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A corrupção e a atuação da Justiça Federal no Brasil : 1991-2014

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(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

SILVIO LEVCOVITZ

A corrupção e a atuação da Justiça Federal no Brasil

1991 – 2014

CAMPINAS

2020

(2)

SILVIO LEVCOVITZ

A corrupção e a atuação da Justiça Federal no Brasil

1991 – 2014

Tese apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos

para a obtenção do título de Doutor

em Ciência Política

Orientadora: Rachel Meneguello

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA

PELO ALUNO SILVIO LEVCOVITZ E

ORIENTADA

PELA

PROFA.

DRA.

RACHEL MENEGUELLO.

CAMPINAS

(3)
(4)

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 17/06/2020, considerou o candidato Silvio Levcovitz aprovado.

Prof. Dr. Frederico Normanha Ribeiro de Almeida Profa. Dra. Ela Viecko Volkmer de Castilho Profa. Dra. Rachel Meneguello [Orientadora] Profa. Dra. Maria Tereza Aina Sadek

Prof. Dr. Bruno Wilhelm Speck

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

(5)

À minha família: Diana, Maya, Glória e Churchill (in memoriam); pela paciência, compreensão e apoio nesta longa jornada.

(6)

Agradecimentos

Primeiramente, agradeço à professora Rachel Meneguello, por sua orientação paciente, compreensiva e segura. Sua colaboração e experiência foram essenciais para que o processo, longo e um tanto intermitente, chegasse a um bom termo. Se para mim foi difícil gerenciar o trabalho acadêmico com tantas outras demandas simultâneas, imagino que tal orientação não tenha sido menos complexa. Muito obrigado!

Os rumos desta pesquisa têm gênese antiga, já desde o trabalho de conclusão do curso de Direito em 1999. A dissertação de mestrado em 2014 foi um balão de ensaio para a metodologia adotada. Porém, seu direcionamento mais preciso contou com a colaboração dos professores Frederico Normanha Ribeiro de Almeida e Bruno Wilhelm Speck, que participaram da banca de qualificação em 2015, cujas observações foram fundamentais para a delimitação realista do seu objeto.

Esta tese não seria a mesma sem a colaboração do professor Matthew Taylor, cuja tão agradável convivência durante a temporada em Washington na American University proporcionou um enorme aprendizado. Profundo conhecedor do tema, seus questionamentos precisos e instigantes foram absolutamente essenciais para a obtenção do resultado final.

Difícil expressar minha gratidão pela calorosa acolhida de toda minha família vivenciada no Center for Latin American & Latino Studies da American University. A estadia no CLALS possibilitou a tranquilidade necessária para a obtenção e organização da enorme quantidade de dados processada neste trabalho. Seu diretor, professor Eric Hershberg, é o melhor anfitrião que já conheci. Externo meus agradecimentos também aos demais membros da equipe Robert Albro, Denis Stinchcomb, Jacquelyn Dolezal e Ines Luengo de Kron, cujos esforços para vencer a burocracia dos vistos e autorizações e proporcionar conforto para toda a minha família foram incansáveis.

A temporada em Maryland e D.C. foi engrandecida pela adorável companhia e ajuda dos amigos Gary, Suy e Nina, e dos primos Ruben, Mariana, Ana e Ivan. Em nome de toda a família, agradeço pelo carinho.

(7)

Sou grato também à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional pela licença concedida, sem a qual o ano acadêmico em Washington não teria sido possível. Aos queridos companheiros da Procuradoria-Seccional da Fazenda Nacional em São Carlos: Carlos, Daça, Laís, Miya, Targa e Zach, meus agradecimentos pelo convívio diário e por tocar o barco nas minhas ausências.

Agradeço ao cientista da computação Evandro Brasil Fonseca pelo minucioso trabalho de programação desenvolvido a pedido deste autor, necessário para a elaboração do pré-processamento dos textos das ementas dos acórdãos utilizados nesta pesquisa. Minha gratidão à advogada Esther Iramar Silva Aunés, pela indispensável colaboração na coleta e organização das decisões judiciais da amostra utilizada neste trabalho.

A lista de estatísticos que ajudaram a resolver os infindáveis problemas surgidos durante a pesquisa é grande. Começo pelo professor Rafael Bassi Stern, do Departamento de Estatística da UFSCar, cuja compreensão das questões jurídicas e colaboração foram absolutamente essenciais para as interpretações finais das regressões e para os cálculos dos erros. Agradeço ao professor Vicente Garibay Cancho, do ICMC da USP de São Carlos, pelas dicas iniciais de abordagem dos problemas amostrais. Pela atenção e disposição, sou grato ao professor Jorge Oishi, também da UFSCar. Ainda que não propriamente uma estatística, mas com conhecimentos similares, agradeço à colaboração da professora Lorena Guadalupe Barberia, do DCP da USP, pelos esclarecimentos de questões de métodos quantitativos enfrentadas no caminho da pesquisa.

Ao professor Luciano Da Ros, do DCP e do PPG Políticas Públicas da UFRGS, agradeço pela revisão do artigo que nunca foi para o prelo, mas cujas observações foram muito úteis nesta tese.

Gostaria de expressar minha gratidão aos professores e servidores da UNICAMP, que possibilitaram este doutoramento, em especial aqueles com quem tive contato direto: Andrei Koerner, Luciana Ferreira Tatagiba, Oswaldo Martins E. do Amaral, Valeriano Mendes Ferreira Costa, Yara Adario Frateschi e Camila de Fátima Magalhães.

Finalmente, agradeço aos membros da banca: professoras Ela Viecko Volkmer de Castilho e Maria Tereza Aina Sadek, e professores Frederico Normanha Ribeiro de Almeida e Bruno Wilhelm Speck.

(8)

Resumo

A corrupção e sua impunidade são problemas primordiais do Brasil, uma vez que, para além dos prejuízos econômicos, afetam a legitimidade do regime democrático e a confiança da população em suas instituições. O controle da corrupção depende da atuação conjunta da denominada ‘rede de accountability’ e da consequente aplicação de sanções legais. Nesse sentido, imprescindível a eficácia do Poder Judiciário, cuja performance determina a eficiência de todo o chamado ‘sistema de integridade’. A Justiça Federal é parte primordial nesse papel. Assim, a presente pesquisa objetiva entender como a Justiça Federal julgou as ações cíveis de improbidade administrativa e criminais de corrupção (crimes contra a Administração Pública e crimes em licitações) que lhe foram submetidas no período de 1991 a 2014. A partir de uma definição legal dos casos de corrupção, levantaram-se todos os julgamentos realizados nesse período nos cinco Tribunais Regionais Federais, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, seus desfechos foram analisados e buscaram-se as explicações para tais resultados, descrevendo-buscaram-se o comportamento dessa importante parte do Estado brasileiro. Constatou-se que durante o período estudado houve um crescimento exponencial dos casos julgados ao longo dos anos. Apesar de uma preponderância de condenações, demonstrou-se que o sistema é altamente seletivo, pois réus com maior potencial de influência política ou econômica têm significativa maior probabilidade de serem absolvidos que os réus comuns.

Palavras-chave: Corrupção, impunidade, Justiça Federal, crime contra a administração pública, improbidade administrativa.

