grau ou primeira instância) e pelos Tribunais Regionais Federais (órgãos de julgamento de segundo grau ou de segunda instância), também conhecidos como tribunais de apelação, pois, no âmbito da Justiça Federal, a eles cabe o julgamento do recurso de apelação interpostos contra as sentenças proferidas pelos juízes federais de primeira instância.

De acordo com o sítio da Justiça Federal da Seção Judiciária do Paraná 12, o termo Justiça Federal surgiu originariamente no Brasil com o Decreto no 848 de 1890, do Governo Provisório que instituiu a República e o sistema federativo. Com pouca variação organizacional, foi mantida pelas constituições de 1891 e 1934, porém extinta pela Carta de 1937. Em 1946, aquela Constituição criou o Tribunal Federal de Recursos, que, com atual texto de 1988, foi convertido no Superior Tribunal de Justiça. Somente com o Ato Institucional no 2 de 1965 foi recriada a Justiça Federal. A Lei no 5.010/1966 a regulamentou com a forma atual de cinco Tribunais Regionais Federais, uma seção judiciária para cada estado e o Distrito Federal, com suas respectivas subseções nas capitais e principais municípios, promovendo sua descentralização.

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Com a Justiça Federal passou a existir um foro especial para as ações em que são partes a União e as demais entidades que compõem a Administração Pública federal. A Constituição de 1988 ampliou suas competências, incluindo, entre outras, as causas entre estados estrangeiros ou organismos internacionais e municípios ou residentes no País, alguns crimes específicos como os contra a organização do trabalho e contra o sistema financeiro, e as disputas sobre direitos indígenas.

Para além dessa divisão temática do Poder Judiciário, entre justiça comum e especializada, é necessário compreender a distribuição administrativa da Justiça Federal ao longo do território brasileiro. Como pode ser notado na figura abaixo, existem cinco delimitações geográficas que formam as regiões administrativas da Justiça Federal brasileira.

Figura 3.1 – Distribuição administrativa da Justiça Federal.

Fonte: Portal do Conselho da Justiça Federal ( www.cjf.jus.br ).

São as seguintes as composições das regiões administrativas da Justiça Federal:

▪ 1ª Região: A primeira região, com sede em Brasília, é composta pelos Estados de Roraima, Amazônia, Acre, Rondônia, Amapá, Pará, Mato Grosso, Maranhão, Tocantins, Goiás, Piauí, Bahia, Minas Gerais e o Distrito Federal;

▪ 2ª Região: A segunda região, cuja sede está localizada no Rio de Janeiro é composta pelos Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro;

▪ 3ª Região: A terceira região, com sede em São Paulo, é composta pelos Estados do Mato Grosso do Sul e São Paulo;

▪ 4ª Região: Com sede em Porto Alegre, a quarta região é composta pelos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul;

▪ 5ª Região: A quinta região, com sede em Recife, é composta pelos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

A estrutura administrativa acima descrita tem um claro desbalanceamento territorial e, hoje, mostra-se questionável do ponto de vista da eficiência administrativa, tanto que em 2013 foi promulgada a Emenda Constitucional no 73/2013, que alterou a atual estrutura da JF. Porém, observa-se que a JF tem mais meio século desde sua criação e, portanto, previa atender demandas de quantidades de processo por unidades da federação baseadas em distribuições econômicas e demográficas certamente hoje desatualizadas. Não se descarta também a influência de interesses políticos em sua formulação e manutenção. A Emenda Constitucional no 73/2013 que criou quatro novos TRFs (com sedes em Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Manaus) está sendo questionada no STF por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 5.017, na qual foi deferida pelo então Presidente do Supremo Ministro Joaquim Barbosa medida cautelar para suspender os efeitos da Emenda combatida.

A Justiça Federal é aqui entendida como compreendendo não só as varas federais de 1ª instância e os cinco Tribunais Regionais Federais - TRFs (definição constitucional), como também o Superior Tribunal de Justiça - STJ e o Supremo Tribunal Federal – STF, no que concerne às respectivas competências recursais e originárias nos assuntos de interesse da União (TAYLOR, 2011, p.179, nota 2). Lembra-se que a base de dados que integra esta pesquisa não abrange as sentenças proferidas pelos juízes federais de 1º grau, mas exclusivamente os acórdãos exarados pelos TRFs, pelo STJ e pelo STF. Todavia, como detalhado no próximo capítulo, os casos submetidos à Justiça e que são finalizados em 1ª instância são raros, pois a regra é, ao menos, a utilização do recurso de apelação, tanto pelo réu como pela acusação.

