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CAPÍTULO 3: O processo de criação na superfície da palavra em “Uma faca só lâmina”

3.2. Rastros do real: objetos na tessitura silenciosa da poesia

Em “Uma faca só lâmina”, de forma muito singular, o poeta escolheu dentre as vinte palavras de sua “lição de poesia”, uma enigmática: faca. Uma faca, só que não é uma faca qualquer, é uma “faca só lâmina”, que, mais do que cortante, a palavra encarna a voz, o poeta trabalha com a exatidão do corte. O uso dos “nãos” no poema, imagem da lâmina cruel como mais representativa de todas as imagens que põe em funcionamento uma negatividade em grau máximo, a fim de chegar cada vez mais ao objeto proposto, ao real do objeto textual.

O processo de composição que encontramos em “Uma faca só lâmina” são: três símiles encadeados e distintos entre si: bala, relógio e faca. O poema afirma:

Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; assim como uma bala do chumbo mais pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado;

47 qual bala que tivesse

um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso, relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada; assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia;

qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso,

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.(MELO NETO,2007,p.181) Benedito Nunes (2007, p. 72), em seu estudo sobre o poema, declara:

Desse introito, de onde saem os três comparantes (bala, relógio e faca), está ausente o comparado. Nos nove blocos seguintes – de A a I - esses termos comparantes são descritos como objetos que se correspondem por traspasse de suas respectivas qualidades materiais, suprindo metaforicamente a coisa comparada. Ocorre, porém que a coisa de que nos aproximamos, pelos seus suplentes metafóricos, é por eles designada como ausente. Tais objetos substitutivos não apenas representam, de maneira precária e insuficiente, essa realidade ausente, mas referem-na como algo cuja realidade consiste numa ausência:

A

Seja bala, relógio, ou lâmina colérica, é contudo uma ausência o que esse homem leva.

48 A pergunta que nos fazemos é: que ausência é essa que esse homem leva? O que representa essa ausência?

A

Mas o que não está nele está como bala: tem o ferro do chumbo, mesma fibra compactada. Isso que não está

nele é como um relógio pulsando em sua gaiola, sem fadiga, sem ócios. Isso que não está nele está como a coisa presença de uma faca,

de qualquer faca nova. (MELO NETO, 2007, p.182).

É visível a potência do não - “o que não está” - nessas estrofes. O poeta nesta luta com a escrita, no laborar com os versos, aponta para a imagem que define melhor essa ausência impreenchível:

Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado): porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem da faca que só tivesse lâmina, nenhum melhor indica aquela ausência tão sôfrega que a imagem de uma faca reduzida à sua boca. que a imagem de uma faca entregue inteiramente à fome pelas coisas

que nas facas se sente.(MELO NETO,2007.p.182).

O poeta atinge o clímax da sua angústia com o resgate da imagem que melhor resgata a ausência do homem: faca que só tivesse lâmina, a imagem da

49 lâmina cruel. A imagem apela para uma linguagem agressiva, isenta de lirismo, de ornatos, a palavra deve representar o real, cortar o excesso, as arestas.

A poética da negatividade é reforçada na agudeza e dureza das imagens: bala, ferro, chumbo, fibra, lâmina, faca. Na reiteração das expressões de negação- des, sem, não, nada. A ideia pode ser de agudeza, corte, nada, vazio.

Benedito Nunes (2007) irá reconhecer a superfície das “coisas em estado de palavras”, quando essas se apresentam em “estado de coisas”. É exatamente a isso que esse crítico chama de “mineralização da linguagem”, aquela que busca estabelecer uma equivalência entre palavra e coisa. Ele atesta que, na depuração e esvaziamento (operações de retração), operações que sustentam a poética cabralina, os muitos objetos concretos são realçados por “propriedades negativas.”

Assim João Cabral labora o verso em “Uma faca só lâmina”, depurando com grau máximo a palavra, para representar a realidade tal qual ela se apresenta, mas a linguagem parece não dar conta. Esse negativo na obra tem sabor de novo, é um passo a mais em direção ao novo. Ao dizer não ao fácil, experiencia uma recusa que prenuncia novos rumos para o poeta que aprendeu com o mestre Valéry (1999) a trazer um “crítico dentro de si”.

“Nada” é intencional na poética de Cabral. Na seção B do poema, ele descreve a vida de tal faca:

B

Das mais surpreendentes é a vida de tal faca :

faca, ou qualquer metáfora, pode ser cultivada.

E mais surpreendente ainda é sua cultura: medra não do que come porém do que jejua. ... a lâmina despida

que cresce ao se gastar , que quanto menos dorme quanto menos sono há, cujo muito cortar

lhe aumenta mais o corte e vive a se parir

50 (Que a vida dessa faca

se mede pelo avesso: seja relógio ou bala,

ou seja a faca mesmo.)(MELO NETO,2007,p.183).

Observamos que essa faca fica muito mais afiada conforme os cortes. Ela se desenvolve do menos, do jejum. Há uma clareza nesta imagem, um rigor na construção. Na verdade há um enigma, não sabemos o que representa o objeto faca, porém o poeta trabalha de forma muito nítida a imagem. Há um rigor no processo de elaboração da poesia.