(9)

Abstract

Corruption and its impunity are major problems in Brazil, as, in addition to economic damage, they affect the legitimacy of the democratic regime and the confidence of the population in its institutions. Control of corruption depends on the joint action of the so-called 'accountability network' and the consequent application of legal sanctions. In this sense, the effectiveness of the judiciary whose performance determines the efficiency of the 'integrity system is indispensable. Federal Justice is a primary part of this role. Thus, this research aims at understanding how the Federal Court sistem judged the civil actions of administrative misconduct and criminal corruption (crimes against the Public Administration and crimes in bidding) that were submitted to it from 1991 to 2014. From a legal definition of the corruption cases, all the judgments during this period were raised in the five Federal Regional Tribunals, in the Superior Justice Tribunal and in the Supreme Federal Tribunal, their outcomes were analyzed and the explanations for those results were sought, describing the behavior of this important branch of the Brazilian state. It was found that during the period studied herein there was an exponential growth of verdicts over the years. Despite a preponderance of convictions, the system has been shown to be highly selective, as defendants with greater potential for political or economic influence are significantly more likely to be acquitted than ordinary defendants.

Keywords: Political Science, corruption, impunity, judiciary, crimes against public administration, civil misconduct.

(10)

Lista de figuras, gráficos, tabelas e quadros

Gráfico 1.1 – Parcela da população que elege a corrupção como maior problema . . 17

Quadro 3.1 – Organograma do Poder Judiciário . . . 47

Figura 3.1 – Distribuição administrativa da Justiça Federal . . . 49

Quadro 4.1 – Modalidades de corrupção e suas respectivas bases legais . . . 64

Figura 4.1 – Tela de pesquisa avançada: Jurisprudência Unificada . . . 72

Quadro 4.2 – Critérios de pesquisa: palavras-chave . . . 72

Tabela 4.1 – Julgados por instâncias . . . 75

Tabela 4.2 – Julgados por TRFs . . . 75

Figura 4.2 – Visualização de um julgado na página da internet do CJF . . . 76

Figura 4.3 – Arquivo texto: julgado do STJ sobre peculato e corrupção passiva . . 77

Figura 4.4 – Arquivo texto: ementa do mesmo julgado do STJ acima . . . 78

Quadro 5.1 – Esquema do Processo Penal . . . 87

Tabela 6.1 – Julgados por relevância e por instâncias . . . 90

Gráfico 6.1 – Relevância por TRFs . . . 91

Gráfico 6.2 – Julgados relevantes por instâncias . . . 92

Tabela 6.2 – Julgados relevantes por TRFs . . . 92

Tabela 6.3 – Julgados relevantes originários e recursais por instâncias . . . 94

Tabela 6.4 – Proporção de HCs e RSEs nos julgados irrelevantes por instâncias . . 95

Gráfico 6.3 – Evolução dos julgados relevantes nos tribunais superiores . . . 97

Gráfico 6.4 – Evolução dos julgados relevantes nos tribunais regionais federais . . 98

Gráfico 6.5 – Evolução dos julgados criminais e de improbidade no TRF5 . . . 98

Gráfico 6.6 – Evolução dos julgados criminais e de improbidade no TRF1 . . . 99

Gráfico 6.7 – Evolução dos julgados criminais e de improbidade nos 5 TRFs . . . . 99

Gráfico 6.8 – Evolução dos julgados criminais e de improbidade no TRF3 . . . . 101

Gráfico 6.9 – Evolução dos julgados de corrupção e da produção geral no STF . . 103

Gráfico 6.10 – Evolução dos julgados de corrupção e da produção geral no STJ . 103

Gráfico 6.11 – Evolução dos julgados de corrupção e da produção geral nos TRFs 104 Gráfico 6.12 – Evolução dos julgados de corrupção dos tribunais federais . . . 106

Tabela 6.5 – No de julgados por modalidade de corrupção e por instância . . . 109

Gráfico 6.13 – Principais modalidades de corrupção por instâncias . . . 111

Gráfico 6.14 – Principais modalidades de corrupção por TRFs . . . 111

Gráfico 6.15 – Proporção dos méritos dos julgamentos por TRFs . . . 113

(11)

Quadro 7.1 – Resumo dos casos processados (réu, montante e prazo X resultado) . 120 Quadro 7.2 – Índices da regressão original (réu, montante e prazo X resultado) . . 120 Quadro 7.3 – Estimativas de parâmetros das variáveis (réu, montante e prazo) . . 121 Quadro 7.4 – Resumo dos casos processados (réu, corrupção e prazo X res.) . . . 123 Quadro 7.5 – Índices do modelo evoluído (réu, corrupção e prazo X resultado) . . 124 Quadro 7.6 – Estimativas de parâmetros (réu, corrupção e prazo X resultado) . . . 125 Quadro 7.7 – Resumo dos casos processados (réu e prazo X trânsito) . . . 127 Tabela 7.1 – Distribuição de julgados por instâncias e foro . . . 128 Tabela 7.2 – Prazos médios (em anos) de tramitação total por instâncias e foro . . 129 Tabela 7.3 – Prazos médios de tramitação total de processos sem foro por TRF . . 130 Quadro 7.8 – Distribuição dos julgados da população por instâncias e por res. . . 131 Quadro 7.9 – Distribuição dos julgados da amostra por instâncias e por resultado antes do trânsito em julgado . . . 131 Quadro 7.10 – Distribuição dos julgados da amostra por instâncias e por resultado após do trânsito em julgado . . . 132 Quadro 7.11 – Distribuição dos julgados da amostra por instâncias e por resultado após do trânsito em julgado, só para réus privilegiados . . . 132 Quadro 7.12 – Distribuição dos julgados da amostra por instâncias e por resultado após do trânsito em julgado, só para réus comuns . . . 133 Quadro 7.13 – Exemplo de cálculo da margem de erro, para o tipo de réu comum . 136 Quadro 7.14 – Comparação dos intervalos das medidas com suas margens de erro . 136 Gráfico 7.1 – Prazos médios de tramitação por resultado final para crimes . . . . 138 Gráfico 7.2 – Prazos médios de tramitação por resultado final para improbidade . 138 Quadro 7.15 – Distribuição dos julgados por resultados nas três instâncias . . . . 140 Quadro 7.16 – Comparação dos intervalos das medidas com margens de erro . . . 141

Tabela ApA.1 – Proporção de acertos por algoritmo . . . 169

Figura ApB.1 – Procedimento de ranqueamento da subamostra . . . 173 Tabela ApB.1 - No de julgados por grupos da população e suas subamostras . . . 174

(12)

Lista de Abreviaturas e Siglas

ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade AMS – Apelação em Mandado de Segurança CC – Código Civil

CF – Constituição Federal

CGU – Controladoria-Geral da União CJF – Conselho da Justiça Federal CNJ – Conselho Nacional de Justiça CP – Código Penal

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CPP – Código de Processo Penal

CRIP – Centro de Referência do Interesse Público FHC – Fernando Henrique Cardoso

HC – Habeas Corpus JF – Justiça Federal

MARE – Ministério da Administração e Reforma do Estado MP – Ministério Público

MPE – Ministério Público Estadual MPF – Ministério Público Federal MS – Mandado de Segurança PF – Polícia Federal

PGR – Procuradoria-Geral da República PR – Procuradoria da República

PRR – Procuradoria-Regional da República RHC – Recurso Ordinário em Habeas Corpus

ROMS – Recurso Ordinário em Mandado de Segurança STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça TCU – Tribunal de Contas da União TI – Transparência Internacional TJ – Tribunal de Justiça

TRF – Tribunal Regional Federal

(13)

TRF2 – Tribunal Regional Federal da 2ª Região TRF3 – Tribunal Regional Federal da 3ª Região TRF4 – Tribunal Regional Federal da 4ª Região TRF5 – Tribunal Regional Federal da 5ª Região

(14)

