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CAPÍTULO 2: A experiência poética da página em branco em “Uma faca só lâmina”

2.1. O poema da recusa, carência e negação: coisa, imagem, voz

Escrever sobre “Uma faca só lâmina é falar sobre recusa. O poeta recolhe palavras, quer a escrita do corte, o fio da navalha e, para isso, escolhe, seleciona, combina, dialoga. A poética é de recusa ao fácil, a luta é pela palavra.

No processo de criação do poeta entram em cena as operações do ver, ouvir, silenciar. O poeta coloca em destaque o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. No livro A metalinguagem, Samira Chalhub (1997, p. 22), destaca:

Segundo Roman Jakobson, em “Linguística e poética”, “A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação”. Toda organização de linguagem implica a seleção, a escolha de alguns signos e, portanto, a renúncia de outros.

Barbosa (2009, p. 108), em As ilusões da modernidade, também reflete sobre a metalinguagem e, em especial, fala de uma poesia metalinguística em João Cabral:

Uma educação paradoxal porque poética: livre do diadaticismo por força da construção, a sua obra ensina mais radicalmente, isto é, pela raiz das coisas em que são procuradas as significações mais entranhadas. Neste sentido, é possível falar numa poesia eminentemente metalinguística: não uma poesia sobre poesia, mas uma poesia que empresta a linguagem de seus objetos para com ela construir o poema.

Nesse sentido, João Cabral lê a realidade pelo poema, refazendo a história pelas leituras anteriores da poesia. Frisa Barbosa (2009, p. 109):

Por isso, metalinguagem e história em sua obra interpenetram-se tão fecundamente: a historicidade de sua poesia está sempre apontando para dois espaços fundamentais, isto é, o de sua própria linguagem com que o nomeia. A sua poesia é histórica na medida mesmo em que, cada vez mais, põe em xeque o sentido de sua linguagem.

28 Nessa linhagem de pensamento, Haroldo de Campos (1976, p. 21), em um de seus ensaios Texto e História, aponta para a importância dessa dialogicidade passado/ futuro:

“No vocabulário crítico a palavra precursor é indispensável, mas teríamos de purificá-la de toda conotação polêmica ou de rivalidade. A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado como há de modificar a do futuro.” (Kafka y sus precursores”).Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo livro movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. Nesse sentido é que a literatura é o domínio do simultâneo, um simultâneo que se reconfigura a cada nova intervenção criadora.

Também Pignatari (1973, p. 11) entende que, no processo de criação, o rigor na seleção das palavras reflete na agudeza da construção do poema, afirma: “o poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem”. É desse modo que o poeta João Cabral constroi sua poética. Firmado em seu olhar-pincel, esmiúça a palavra no poema, fazendo de a faca, a bala, o relógio, lâminas silenciosamente cortantes.

Ernesto de Mello e Castro (1984, p. 35-36), no livro Projeto: Poesia, tece algumas considerações sobre essa relação:

O Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein desenvolve uma pesquisa da linguagem logicamente perfeita, na qual estão inequivocadamente definidas as relações entre as palavras e as coisas. (...) Existe, portanto uma inumerada quantidade de relações entre ideias, coisas e palavras de que não podemos falar, servindo- nos da linguagem logicamente perfeita. Há então uma obrigatoriedade de silêncio a respeito dessas relações. (...) A Poesia é assim o silêncio que se diz em palavras.

Ernesto de Mello e Castro (1984, p. 39) assinala o silêncio como valor positivo de criação artística e como material de criação, podendo ser comunicação sem mensagem. O poeta quer o silêncio do risco da lâmina na folha em branco.

Segundo José Castello (2006, p. 47), em João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & diário de tudo, o jovem Cabral embrenhou-se, em particular, a ler poesia e, sobretudo, ensaios sobre poesia, versos de Charles Baudelaire, de

29 Stéphane Mallarmé e ensaios de Paul Valéry, escritor que teve papel decisivo em sua formação.

Podemos pensar a poesia de João Cabral a partir da negatividade. Ele enveredou na construção de seus poemas, revelando-a como procedimento construtivo. Em vez do fácil, prefere o trabalho severo e severino, operado por meio de recusas. Essa qualidade é marca de uma família de poetas. A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo, afirma Augusto de Campos (2003, p. 15), em seu livro Poesia da recusa:

Da recusa estética (Mallarmé) à recusa ética (Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa poesia, baluarte contra o fácil, o convencional e o impositivo, ficou à margem e precisa, de quando em vez, ser lembrada para que a sua grandeza essencial avulte sobre o aviltamento dos cosméticos naturais.

Augusto de Campos (2003) comenta também que Quirinius Kuhlmann, o estranho poeta-mártir, é o melhor ícone para alegorizar a poesia da recusa. Também nessa categoria, dentre eles: Mallarmé, Maiakóvski, Tzvietáieva, todos unidos pela rebeldia poética. Declara, ainda, que também Cabral, como Mallarmé, recusa viver o mundo que rejeita. Sua poesia nasce em luta. Ambos fizeram do ato de escrita um ato de experiência em plena lucidez. João Cabral foi buscar, no mestre Stéphane Mallarmé, algumas lições que incorporou em sua poesia. Acrescentamos que o poema “Uma faca só lâmina” é exemplo vivo dessa experiência de tormenta do poeta que trabalha com uma poesia do não, embrenha-se pela poética mallarmaica e também de Valéry.