A Justiça Federal é elemento preponderante na rede de accountability, talvez até o principal quando se trata de corrupção política (em paralelo com a Justiça Eleitoral). Porém, a dificuldade da Justiça Federal em punir os políticos corruptos advém das deficiências institucionais que afetam o Poder Judiciário como um todo. O sistema é congestionado e moroso, formalístico e sujeito a uma infinidade de recursos e medidas protelatórias, o que impõe sua ineficiência (TAYLOR, 2011, p. 170).

Outra dificuldade é a multiplicidade de recursos disponíveis, principalmente aqueles contra decisões interlocutórias que não afetam diretamente o resultado do processo, mas podem em muito atrasar seu andamento. Um processo que se inicie perante um juiz de 1º grau pode ser recorrido pelo menos três vezes, e, na maioria das vezes, as cortes superiores confirmam o resultado de 1ª instância. Nessas situações, um bom advogado pode fazer com que o processo demore em média oito anos, na tentativa de provocar a ocorrência da prescrição da ilicitude durante o processo, e, inclusive, mantendo-se o réu em liberdade até seu fim (TAYLOR, 2011, p. 171).

Apesar dos inquestionáveis progressos advindos de melhores estruturas investigativas, inovações legislativas e do aprimoramento das interações entre os diversos órgãos, ainda há problemas na investigação e na obtenção de provas indispensáveis como as quebras de sigilos bancários, fiscais ou telefônicos, principalmente quando se trata de eventos de corrupção, cujos ajustes são sempre realizados dissimuladamente e os rastros são escamoteados. A cultura jurídica aceita uma exagerada utilização do habeas corpus, não só contra ameaça direta da liberdade, mas para contestar aspectos banais do processo em todas as instâncias judiciais. O que deveria ser somente uma extraordinária proteção tornou-se uma tática de defesa rotineira (TAYLOR, 2011, p. 172).

Manobras protelatórias facilitam sobremaneira a defesa, e há poucos recursos para impedi-las. Mesmo que falhem no resultado, estratégias desse tipo podem atrasar o processo significativamente. Tal problema é aguçado, considerando que os prazos prescricionais são relativamente curtos para os diversos tipos penais de corrupção (TAYLOR, 2011).

No caso de corrupção praticada por agentes políticos, o chamado foro especial, por meio do qual o réu é julgado diretamente nas altas cortes (STJ ou STF), resulta em problema a mais. O que em tese seria um excelente mecanismo de proteção

contra ameaças reais (uma alta autoridade ser constrangida por um juiz singular por um processo inconsequente), transformou-se em um autêntico instrumento de impunidade. O STF mostrou-se, ao longo do último quarto de século, absolutamente incapaz de desempenhar suas atribuições processuais com um mínimo de celeridade, em especial no que tange à fase de instrução probatória. As razões são variadas e envolvem o excesso de zelo com os casos políticos e a completa ausência de estrutura para tal mister (TAYLOR, 2011).

Acrescente-se que os mesmos problemas de ineficiência que afetam a Justiça Federal em processos criminais interferem igualmente em procedimentos de confisco de ganhos ilícitos e na prevenção de lavagem de dinheiro, em destaque a fraca legislação, a morosidade e a complexidade da cooperação internacional, que é essencial nessa tarefa (TAYLOR, 2011).

Por outro lado, o resultado da atuação da Justiça Federal também é limitado pela qualidade do material que lhe é submetido. As denúncias são sempre oferecidas pelo Ministério Público Federal, que, apesar do grande desenvolvimento ocorrido desde a Constituição de 1988, ainda possui recursos limitados frente à demanda existente. Há, ainda, muita dificuldade em fornecer à Justiça um conjunto probatório com qualidade suficiente para embasar condenações penais. Ainda de acordo com Taylor:

“In light of the arguments above, it should be no surprise that effective legal punishments for political corruption are largely nonexistent. Even when guilt is clearly evident, impunity seems more likely than not when national politicians are involved, given the tacit privileges they receive under Brazilian Law” (TAYLOR, 2011, p. 177). 13

Finalmente, Taylor (2011) chama atenção aos perversos efeitos indiretos provocados pela ausência de efetividade do controle judicial, tanto no enfraquecimento do controle realizado pelos demais membros da rede de accountability (Congresso, polícias, Ministério Público e outros entes estatais), como na mitigação da universalidade da justiça, uma vez que os poderosos estão imunes ao seu controle.