Sumário

1. Introdução . . . 16

2. Conceitos, análises e o controle da corrupção . . . 25

Conceitos e análises . . . 25

O controle da corrupção e sua evolução em perspectiva comparada . . . 34

O controle da corrupção vinculado à governança . . . 37

Novas estratégias . . . 39

E no Brasil . . . 41

3. O Poder Judiciário e o Ministério Público no Brasil . . . 46

A Justiça federal . . . 48

O Ministério Público . . . 53

4. Definições e a construção do banco de dados . . . 62

As definições legais dos casos de corrupção . . . 62

Abrangência temporal . . . 69

Abrangência espacial . . . 70

O levantamento dos julgados . . . 71

A obtenção dos dados . . . 76

5. Procedimentos de julgamento dos casos de corrupção . . . 80

Processo Penal . . . 80

Processo Civil da Ação de Improbidade . . . 88

6. Análises dos julgados: os resultados gerais obtidos . . . 90

A questão da relevância dos julgados . . . 90

Distribuição dos julgados relevantes por tribunais federais . . . 92

Evolução do número de julgados relevantes por ano e por tribunal . . . 97

Comparação da evolução anual do número de julgados de corrupção com a produção geral dos tribunais . . . 103

Distribuição dos julgados por modalidade e por tribunais . . . 109

(15)

7. Desdobramentos sobre as possíveis variáveis de influência nos julgamentos . 115

Análise dos elementos da amostra e medidas das variáveis . . . 116

Regressões logísticas multinominais . . . 119

O modelo evoluído . . . 123

Outras relações concordantes e informações complementares . . . 127

Análise de distribuições por etapas . . . 130

8. Considerações finais . . . 143

Referências bibliográficas . . . 155

Legislação e documentos oficiais . . . 160

Apêndices A. Aspectos computacionais . . . 162

A classificação dos julgados por aprendizado de máquina . . . 162

A avaliação de desempenho do classificador . . . 167

B. Procedimentos de construção da amostra . . . 171

Anexos 1. Regressões lineares . . . 176

2. Regressão logística multinominal (réu, montante e prazo X resultado) . . . 180

3. Regressão logística multinominal (réu, corrupção e prazo X resultado) . . . 185

4. Regressão logística multinominal (réu e prazo X trânsito em julgado) . . . 190

5. Regressão logística multinominal (trânsito em julgado X mérito) . . . 194

(16)

1. Introdução

A corrupção é um fenômeno universal e atemporal que não pode ser vinculado a um determinado momento histórico, sistema econômico ou regime político (Bezerra, 1995; Pinto, 2011). Não é exclusiva de determinada sociedade, tampouco atrelada a algum momento de seu desenvolvimento. Suas definições teóricas ou práticas não podem ser consideradas estáveis, universais ou constantes. A corrupção é ressignificada ao longo do tempo e sua prática pode sofrer expressiva variação de acordo com a época e o lugar. Nas palavras de Bezerra, “(...) o fenômeno da corrupção

possui uma dimensão legal, histórica e cultural que não pode ser negligenciada quando se busca analisá-lo” (BEZERRA, 1995, p. 12).

Assim, a questão da corrupção é profundamente complexa e pode estar conectada a uma série de fatores, correlacionados ou não entre si, como: concentração de poder político e econômico, arranjo institucional deficiente, desigualdades sociais, falta de compreensão de interesse público e do direito a ter direitos, naturalização da desigualdade de direitos, elites alienadas da população, ausência de controle social, etc. Tais diferenças devem ser levadas em consideração quando da análise do fenômeno sem, contudo, significar a possibilidade de uma conclusão definitiva.

Também há de se levar em consideração a variedade de formas de corrupção, já que nem todo tipo de corrupção é da mesma natureza: desde pequenas transgressões ao desvio de grandes somas de recursos públicos; de ações que podem envolver agentes privados das mais variadas classes sociais a agentes públicos de todas as hierarquias (Pinto, 2011).

Assim como no resto do mundo, a corrupção e sua impunidade são tidas no Brasil como enormes problemas e seu controle é uma prioridade. Ainda que esta tese não aborde diretamente da percepção da corrupção, é muito importante ter essa referência. De acordo com o Datafolha (DATAFOLHA, 2015, pp. 43 e 46/47; 2018, p. 17; 2019, pp. 6 e 64), a percepção da corrupção pela população como maior problema brasileiro cresceu de uma média de 2,5% para uma média de 21,8% entre a segunda metade dos anos 90 (1996/2000) e os últimos cinco anos da série (2015/2019). Ou seja, nos últimos 24 anos, tal avaliação cresceu espantosamente cerca de 770%! Sadek (2019) aponta fenômeno semelhante na percepção entre empresários. O Gráfico 1.1 a seguir apresenta dos dados do Datafolha:

(17)

Gráfico 1.1 – Parcela da população que elege a corrupção como maior problema.

Fonte: http://datafolha.folha.uol.com.br/ (em 04/01/2020).

Trabalhos recentes demonstram que nem sempre o aumento da percepção da corrupção significa uma piora de seu controle ou da governança estatal (IXTACUY, PRIETO & WILLS, 2014). O aumento da percepção pode ser causado por uma maior disponibilidade de informação, consequência de fatores como novas leis de acesso a dados governamentais ou incremento dos meios de comunicação (mídias convencionais e redes sociais), principalmente quando não há um desenvolvimento paralelo do engajamento da sociedade civil. O crescimento da eficiência do denominado sistema de integridade (ou rede de accountability) também pode impactar a percepção da corrupção pela população.

Além dos grandes e incalculáveis danos econômicos, a pior consequência da corrupção e de sua percepção é afetar a legitimidade do sistema democrático, bem como a qualidade da democracia, uma vez que mitiga o apoio ao regime, abala a confiança da população nas instituições, e desacredita os princípios republicano e do primado da lei (AVRITZER & FILGUEIRAS, 2011; BIGNOTTO, 2011; MENEGUELLO, 2013; MIGNOZZETTI, 2013; MOISÉS, 2013; POWER & TAYLOR, 2011; ROSE-ACKERMAN & PALIFKA, 2016). “É a própria existência de um regime livre que se

encontra ameaçada em seus valores e direitos” (BIGNOTTO, 2011, p. 39). A partir de

evidências obtidas no México, Morris e Klesner (2010) constataram uma significativa 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40%

Datafolha: instituto de pesquisas

Avaliação do Presidente Jair Bolsonaro

PO4003 05 e 06/12/2019

Avaliação do Presidente Michel Temer PO813964 06 e 07/06/2018 Avaliação da Presidente Dilma Rousseff PO813824 25 e 26/11/2015

(18)

correlação mútua entre desconfiança nas instituições políticas e percepção da corrupção pela população. Moisés (2010), utilizando dados de países da América Latina e do Brasil, demonstrou que tal correlação é influenciada tanto pelo desenho institucional como pela cultura política.