Solange Rebuzzi (2010, p. 2-3), em O idioma pedra de João Cabral, corrobora que a escrita de João Cabral:

(...) reflete sobre o paradoxo da linguagem que se faz coisa, e ao mesmo tempo se mostra na fórmula: “Tudo proferir é também proferir o silêncio. É, portanto, impedir que a palavra jamais se torne silenciosa.” Um paradoxo que atingiu tanto Mallarmé como Blanchot e que chega a João Cabral, no sentido de tê-lo colocado a trabalhar com as coisas e com a paixão pelo silêncio ao mesmo tempo. Sabemos que o silêncio perfeito, completo, é impossível e inacessível. O poeta, portanto, compõe versos que mostram o movimento da linguagem e a luta com a palavra que nunca se diz inteiramente.

30 A luta com a palavra é uma experiência que se faz presente desde sua primeira obra Pedra do sono (1942) em que, supostamente, o poeta ergue, com os versos de Mallarmé “Solitude, Recife, estrela...”, um brinde, endereçando os três significantes ao seu futuro de poeta. (REBUZZI, 2010, p. 7).

A poesia de Cabral nega a inspiração, é uma escrita de rigor de um poeta crítico. O seu olhar sobre a escrita é muito mais preciso, porque sua escrita é cortante. Cabral nega o sujeito. A despersonalização é um dos traços mais marcantes da estética literária moderna, pautando-se a literatura numa série de critérios, cujo ponto principal é a negação da categoria sujeito.

Pode- se reconhecer, também, muitos dos conceitos e dos temas de Paul Valéry e Mallarmé na poética de Cabral: a página em branco, a criação como ato de pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever. Segundo Benedito Nunes (2007, p.27), para Valéry, o ato de pensar, que se prolonga no ato de escrever, consiste numa operação de caráter voluntário. É a disciplina intelectual que, suprimindo o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental, impõe limites à dispersão dos fenômenos interiores, furtando-se não só à inspiração como forma romântica de entusiasmo que embriaga, mas também ao sonho que fascina e ao inconsciente que o reduziria a um “papel lamentavelmente passivo”. O poeta deve ganhar essa luta para poder construir, enfim, o poema como máquina de linguagem. Máquina que requer construção, rigor, limites. Nada é por acaso, o poeta tem consciência do seu ato criativo.

A lucidez entranhada de Cabral e a busca de diálogo por meio da leitura que faz da obra mallarmaica ecoam nos versos de “Uma faca só lâmina”. A escrita de Cabral reflete o paradoxo da linguagem. Escrever, para Mallarmé e Cabral, era ato de luta, privar-se na folha em branco e, nessa experiência, encontrar a palavra que componha o verso, que mostre o real. Eles vivem uma experiência extrema. Blanchot (2011, p. 31) caracteriza essa experiência, ao dizer:

Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável dela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito à esperança, deve pelo contrário,

31 desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.

A negativa permeia a obra de João Cabral, o poeta tem a experiência da criação levada às últimas consequências, porque o seu objetivo é o desnudamento total, isto é, encontrar a palavra que concretize o objeto. Uma escrita cortante, de faca, só lâmina. Conforme declara Benedito Nunes (2007, p. 28):

A luz da depuração e do esvaziamento, tópicos de uma poética negativa, o que antes era resíduo, produto de criação misteriosa, transplantado à superfície mineral da folha em branco, é a natureza própria das coisas – quando em estado de palavras – e das palavras quando em estado de coisas.

É no “vazio” que se dá o “não”, a recusa. A poesia de João Cabral está fundamentada num projeto que rejeita modelos, busca na invenção algo mais do que encontra na criação: um passo a mais, um passo em direção ao novo, dizendo “não” ao que é conhecido e fácil ou, apenas, já dito. (Rebuzzi: 2010, p. 84). Desse modo, o vazio da experiência da página em branco é uma experiência limite na vida do poeta.

João Cabral embrenhou-se, em particular, na poesia de Paul Valéry, por intermédio de outro intelectual, Willy Lewin, seu amigo na juventude que lhe empresta os livros em francês. Cabral os devora sem pestanejar. Também José Castello (2006, p. 48), lembra que Cabral adota a lição valeriana, passando a buscar uma poesia dirigida pela razão. O poeta o descobre seu cúmplice. O poder que Valéry tem de teorizar suas obras fascina Cabral. O rigor na articulação teórica, o cerebralismo, a reflexão sobre o fazer, Cabral carrega para a criação dos seus poemas na antologia Duas Águas, dentre os quais está “Uma faca só lâmina”.