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Tradução nossa: “Por tudo isso, não é surpresa que uma efetiva punição legal para a corrupção política seja largamente inexistente. Mesmo quando a culpa é claramente evidente, a impunidade parece ser mais provável quando políticos nacionais estão envolvidos, dado os privilégios tácitos que eles auferem sob a Lei brasileira”

Conforme descrito ao longo desta tese, não há dúvidas de que houve progressos significativos nos fatores (de ordem legislativa, política e organizacional) envolvidos no controle da corrupção no Brasil desde a edição em 2011 da obra de Taylor reiteradamente citada acima. O próprio autor, em seu trabalho mais recente de 2019, reconhece isso. O caso do Mensalão (mencionado no Capítulo 4) e a Operação Lava Jato (abordada neste capítulo) são provas inequívocas desse avanço. Todavia, o caso do Mensalão parece cada vez mais ser um ponto fora da curva; e a Operação Lava Jato, como já visto, a par de seus sucessos, aparentemente não nos levará a um estado de equilíbrio em que o controle da corrupção será aprimorado. Ou seja, apesar de cerca de uma década depois, muitos dos problemas estruturais apontados por Taylor em 2011 ainda continuam a impor obstáculos.

O Ministério Público

Como já dito anteriormente, entende-se hoje que o combate à corrupção depende da performance geral da rede de accountability (ARANTES, 2011; CORRÊA, 2011; TAYLOR, 2011). Um dos principais resultados do sistema de integridade é a punição aplicada pelo Poder Judiciário, principalmente pela Justiça Federal (AVRITZER, 2011, p. 55; TAYLOR, 2011). Compreender esses resultados é um dos primordiais propósitos desta pesquisa.

Apesar da visão geral da atuação integrada e interdependente dos diversos órgãos que compõem a rede, deve-se reconhecer que o papel do Ministério Público é proeminente, uma vez que cabe a ele “promover, privativamente, a ação penal pública” (art. 129, I, da Constituição Federal), bem como, em paralelo ao ente público lesado, propor a ação de improbidade administrativa (art. 17 da Lei no 9.429/1992). Assim, competiu ao Ministério Público Federal (MPF) propor a grande maioria dos casos que foram analisados no âmbito deste trabalho. Por conseguinte, além de investigar a estrutura da Justiça Federal conforme acima realizado, cabe nesta seção um olhar um pouco mais acurado sobre o Ministério Público, especialmente seu ramo federal representado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pelas Procuradorias- Regionais da República nas cinco regiões (análogas aos TRFs) e pelas Procuradorias da República nas 27 unidades da Federação.

A estrutura do Ministério Público é análoga ao do Poder Judiciário, conforme ilustrado no Quadro 3.1 acima. O Ministério Público é dividido entre Ministério Público da União (MPU) e o Ministério Público dos estados. Já o MPU subdivide-se em Ministério Público Federal, Ministério Público Trabalho (MPT), Ministério Público Militar (MPM) e Ministério Públicos do Distrito Federal e dos territórios (MPDFT). O Ministério Público Eleitoral, que atua perante a Justiça Eleitoral, não detém quadro próprio de membros, cuja atuação é realizada por promotores e procuradores de justiça estaduais e por procuradores da república das diversas instâncias investidos dessa atribuição especial. Como o interesse deste trabalho circunscreve-se à Justiça Federal comum, a atuação do Ministério Público Federal, em suas diversas instâncias, é preponderante.

De acordo com Sadek:

“(...), se considerarmos o panorama internacional, perceberemos que o Ministério Público brasileiro é singular. Eu costumo brincar dizendo que, quando as pessoas se gabam exclamando que a jabuticaba só existe no Brasil, retruco, observando que o que existe de fato só no Brasil é o nosso Ministério Público. Podemos encontrar instituições análogas na América Latina, no mundo Europeu e na América do Norte. Em nenhum dos países, contudo, vamos nos deparar com um Ministério Público que apresente um perfil institucional semelhante ou que ostente igual conjunto de atribuições. O nosso Ministério Público, a partir da Constituição de 1988, passou a ser uma instituição que tem pouca semelhança com seus congêneres no exterior e tampouco com o Ministério Público brasileiro do passado. Eu até diria, ousando uma observação ainda mais radical, que o nome é o mesmo, mas a instituição não. Várias características mudaram. Entre essas alterações, ressalte-se, desde logo, a sua localização institucional e o rol de suas atribuições.” (SADEK, 2009, p. 131).