Outra ótica muito utilizada de análise da questão são as pesquisas de percepção da corrupção por especialistas (experts surveys). Exemplos notórios dessas pesquisas são o Índice de Percepções de Corrupção – IPCorr, da Transparência Internacional, e o Índice de Controle da Corrupção do Banco Mundial (ABRAMO, 2000; IXTACUY, PRIETO & WILLS, 2014; MALITO, 2014, MOISÉS, 2013). Aponta-se, ultimamente, a utilidade limitada dos índices internacionais de governança, amplamente criticados pela baixa precisão causada por sua excessiva agregação, bem como pelo viés político de suas formulações (HEYWOOD & ROSE, 2014; MALITO, 2014; ROSE-ACKERMAN & PALIFKA, 2016). Estudo comparativo em países africanos demonstrou que a percepção da corrupção por especialistas é superestimada em relação àquela percebida pela população em seu cotidiano e influenciada pelos índices internacionais pré-existentes, prejudicando os países mais pobres, principalmente com a utilização de tais índices de governança como critérios para investimentos internacionais (RAZAFINDRAKOTO & ROUBAUD, 2006). Por outro lado, Moisés (2013), em estudos com países latino-americanos, demonstrou que pode haver compatibilidade entre índices agregados e a percepção da corrupção pela população, o que deve ser empiricamente verificada em cada caso. A par dessas questões, índices de percepção da população ou de experts são amplamente utilizados em pesquisas e análises, principalmente na comparação entre países ou para medir resultados de políticas públicas, até por que, em geral, são as únicas medidas disponíveis. Trabalhos mais recentes, conscientes dos problemas apontados acima, têm procurado tratar esses dados de modo cuidadoso e adequado aos seus propósitos.

Observa-se que muitos dos os últimos trabalhos publicados no Brasil sobre o tema são baseados em surveys, ou seja, captam a percepção que a população tem da corrupção (ARANTES, 2011; AVRITZER, 2011; BIGNOTTO, 2011; FERNANDES, 2011; FILGUEIRAS, 2011; GUIMARÃES, 2011; MENEGUELLO, 2011 e 2013; MIGNOZZETTI, 2013; MOISÉS, 2013), e não uma medida direta do fenômeno em si. Conceitos presentes nesses estudos sobre a corrupção precisam ser distinguidos: (1) a ocorrência da corrupção propriamente dita; (2) os casos que são descobertos e

(19)

normalmente revelados em forma de escândalos na mídia; e, finalmente, (3) a percepção do fenômeno pela população. Pensando na questão teórico-metodológica advinda dessas definições, cabe ainda uma ressalva importante: a real ocorrência da corrupção será sempre uma incógnita, pois parte não estimável dos casos permanecerá sempre oculta (BIGNOTTO 2011). De acordo com Pinto:

“Examinar os atos de corrupção revela apenas uma parte do problema, até porque o que está à disposição para análise não é o fenômeno em si, mas os escândalos da corrupção. Em outras palavras, o malfeito que não deu certo. (...). Daí que o aumento dos escândalos veiculados na mídia necessariamente não indica o aumento de casos de corrupção” (PINTO, 2011, p. 8).

Assim, se por um lado podemos relacionar a corrupção em si com os escândalos que trouxeram os fatos à tona, também é importante ressaltar a existência de atos delituosos bem sucedidos que nunca serão revelados, apurados e punidos. Tais atos são conceituados em Criminologia como cifra negra. De acordo com Cervini:

“(...), assinala-se que a existência dessa cifra negra, que Aniyar de Castro define como a diferença existente entre a criminalidade real (quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados) e a criminalidade aparente (criminalidade conhecida pelos órgãos de controle), que indica, comprovadamente, acerca de alguns delitos, um percentual substancial em que não é aplicado o sistema penal e que, em alguns casos, é praticamente absoluto, circunstância que debilita a sua própria credibilidade, ou seja, a credibilidade de todo o sistema penal” (CERVINI, 2002, p. 184).

A partir do conceito geral de cifra negra, que descreve a existência de delitos que não se tornam públicos pela ausência de provas ou conhecimento sobre suas ações, criou-se uma nova variação, denominada de cifra dourada, cuja definição refere-se à criminalidade oculta dos eventos de forte impacto econômico-financeiro. Como exemplos do conceito de cifra dourada estão os crimes de colarinho branco ou, de acordo com Cervini, casos “de grande nocividade social, vinculadas ao exercício

abusivo do poder político, da fortaleza econômica, e, inclusive, da especialização profissional cuja manifestação mais relevante é o domínio funcional ou operativo dos meios tecnológicos” (CERVINI, 2002, p. 220).

(20)

Corroborando esta ideia, Meneguello afirma que “há uma diferença entre a

percepção da corrupção e a experiência concreta com suas possibilidades”.

(MENEGUELLO, 2011, p. 65). Segundo Bignotto, apesar da necessidade de utilização da pesquisa de opinião para a compreensão de parte do fenômeno, “é mister reconhecer

que pesquisas de opinião não são adequadas para desvendar os mecanismos efetivos de corrupção no Brasil” (BIGNOTTO, 2011, p. 17). Por outro lado, raríssimos são os

estudos, principalmente no Brasil, baseados em dados reais. Conforme Speck:

“(...). Em várias regiões do mundo, existem hoje experimentos de cálculo do grau de corrupção, do volume dos desvios, e do custo que o fenômeno tem para a economia, a sociedade e a credibilidade das instituições políticas. As tentativas mais corriqueiras de quantificação se baseiam em três indicadores diferentes: os escândalos relatados na mídia, as condenações contabilizadas nas instituições ligadas à esfera penal e as informações obtidas em pesquisas entre cidadãos” (SPECK, 2000, p. 10).

“Da mesma forma, as pesquisas baseadas em dados do sistema penal ainda estão rarefeitas no Brasil. A tese da impunidade como uma das principais causas para a corrupção no Brasil, mesmo que amplamente aceita, não está baseada em levantamentos empíricos. Uma descrição mais precisa das taxas de morosidade e de impunidade poderá dar indícios importantes para a discussão sobre a reforma do sistema de justiça brasileiro.” (SPECK, 2000, p. 42).

O controle da corrupção é uma questão extremamente complexa, pois depende da estrutura da sociedade, de sua história e de sua cultura, bem como do funcionamento do sistema político. Quanto à abordagem política da questão, entende-se hoje que as instituições envolvidas no controle da corrupção (imprensa, órgãos de fiscalização, polícias, Ministério Público, Justiça, tribunais de contas, Poder Legislativo, entre outros) atuam de forma interligada e interdependente: a chamada rede de

accountability. Um fraco desempenho em quaisquer das instituições que formam a rede

torna o denominado ‘sistema de integridade’ como um todo menos efetivo (ARANTES, 2011; CORRÊA, 2011; TAYLOR, 2011).

(21)

A imposição de sanções por atos de corrupção fornece inúmeros benefícios, pois possui tanto um efeito punitivo quanto preventivo, incrementando a atenção dos demais políticos com suas prestações de contas, bem como fortalecendo a confiança pública no processo democrático (TAYLOR, 2011, p. 162). Dentre as instituições que integram a rede de accountability, o Poder Judiciário ocupa papel primordial, uma vez que é um dos principais responsáveis pela punição dos atos de corrupção (AVRITZER, 2011, p. 55). De acordo com Taylor (2011), a Justiça Federal e a Justiça Eleitoral são as mais importantes instituições formais no Brasil para a imposição de sanções legais.

Assim, sabendo-se que a punição da corrupção é importante para a sustentação da democracia brasileira, e considerando que a atuação da Justiça, especialmente seu ramo federal, é um fator decisivo para tal efeito, pergunta-se qual vem sendo o papel da Justiça Federal no controle da corrupção no período pós-democrático brasileiro (mais especificamente de 1991 a 2014)? Ou, pela via inversa, qual o efeito da democratização no Brasil e do desenvolvimento das suas instituições sobre a punição da corrupção pelo Judiciário federal?

Aventa-se que, apesar da rede de integridade ter evoluído muito no período indicado, o que resultou em significativo aumento quantitativo dos casos submetidos ao Poder Judiciário federal, ainda há sérios desbalanceamentos qualitativos da performance geral do sistema, o que impacta na percepção da corrupção pela população de modo crescente, como acima ilustrado.