O subtítulo do poema - (Ou: serventia das ideias fixas) - é termo emprestado de Valéry. No livro O engenheiro, há um poema “A Paul Valéry”, no qual esclarece o projeto engenheiro do poeta Valéry, e mostra suas fases: as suas conhecidas e nomeadas ideias fixas (Rebuzzi, 2010, p. 28). O poema diz:

A Paul Valéry (...)

Doce tranquilidade do não-fazer; paz,

32 equilíbrio perfeito do apetite de menos. (...) Doce tranquilidade do pensamento da pedra,

sem fuga, evaporação, febre, vertigem. (...) A inaudível palavra futura – apenas saída da boca, sorvida no silêncio. (MELO NETO, 2007, pp.58,59).

Faz parte desse projeto um apetite por “menos”. A poesia negativa, a poesia da recusa se faz a partir do árduo trabalho da escolha que requer recusas, lucidez, doce tranquilidade do pensamento lúcido, sem fuga nem “vertigem”.

A ambição literária de Valéry era a escrita de precisão. Isso foi seguido à risca por João Cabral em todo seu projeto poético. Para Valéry, o ato de pensar, que se prolonga no ato de escrever, consiste numa operação voluntária (NUNES, 2007, p. 29). É a disciplina intelectual que, suprimindo o supérfluo, evitando o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental, impõe limites tanto à dispersão dos fenômenos subjetivos, quanto à sua incessante fluidez, impõe silêncio.

Essa disciplina intelectual pode-se observar na composição do poema. João Cabral em seu ensaio de 1952, intitulado “Poesia e composição”, declara:

A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que pra uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição é, hoje em dia, assunto por demais complexo, e falar da composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.

O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momento sem que diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir. (MELO NETO, 2007, p.703).

33 A poética de João Cabral dialoga com a poética de Valéry: escrita de precisão observada no exercício intelectual, fascínio pela forma, poesia da recusa, Cabral elabora poesia no poema, trabalha com coisas. Em entrevista a José Castello, Cabral (apud CASTELLO, 2006, p. 168) disse que “Valéry foi o homem que mais marcou sua poesia”. O poeta francês o convence, em definitivo, de que a inspiração é o blefe dos indolentes e que a arte é apenas um trabalho intelectual. Paul Valéry tinha obsessão pela precisão. Ambos se assemelham nessa fronteira em que a obsessão pelo rigor se avizinha da insanidade.

O rigor é obsessão na obra de João Cabral. O reflexo desta obsessão está no subtítulo do poema que estudamos “Uma faca só lâmina” (Ou: serventia das ideias fixas). O próprio processo de criação do poeta é raiz de inquietação, no seu laborar a linguagem poética.

O poeta, por meio do rigor de uma poesia que recusa tudo o que é fácil, vai golpeando a linguagem com suas palavras-tema. Faca é uma delas, o corte é radical, ele põe em funcionamento uma poesia da negatividade em grau máximo, uma poética que se constrói com cortes. Assim o poeta privilegia o olhar, a palavra na experiência-limite.

João Alexandre Barbosa (1996), no ensaio “A lição de João Cabral”, escreve que o poeta aprende lições sobre contenção e submissão à meditação pelos caminhos da linguagem poética. Mas neste aprender há um perigo: o do silêncio por força da recusa, da negação. É justamente essa recusa articulada desses elementos que intentam uma afirmação dialética da poesia, o poeta não quer a bala, não quer o relógio, não quer a faca, quer a alma da faca, quer a lâmina, o fio da navalha, enquanto instrumento de uma busca de significação a ser encontrada.

Diante dessas considerações, perguntamos: qual a relação entre imagem e realidade? Em “Uma faca só lâmina” -, “faca, bala, relógio” - qual das três imagens mais se afina com a realidade desnuda?

A imagem cruel da lâmina é a que mais chama a atenção do poeta: Por isso é que o melhor

dos símbolos usados é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado) (p. 182)

34 João Cabral, à luz dos elementos de uma poesia negativa, compõe e decompõe a experiência da luta que é a do poeta no campo da folha em branco. Além da depuração e do esvaziamento de sua poesia negativa, ele faz uso, em “Uma faca só lâmina”, da obsessão do rigor na seleção das palavras, acentuando, assim, sua perspectiva lúcida e construtiva para com a linguagem.

É importante lembrar que, para João Alexandre Barbosa (1975, p. 58), a negatividade é interpretada não como recuo, mas como recusa, a partir da qual é possível repensar os dados da criação.

O poeta faz do exercício da escrita uma experiência, na qual monta, desmonta, rasura, mede, calcula. A experiência da página em branco é uma experiência em que o limite da criação recusa o fácil. O poeta chega num ponto nevrálgico, tal é o limite de sua experiência. Chega num momento em que a linguagem sofre a depuração do silêncio. Assim o poeta João Cabral dessacraliza a poesia, na busca da palavra perfeita. Inclui nela “palavras impossíveis de poema que registram seu caráter residual e vivo.” (W. A. de OLIVEIRA, 2011, p.39). O fazer poético é enfrentamento absoluto, a página em branco é o limite da experiência que se faz com a linguagem na luta com a palavra que nunca se diz inteiramente.