Mas como surgiu essa instituição única e poderosa? Alguns cientistas políticos brasileiros vêm estudando essa questão e acumulando conhecimento em função dos estudos pretéritos. Quatro autores destacam-se nessa construção: Rogério Bastos Arantes (2002), Fábio Kerche (2009), e Débora Alves Maciel e Andrei Koerner (2014). A análise crítica produzida sequencialmente resultou num profundo e sólido conhecimento sobre o fenômeno.

Comecemos com Rogério Bastos Arantes (2002). De acordo com esse autor, o alto déficit de representatividade das instituições políticas tradicionais no Brasil, onde a experiência democrática é tortuosa, proporcionou um processo de judicialização da política e de politização da justiça contraditório e desafiador. Assim, “não deve causar

surpresa que o Ministério Público tenha encontrado justamente nessa alegada deficiência da democracia brasileira o espaço necessário para desenvolver-se, reivindicando para si a função de enforcement das leis e da Constituição” (ARANTES,

2002, p. 17).

A reconstrução institucional do Ministério Público, a partir dos anos 70 e culminando com a Constituição Federal de 1988, deu-se com sua desvinculação do Poder Executivo, para obter sua independência, alterando suas estrutura, funções e prerrogativas, passando de advogado dos interesses do Estado para defensor público da sociedade (ARANTES, 2002, p. 19). Tais transformações foram impulsionadas e determinadas endogenamente, por iniciativa, articulação e voluntarismo de seus próprios membros, ainda que não se possa olvidar a interferência ambiental e a inter- relação entre os demais agentes envolvidos (ARANTES, 2002, p. 21).

A evolução institucional do MP, segundo esse autor, pode ser trilhada a analisando as inovações legislativas de atuação no processo civil, com a criação de novos e indisponíveis direitos, em que o MP surgiu como defensor da sociedade hipossuficiente (ARANTES, 2002, p. 30).

A seguir, expõe-se tal cronologia legislativa: A) O art. 82, III, do Código de Processo Civil de 1973 14, seria o ponto de inflexão desse processo (ARANTES, 2002, p. 35), uma vez que possibilitou a atuação do MP “em todas as demais causas em que

há interesse público”. B) A Lei Complementar no

40/1981, em decorrência da Emenda Constitucional no 7/1977, instituiu a primeira lei orgânica nacional do Ministério Público brasileiro (ARANTES, 2002, pp. 41/42), cujo art. 1º 15 definiu a instituição e o

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“Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I - nas causas em que há interesses de incapazes; II - nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; III - em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (redação original).

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“Art. 1º - O Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável, perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis, e será organizado, nos Estados, de acordo com as normas gerais desta Lei Complementar.”

colocou como responsável “pela defesa da ordem jurídica e dos interesses

indisponíveis da sociedade”. Nota-se que, exceto pela defesa do regime democrático, o

que seria incompatível com o ambiente ditatorial da época, a definição acima é muito próxima da que hoje está prevista no art. 127 da atual Constituição (ARANTES, 2002, pp. 45/46). Segundo o autor:

“O grande feito da Lei de 1981, além de lançar as bases para a conquista da independência que viria em 1988, foi dar o primeiro e mais longo passo ruma à construção da unidade nacional do Ministério Público, uniformizando princípios de organização e competências a serem obrigatoriamente adotados pelos ministérios públicos estaduais. (...).” (ARANTES, 2002, p. 46).

Prosseguindo com a evolução legislativa: C) A Lei no 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, é considerada um marco, pois, além de prever a responsabilidade objetiva do agente por dano causado ao meio ambiente (independentemente da comprovação de culpa), criou um novo instrumento processual: a ação de responsabilidade civil e criminal, cuja legitimidade para sua proposição foi atribuída ao Ministério Público, de acordo com seu art. 14, § 1º16 (ARANTES, 2002, p. 46). D) Em continuidade, a Lei no 7.347/1985, que: “Disciplina a ação civil pública de

responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras

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