Dessa forma, é preciso entender como o Poder Judiciário federal comportou-se em relação aos processos formalizados de corrupção e qual foi o resultado de sua atuação. Este é o principal propósito desta pesquisa, cujo objeto é delimitado aos processos criminais de corrupção e às ações cíveis de improbidade administrativa julgados somente pela Justiça Federal (JF) entre 1991 e 2014. Entende-se por Justiça Federal tanto os Juízes federais de 1º grau e os Tribunais Regionais Federais (conforme o art. 106 da Constituição Federal 1), bem como a atuação dos tribunais superiores (STJ e STF) no que concerne às respectivas competências recursais e originárias nos assuntos de interesse da União (TAYLOR, 2011, p.179, nota 2).

1

“Art. 106. São órgãos da Justiça Federal: I - os Tribunais Regionais Federais; II - os Juízes Federais.”

(22)

Pretende-se identificar de modo amplo os casos de corrupção submetidos ao Poder Judiciário federal de 1991 a 2014, quantificando e analisando seus resultados. Dessa forma, serão verificados os processos cíveis (improbidade administrativa) ou penais (crimes de corrupção ativa e passiva, concussão, peculato, prevaricação, crimes de licitação, entre outros) julgados pelos cinco Tribunais Regionais Federais – TRFs, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ e pelo Supremo Tribunal Federal - STF. Observa-se que o objeto desta pesquisa abrange somente a Justiça Federal comum e seus prolongamentos nos tribunais superiores (STJ e STF), excluindo-se as justiças especializadas eleitoral, militar e trabalhista, bem como as turmas de uniformização ou recursais criminais relativas aos juizados especiais criminais (competentes para os casos de menor potencial ofensivo).

Assim, também se revelará uma radiografia crítica do funcionamento dos Tribunais Regionais Federais e dos tribunais superiores, ainda que limitada ao julgamento dos casos cíveis de improbidade administrativa e criminais de corrupção de suas competências.

Tendo em vista que a Justiça somente pode agir se provocada por uma ação judicial oferecida pelo Ministério Público, neste trabalho aventaram-se as seguintes perguntas: Quantos casos foram submetidos à JF? Qual sua evolução temporal? Há correlações com a recente história nacional? Qual sua distribuição regional? Quais modalidades de corrupção são mais frequentes? Qual a duração dos processos? Em que casos houve condenação definitiva, em quais houve absolvição? Houve condenações no primeiro grau da Justiça que foram reformadas pelas instâncias superiores? Nos casos em que houve absolvições, qual a distribuição entre casos com ou sem análises de mérito? Que fatores influenciaram essa distribuição das absolvições? A morosidade dos processos é relevante? Essas absolvições dependem do tipo de réu que foi julgado ou do montante dos valores envolvidos nos casos? Várias dessas perguntas exploram as variáveis explicativas e as dependentes que serão construídas e medidas ao longo deste trabalho, explorando-se suas relações.

Portanto, a questão da criminalidade oculta representada pela cifra negra, como exposta acima, não causa interferência nesta pesquisa ou em suas conclusões, uma vez que sua delimitação é restrita aos casos de corrupção aparentes que foram formalmente apresentados pelo Ministério Público Federal ao Poder Judiciário federal.

(23)

Ainda que o período de coleta dos julgamentos que compõem os dados desta tese tenha seu termo final em 2014, entendeu-se que alguma interpretação deveria ser dispensada aos fatos recentes ocorridos entre abril e maio de 2020, em plena crise política, durante a pandemia da Covid-19. Assim, considerando o impacto das denúncias apresentadas pelo ex-Ministro da Justiça Sergio Moro no controle da corrupção no País, bem como dos fatos antecedentes, tais questões foram ilustradas no contexto dos entendimentos acadêmicos aqui apresentados, apesar de, como já esclarecido, não comporem a base empírica desta pesquisa.

Além desta Introdução, esta tese compreende o Capítulo 2 sobre conceitos e análises sobre a corrupção, e os esforços para seu controle em perspectiva comparada: o que já foi realizado em diversos países, as críticas dos resultados obtidos e as perspectivas e tendências para o contínuo enfrentamento do problema, inclusive no Brasil. Em seguida, o Capítulo 3 apresenta as estruturas e características do Poder Judiciário, principalmente da Justiça Federal comum, bem como do Ministério Público Federal, cujas compreensões são imprescindíveis para a análise dos dados presentes nesta pesquisa e de suas decorrentes conclusões. O Capítulo 4 expõe as questões metodológicas enfrentadas: definições legais das hipóteses de corrupção consideradas neste trabalho, delimitação das abrangências temporal e espacial, os critérios utilizados na pesquisa dos dados por meio da internet e a sistemática usada em sua obtenção. Também como requisito para a bom entendimento dos métodos descritos nesta tese e dos resultados obtidos, convém descrever os procedimentos de julgamentos dos casos de corrupção abrangidos pelos Processo Penal e Processo Civil da Ação de Improbidade brasileiros, o que foi feito no Capítulo 5. Ainda nesse capítulo, expõe-se o modelo utilizado na classificação dos dados, que, apesar da limitação imposta por sua simplicidade, e em razão dela, mostrou-se extremamente prático é eficaz. O Capítulo 6, sobre resultados obtidos e suas análises, trata da questão da relevância dos julgados, das evoluções anuais, das distribuições por modalidades e por resultados, para cada uma das instâncias e respectivos tribunais. Considerando que a análise quantitativa desenvolvida até o Capítulo 6 não foi suficiente para elucidar algumas questões relevantes sobre variáveis envolvidas no modelo, construiu-se uma amostra que possibilitou a utilização de regressões logísticas multinominais e análises de distribuições por etapas, demonstradas no Capítulo 7.

(24)

Além das conclusões apresentadas no capítulo final (8), no apêndice A explicam-se as técnicas computacionais de aprendizado de máquina utilizadas e a avaliação de seus desempenhos. Já o apêndice B traz o procedimento de construção da amostra utilizada no Capítulo 7. Os anexos de 1 a 4 reproduzem integralmente os relatórios das regressões lineares e logísticas multinominais realizadas ao longo desta pesquisa.

Este trabalho busca trazer uma confirmação empírica de diversas hipóteses presentes na literatura sobre a corrupção no Brasil. Fornece uma tentativa de mensuração da corrupção não usual nos estudos acerca do assunto no país, que têm priorizado o uso de surveys e a análise de escândalos. Utilizando técnicas de inteligência artificial, o texto avalia o universo completo de mais de 15 mil processos que abordaram a corrupção nos Tribunais Regionais Federais, no STJ e no STF entre 1991 e 2014. Este banco de dados inédito, que inclui informações sobre o volume de processos, sua evolução ao longo do tempo e o resultado processual, permite testar várias hipóteses influentes na literatura. Os dados amostrais também contribuem para pensar de forma mais nuançada os avanços no combate a corrupção no Brasil, demonstrando que, embora tenha aumentado o combate à corrupção e sua punição nos tribunais federais, o sistema como um todo funciona de forma seletiva e não detém a impessoalidade devida para uma esperada atuação republicana, com sequelas potencialmente severas para a legitimidade do Judiciário e para o funcionamento da nossa democracia, conforme espelhado pela percepção da corrupção da sociedade indicada no início desta Introdução.

(25)

2. Conceitos, análises e o controle da corrupção.

Como visto na introdução anterior, a corrupção é considerada um sério problema, tanto para a população como para os pesquisadores, no Brasil e mundialmente. Mas afinal, como é possível controlar a corrupção? Por que alguns países têm seus níveis de corrupção controlados e outros não? Os programas de reformas para o controle da corrupção alardeados internacionalmente nas últimas décadas apresentaram resultados satisfatórios? Quais estratégias podem ser hoje tomadas para a diminuição da incidência da corrupção? E no Brasil, qual é o diagnóstico, quais são os prognósticos?

Preliminarmente, para tentar responder os questionamentos acima, é necessário entender melhor o que é a corrupção, quais são suas características, como ela manifesta-se, quais suas consequências. Assim, apresentar-se-ão a seguir as evoluções de seus conceitos e das análises sobre o tema, tanto no Brasil como internacionalmente. Uma vez que nesta tese será utilizada uma definição de corrupção baseada em tipos legais, conforme exposto no Capítulo 4 a seguir, os diversos conceitos ora apresentados não constituem vinculação a um balizamento teórico fechado, mas uma representação da multiplicidade e complementariedade das inúmeras características e facetas do fenômeno da corrupção, bem como da transformação dos exames sobre o assunto.

Conceitos e análises

Ainda que o termo corrupção seja polissêmico, e a história se refira a esse fenômeno de formas diferentes ao longo do tempo, atualmente é comum utilizar-se do termo corrupção pública de forma ampla e genérica: toda e qualquer forma de aproveitamento indevido de recursos públicos em geral; englobando, dentre outros, os diversos crimes praticados contra a administração pública, os delitos eleitorais, os crimes praticados contra a ordem tributária ou contra a ordem financeira (chamados de crimes do colarinho branco), os ilícitos praticados em licitações, a divulgação de informações privilegiadas, os casos de tráfico de influência, favorecimento ou nepotismo.

De acordo com Filgueiras, “Não há, no âmbito do pensamento social e

(26)

Esse tema foi, por muito tempo, negligenciado pelos estudos acadêmicos e reflexões teóricas no país, tanto em relação à política como no que tange à economia, à sociedade e à cultura. Só recentemente, retornou a questão, de forma autônoma, à ordem do dia (FILGUEIRAS, 2009).

Ainda segundo Filgueiras, a abordagem tradicional do tema se deu a partir de uma linha do pensamento político e social brasileiro, com o enfoque no patrimonialismo, conforme proposto por Faoro (2000, apud FIGUEIRAS, 2009). Buscava-se explicar os casos de malversação dos recursos públicos e certa imoralidade da população nativa. Nesse sentido, o Estado moderno brasileiro não foi formado de acordo com as regras racionais e impessoais inerentes ao capitalismo, impossibilitando a separação entre os meios de administração e os funcionários e governantes. Legitimou-se, assim, a exploração de seus cargos, posições e informações privilegiadas para usos privados. A herança da tradição do mundo ibérico, tida como vício de origem, criou um Estado opressor da sociedade, que lhe servia para a implantação de um sistema de prebendas e privilégios para os estamentos alojados na burocracia estatal. A chave interpretativa era a ausência de separação entre o público e o privado. “O resultado do

patrimonialismo é que a corrupção faz parte de um cotidiano de nossa constituição histórica” (FILGUEIRAS, 2009, p. 389). A corrupção no presente poderia ser explicada

pela formação histórica do Estado brasileiro e de sua sociedade, bem como da forma como o capitalismo foi implantado.

De acordo com Hollanda (1995, apud FILGUEIRAS, 2009), o patrimonialismo deve ser complementado com o conceito de personalismo, segundo o qual a ausência de impessoalidade não rege somente as relações dos cidadãos com o Estado, mas também determina as relações sociais e impregna a cultura política. A herança ibérica, bem como a difundida e valorizada cordialidade do brasileiro, inviabilizariam a construção de uma ordem pública e até de uma democracia. Contrapondo tal ideia, Filgueiras diz que:

“O problema dessa abordagem é reconhecer que a cultura política brasileira assenta-se apenas no mundo dos sentimentos, sem reconhecer um traço de modernidade e racionalização da sociedade. Esse tipo de leitura empobrece a análise e engessa a possibilidade de mudança social. Além disso, enquadra a explicação da corrupção à formação do caráter do

(27)

brasileiro e sua natural desonestidade, com o risco de naturalizar a corrupção a partir da existência da família patriarcal” (FILGUEIRAS, 2009, p. 390).

Para Souza (2008), as concepções do patrimonialismo e do personalismo remetem o tema da corrupção, cuja origem estaria na confusão entre bens particulares e bens públicos, a uma inerente e preponderante característica das relações sociais no Brasil. Tal tese seria crítica somente na aparência, mas, na realidade, mostra-se conservadora e teoricamente frágil, pois inibe o aprofundamento dos debates acadêmicos e políticos, bem como ignora as realidades burocrática, econômica e social brasileiras.

Segundo Pinto, o que se observa atualmente no Brasil não é um “fenômeno

de patrimonialismo, de fusão entre o público e privado” (PINTO, 2011, p. 70). De

acordo com a autora, o problema passa por outro enfoque: o da relação que a sociedade em geral tem com o público e o privado. As interpretações que caracterizam o país como pré-moderno, moderno atrasado ou como modernidade inacabada emperram a evolução das análises. Por outro lado, os clássicos intérpretes do Brasil possuem grande valor quando “apontam a presença da relação de desigualdade entre homens e

mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, cultos e incultos e tantas quantas possam colocar cada um em um patamar de distinção em relação aos outros” (PINTO, 2011, p.

49).

Ainda conforme Filgueiras (2008-A), o tratamento sistemático da corrupção surge nos Estados Unidos, nos anos 50, a partir de uma perspectiva funcionalista para os estudos das ciências sociais, que busca compreender como a corrupção influencia o desenvolvimento de sociedades tradicionais e subdesenvolvidas, relacionando-a ao problema do desenvolvimento político e econômico. Segundo Huntington (1975), pelas teorias da modernização, a corrupção significa desfuncionalidades das instituições políticas em meio ao embate do conservadorismo da tradição com os processos de mudanças. De acordo com o mesmo autor (FILGUEIRAS, 2008-A), Joseph Nye (1967) analisava a corrupção sob a ótica do custo versus benefício e entendia que a corrupção poderia ser até benéfica, na medida em que facilitaria o desenvolvimento do capitalismo frente aos entraves burocráticos estatais tradicionais.

(28)

A partir dos anos 70, a literatura direcionou-se para o tema da cultura, a partir da ideia que a cultura prepondera sobre o político e o econômico na definição dos valores que estruturam a sociedade. Apesar do rompimento com a ideia dos ‘benefícios da corrupção’, manteve-se a estrutura metodológica básica do funcionalismo, de modo que a receita para o combate da corrupção era incorporar o modelo das instituições dos países desenvolvidas e os critérios da modernidade capitalista (FILGUEIRAS, 2008-A).

Com uma nova abordagem dos anos 80 e 90 para cá, as pesquisas sobre corrupção incorporaram uma visão econômica para um problema político, considerando análises de custos numa economia de mercado em ascensão. Compreende-se a corrupção “como o resultado de configurações institucionais e o modo como elas

permitem que agentes egoístas autointeressados maximizem seus ganhos burlando as regras do sistema político” (FILGUEIRAS, 2009, p. 396). Essa abordagem baseada nas

premissas da escolha racional e do novo institucionalismo, cujo expoente foi Susan Rose-Ackerman (2016), foi amplamente adotada por organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional em suas prescrições para a reforma do Estado. Critica esse autor que a abordagem econômica tende a naturalizar a corrupção na órbita dos interesses materiais, ignorando que ela “está relacionada a

processos sociais, e, por conseguinte, simbólicos” (FILGUEIRAS, 2009, p. 397).

Para Bignotto (2011), citando Filgueiras, não há uma teoria política da corrupção, mas diferentes abordagens delimitadas por suas finalidades. “Os dois

modelos dominantes de análises da corrupção no século XX colocam no centro a ideia de que a matriz a ser estudada são os interesses” (BIGNOTTO, 2011, p. 31). Para a

teoria da modernização, a corrupção está correlacionada a “desfuncionalidades” das instituições políticas nos processos de mudança social intrínsecos à evolução do capitalismo em confronto com a inércia da tradição. Por outro lado, segundo a teoria da escolha racional, agentes políticos maximizam sua utilidade mediante suborno ou propina, atuando na interface dos setores público e privado. Tal abordagem relaciona-se à teoria econômica de “rent-seeking” e com o ideal liberal do estado mínimo (liberalismo deontológico), conforme descrito por De Vita (2008).

Conclui Pinto que a corrupção é, em essência, a apropriação do público por interesses privados (PINTO, 2011, p. 51), e também “é antes de tudo uma forma de

governar que encontra condições de emergência variadas, em diversificados cenários políticos, em tempos históricos diversos” (PINTO, 2011, p. 50).

(29)

Partindo-se de uma ótica realista e crítica, a corrupção é um fenômeno universal, que atinge todas as sociedades, afeta a legitimidade do sistema democrático, uma vez que mitiga o apoio a tal regime, e abala a confiança da população em suas instituições. O desempenho do regime democrático passa a ser questionado como a melhor forma de estruturação do sistema político. Citando Warren, Meneguello diz:

“(...) a corrupção tem efeitos significativos sobre a democracia: ela rompe com os pressupostos fundamentais do regime, como igualdade política e participação; reduz a influência da população no processo de tomada de decisões, seja por fraudes nos processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfiança e pela suspeita que ela gera entre os próprios cidadãos com relação ao governo e às instituições democráticas; e minimiza a transparência das ações dos governantes” (Warren, apud Meneguello, 2011, p. 64).

No Brasil, mesmo com o desenvolvimento institucional auferido com a reforma administrativa e com o consectário ganho de transparência, o monopólio burocrático sobre as políticas públicas e de o combate à corrupção mantém o conflito entre democracia e burocracia. “A principal vítima da corrupção no Brasil democrático

é a própria democracia, em especial as instituições representativas” (FILGUEIRAS,

2011, p. 153).

Para Bignotto (2011), há a percepção de que a corrupção concentra-se nas instituições e nos poderes, por outro lado afetam menos as pessoas em geral e as formas associativas da vida privada. Há a identificação da arena política (e pública) como preferencial para a ocorrência de práticas corruptas. Todavia, constata-se certa ambiguidade na classificação de atos de corrupção em atitudes cotidianas mais próximas do cidadão comum, bem como as necessárias correlações entre as esferas privada e pública. Se há o agente público corrupto é por que também há o agente privado corruptor: “no caso brasileiro é justamente essa permeabilidade entre as duas

esferas e a ausência de controle sobre os canais de realização dos interesses privados, o que corrói o tecido político” (BIGNOTTO, 2011, p. 33).

De acordo com Guimarães (2011), existe uma falaciosa tendência de contraposição entre sociedade civil virtuosa versus Estado potencialmente corruptível, produzindo um diagnóstico da gênese da corrupção no Estado, “desprezando ou

(30)

obscurecendo suas conexões com os interesses privados que com ele se relacionam”.

(GUIMARÃES, 2011, P. 87) Necessita-se assim, de uma nova compreensão de sociedade civil que abarque também as relações corruptas entre o mundo privado e o Estado, bem como uma definição de corrupção do corpo político que identifique o fenômeno simultaneamente na sociedade civil e no Estado. Ilustra muito bem esse ponto de vista a dificuldade dos entrevistados em identificar corrupção nos comportamentos antiéticos e até mesmo ilegais das pessoas que os cercam.

Ademais, Pinto (2011) reconhece que a discussão política do assunto é moldada pelo discurso da mídia, moralista e repetitivo, no sentido de demonizar os políticos e santificar a sociedade civil, o que empobrece a compreensão do tema e o avanço do seu combate: “os atos de corrupção, os corruptos e os corruptores não estão

em um distante ‘outro’, amoral, aético, perigoso, bandido, mas fazem parte da forma de toda a sociedade brasileira se relacionar com o ente público” (PINTO, 2011, p. 10).

Não é só a mídia que reduz a política à corrupção, mas a própria classe política também o faz. A disputa política se resume a mútua acusação de atos de corrupção pelos partidos, independente de posição ideológica. Não é a sociedade civil organizada que investiga e apura os casos de corrupção, mas suas denúncias são geradas no próprio ambiente político, dentro do aparato do Estado (FILGUEIRAS, 2011).

“À massa do eleitorado cabe a fúria, a indignação, o desejo de vingança, o afastamento da política, sentimentos que matam qualquer atitude proativa em relação à vida pública e à luta pela defesa de direitos e pela moralidade pública” (PINTO, 2011, p. 12).

A hipótese da autora é que a corrupção, antes de ser uma mera consequência do sistema político, tem sido um elemento constitutivo da política nacional após a redemocratização. “O entendimento da política brasileira como um campo regido pela

corrupção tem configurado um cenário de disputa política muito particular no país”

(PINTO, 2011, p. 14). Ao eliminar a dicotomia entre os políticos corruptos (Estado, público, ineficiência, roubalheira, politicagem) e sociedade civil honesta (trabalho, eficiência, dignidade, integridade), o entendimento da corrupção pública como forma de governar funde definitivamente esses dois mundos (público e privado). Entende Pinto (2011), ainda, que, analisando os três níveis governamentais brasileiros, a corrupção como forma de governar é mais intensamente praticada nos municípios de pequeno e médio porte do que nos âmbitos estaduais e federal.

(31)

É possível estabelecer uma divisão entre duas “formas” de corrupção pública: a primeira como uma relação entre os entes privados (pessoas físicas e jurídicas) e o setor público; e a segunda como corrupção intra-Estado, na qual a participação da sociedade civil é, no máximo, residual (Pinto, 2011). A corrupção no setor público merece especial atenção, pois debilita as metas de desenvolvimento e de distribuição de recursos públicos e antagoniza os valores democráticos e republicanos (ROSE-ACKERMAN & PALIFKA, 2016, p. 7).

É na corrupção intra-Estado que a classe política aparece como grande vilã, em contraposição à sociedade civil virtuosa. Tais casos possuem grande repercussão na mídia e na opinião pública, conforme demonstram os surveys realizados, “e estão muito

de perto relacionadas com as teses dominantes do fim do século XX do neoliberalismo, no qual o estatal e o público aparecem como o lado do capitalismo que não deu certo”

(PINTO, 2011, p. 56). Por outro lado, os grandes escândalos financeiros, quase que exclusivamente gerados pela iniciativa privada, não apresentam a mesma carga simbólica. Ressalta-se, ainda, como um bom exemplo de corrupção intra-Estado os casos de nepotismos, uma vez que “permite perceber como há um grupo no topo da

pirâmide de desigualdades, que vive concretamente o direito de ter direitos diferenciados” (PINTO, 2011, p. 57).

Há uma concepção, bastante idealizada e maniqueísta, sobre a modernidade. Ela traduz a racionalidade absoluta na política, bem como nas vidas pública e privada: o moderno é o bom, o ideal a ser conquistado, a solução de todos os problemas; em contraposição ao passado, atrasado, causa de todas as questões, resquício a ser eliminado. A corrupção, em sendo algo ruim, é identificada com os tempos antigos, entrave que a plena realização da modernidade irá suplantar (PINTO, 2011). Essa abordagem dificulta a análise e a compreensão do fenômeno, uma vez que, ao separar os conceitos, afasta aspectos que reciprocamente se influenciam e interpenetram. “No

mundo contemporâneo, a modernidade é permeada pela corrupção e vice-versa. No Brasil, em particular, modernidade e corrupção se modelam mutuamente, e mais: a corrupção é um fenômeno da modernidade brasileira” (PINTO, 2011, p. 20).

Pinto (2011), a partir dos estudos de Souza (2006), detalha o conceito de hierarquia das desigualdades e de sua legitimidade solidificada na teia social brasileira. Conclui que: “a modernidade no Brasil abarca dois perversos princípios de igualdade

(32)

sentem desiguais” (PINTO, 2011, p. 32). As elites acham-se desoneradas de cumprir as

normas. As classes populares têm o argumento da pobreza para não as cumprir, exceto quando ameaçam a ordem e seu cumprimento é garantido pela violência. “Em termos

legais, a classe média é a campeã de pequenos delitos” (PINTO, 2011, p. 33): frauda a

declaração do imposto de renda, ignora as leis de trânsito, corrompe agentes estatais da baixa burocracia, e, se tiverem a chance, também podem ser corrompidos. A questão da sonegação tem também outro agravante, pois aquele que sonega usufrui duplamente da mesma renda: uma ao sonegar e outra ao usufruir de serviços públicos custeados pelos demais contribuintes. “É nessa sociedade sonegadora de impostos que há os grandes

escândalos de corrupção. Não há nenhuma coincidência nisso” (PINTO, 2011, p. 55).

Ratifica a autora, retomando trabalho de Domingues (1999) 2, que a corrupção não é uma herança do país pré-moderno ou pré-democrático, mas um elemento formador da modernidade brasileira, decorrente de um processo de inclusão que manteve as desigualdades em todos os planos (social, econômico, cultural e político). Isso não significa que a modernidade ou a democracia brasileira dependam da corrupção, mas ela é um elemento tão bem moldado na estrutura brasileira que sua eventual mitigação necessita de mais que a sincera indignação social e midiática (PINTO, 2011).

Segundo Mungiu-Pippidi (2015, p. 208), a maior parte das iniciativas anticorrupção promovidas por doadores ocidentais em países em desenvolvimento presume que o universalismo ético é o padrão de governança, e, por conseguinte, a corrupção é um desvio. Porém, nesses países, a corrupção não é a divergência, mas a norma. Nesses ambientes, o particularismo é um modo alternativo de alocação de recursos, mais frequente e tido como mais natural na prática social que o universalismo ético. Apesar do alerta de críticas acadêmicas, a abordagem dominante ainda insiste em enumerar subornos, reprimir desvios, incentivar maus-caracteres a tornarem-se honestos, numa tentativa falha de provar que a integridade é mais racional que a fraude. Como será demonstrado a seguir, tais iniciativas obtiveram quase absoluto insucesso.

O autorreconhecimento das diversas desigualdades criou a internalização da diferença como o direito a ter privilégio, característica da modernidade brasileira. A constatação de um determinado privilégio do outro legitima um outro privilégio do

2

“José Domingues, Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999”; conforme citado por Pinto (2011, p. 166).

(33)

reconhecedor, e autoriza as mais variadas transgressões, em formas, relevâncias e consequências. “O não cumprimento da lei é um objeto de desejo, pois é o fundamento

da diferenciação” (PINTO, 2011, p. 44). Não se trata de um problema patológico da

população brasileira ou de seu destino traçado na colonização, mas da consequente naturalização dos privilégios em decorrência de longo processo histórico de formação de nossa sociedade. Conforme trecho a seguir transcrito, argumenta a autora que tais características consubstanciam a antítese da cidadania:

“Assim, uma questão crucial da corrupção no Brasil é a existência de hierarquias múltiplas no lugar do princípio da igualdade, o que coloca cada indivíduo sempre como subalterno e ao mesmo tempo superior a alguém e, portanto, não obriga a submeter-se a um tratamento igualitário perante as leis e os regramentos jurídicos” (PINTO, 2011, p. 44).

Num sentido muito parecido ao acima exposto, Mungiu-Pippidi, em uma abordagem global, ao tratar dos países que classificou como “particularismo competitivo” (dentre os quais o Brasil, 2015, p. 261), com sistema de acesso intermediário entre aqueles de acesso aberto (universalismo) e os de acesso fechado (patrimonialismo), expôs que:

“People in such a regime do not expect to be treated fairly by the state, but they do expect those of the same status to be treated similarly. The social struggle, therefore, is to belong to the privileged group rather than to challenge the rules of the game. A culture of privilege reigns in closed access societies, making unequal treatment the accepted norm.” (MUNGIU-PIPPIDI, 2015, p. 32) 3

3

Tradução nossa: “As pessoas em tal regime não esperam ser tratadas com justiça pelo Estado, mas esperam que as pessoas com o mesmo status sejam tratadas da mesma forma. A luta social, portanto, é pertencer ao grupo privilegiado, em vez de desafiar as regras do jogo. Uma cultura de privilégios reina nas sociedades de acesso fechado, tornando o tratamento desigual a norma aceita.”

(34)

O controle da corrupção e sua evolução em perspectiva comparada

A corrupção em um país não pode ser entendida como uma mera agregação de eventos ou indivíduos corruptos, mas pela estrutura de suas instituições, ou seja:

“pelas regras do jogo influenciadas pela distribuição de poder e pela forma de alocação dos recursos públicos” (MUNGIU-PIPPIDI, 2015, p. 23). Os países que

ocupam o topo da lista do Índice de Percepções de Corrupção da Transparência Internacional em algum momento em seu passado conseguiram construir um sistema de acesso não-discriminativo e aberto, e suas instituições diferem substancialmente daqueles colocados no fim da lista. Já os de posições intermediárias lutam entre os dois extremos, onde práticas universalistas e particularistas coexistem, com mais ou menos competição. Há, porém, uma delimitação invisível que diferencia as sociedades em que o universalismo ético é a norma daquelas em que o particularismo prevalece.

Para Taylor (2019, p. 1313), países que conquistaram um controle efetivo e perene da corrupção passaram por processos históricos longos e fortuitos em que não existiu um projeto estratégico e reformador específico para tal, mas esse benefício foi gerado como um “efeito colateral” de mudanças incrementais da governança geral. Segundo esse autor:

“Lamentavelmente, são raros os casos em que regimes políticos de “acesso fechado” – o que North e seus colegas denotam como “closed access”, em que as políticas públicas privilegiam grupos específicos e as relações sociais são marcadas pela desconfiança – se transformaram em sistemas abertos (“open access”), com instituições políticas inclusivas, universalismo de procedimentos e altos níveis de confiança entre atores e instituições” (TAYLOR, 2019, p. 1313). 4

A mudança de um estado de equilíbrio pernicioso para outro mais virtuoso demanda um grande esforço da sociedade, já que são baseados em normas, rotinas e padrões institucionais de comportamento. São transformações profundas, no estado de espírito coletivo, de modo que todos os membros da sociedade tenham incentivos para agir de maneira diferente. Em um equilíbrio muito pernicioso, os próprios mecanismos

4

Nota de Taylor (2019, p. 1313): “Douglass C. North, John Joseph Wallis, e Barry R. Weingast, Violence and Social Orders: A Conceptual Framework for Interpreting Recorded Human History (Cambridge: Cambridge University Press, 2009), xii.”

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