Waltencir Alves de Oliveira (2012) afirma que o título reforçou a importância que o símbolo da faca foi adquirindo na poesia cabralina, a partir de seu livro-poema “Uma faca só lâmina”, de 1955. Nele a faca assume a condição de imagem privilegiada de desbaste da linguagem poética e instrumento de penetração na realidade, conferindo-lhe a precisão e a contenção necessárias para o enfrentamento com o real em sua formulação mais densa e pessoal: a autobiografia. Oliveira (2012:86) chama a atenção para o fato de o livro Escola das facas ter seu nome alterado por sugestão de Antonio Candido, que ressaltou a importância do poema homônimo presente no livro. O livro, declaradamente autobiográfico, com o sugestivo subtítulo de “A família Reescrita”, reforça-nos a importância do símbolo faca na obra de João Cabral, iniciada com o poema “Uma faca só lâmina”. Como a pedra, a faca também fez escola, ela tem caráter emblemático e o poeta estabelece a relação com o real, ao trazer um histórico que transporta, 20 anos depois, para A

escola das facas, de 1975, visto que “Uma faca só lâmina” foi escrito em 1955. Como a pedra é imagem de dureza, a faca é imagem de contundência, penetração, voracidade. Na linguagem poética, ela penetra as camadas e corta o excesso, é o próprio “não”. Ela é ausência quando recusa qualquer palavra operando a imagem de uma lâmina cruel.

João Cabral escreveu outros poemas, nos quais o símbolo faca soma-se à virulência e precisão da mimese, tendo como estrutura medular de sua poesia a precisão. Encontra-se nos seus versos esse caráter contundente. Cumpre ressaltar que nos versos de A Escola das Facas (1975-1980), são reiteradas as duas modalidades de faca mais comuns no nordeste do Brasil: o punhal de Pajeú, que a tudo perfura, e a peixeira, que a tudo rasga. Vejamos o poema:

51 As facas pernambucanas

O Brasil, qualquer Brasil, quando fala do Nordeste, fala da peixeira, chave de sua sede e de sua febre. Mas não só praia é o Nordeste, ou o Litoral do da peixeira: também é o Sertão, o Agreste sem rios, sem peixes, pesca. No Agreste e Sertão, a faca não é a peixeira: lá,

se ignora até a carne peixe, doce e sensual de cortar. Não dá peixes que a peixeira, docemente corta em postas cavalas, perna-de moça, carapebas,serras,ciobas. Lá no Agreste e no Sertão é outra faca que se usa: é menos que de cortar, é uma faca que perfura. O couro, a carne-de-sol, não falam língua de cais: de cegar qualquer peixeira a sola em couro é capaz. Esse punhal do Pajeú, faca de ponta só ponta, nada possui da peixeira: ela é esguia e lacônica. Se a peixeira corta e conta, o punhal do Pajeú, reto, quase mais bala que faca,

fala em objeto direto.(MELO NETO, 2007,410-411).

Nos versos de “Uma faca só lâmina”, a faca, além das propriedades de perfurar e rasgar, tem a função de picar:

I

pois de volta da faca se sobe à outra imagem, àquela de um relógio

52 picando sob a carne,

e dela àquela outra, a primeira, a da bala, que tem o dente grosso porém forte a dentada e daí a lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa

do que pôde a linguagem,(MELO NETO,2007,p.191).

Somos convidados a ver um duplo. Ao mesmo tempo em que temos uma descrição da função da faca, ela aponta para outra coisa. É a poesia da concisão em ato, que dá lugar à linguagem, linguagem da contenção, da precisão, na qual a faca só lâmina, faca sem cabo, juntamente com a bala e o relógio inscrevem a obsessão e a ausência como ideias abstratas subjacentes à concretude das imagens que são decompostas no poema.

Assim, essa faca se diferencia das outras, o seu poder aumenta com o jejum e a vigília, é o que notamos em:

B

E mais surpreendente ainda é sua cultura: medra não do que come porém do que jejua.

Sua imagística determina sua construção, o que nos remete às palavras de Blanchot (2011, p. 39-40):

No poema, a linguagem nunca é real em nenhum dos momentos por onde passa, porquanto no poema a linguagem afirma-se como modo e sua essência, não tendo realidade senão nesse todo. Mas, nesse todo em que ela é a sua própria essência, em que é essencial, é também soberanamente irreal, é a realização total dessa irrealidade, ficção absoluta que diz o ser, quando, tendo “usado”, “roído” todas as coisas existentes, suspendido todos os seres possíveis, colide com esse resíduo ineliminável, irredutível.

A realidade, portanto, apresenta-se no poema por meio da experiência do poeta. Observamos que o poema tem como eixo uma ausência, uma ideia fixa que se torna uma força construtiva e agressiva. O uso que faz de palavras como “corte,

53 ausência, despida, nada, gastar”, trabalha a agudeza da linguagem, para chegar à faca só lâmina - um estado de materialidade máxima: é com a lâmina que lapida a palavra.

Ao longo do poema, observamos, na seleção dos adjetivos designados ao objeto faca, uma construção laboriosa por parte do poeta. Nesse fazer dá legitimação poética à essência do objeto que designa: escrita do corte, da precisão, da agudeza, o fio da navalha da palavra. Na seleção de expressões de seus versos, temos:

lâmina cruel faca intestina

faca fervorosa e enérgica lâmina despida

faca feroz pernambucana facas numerais

faca aguda e feroz lâmina adversa

João Cabral não inseriu na antologia Duas Águas o poema “Uma faca só lâmina” por acaso. Sua obra se insere numa poética, num projeto e escreve no sentido blanchotiano do termo, observando a exigência da obra.

Esta faca se diferencia da faca comum, acentuando o seu poder que aumenta com os cortes:

medra do que jejua porém do que jejua.

Os cortes repetidos afiam sua lâmina: Do nada ela destila

a azia e o vinagre e mais estratagemas privativos dos sabres. E como faca que é, fervorosa e enérgica, sem ajuda dispara sua máquina perversa: a lâmina despida

que cresce ao se gastar, que quanto menos dorme quanto menos sono há,

54 cujo muito cortar

lhe aumenta mais o corte e vive a se parir

em outras, como fonte.

A última estrofe vem indicar a relação da poesia com a vida, não faz, entretanto, se não pelo avesso:

(Que a vida dessa faca se mede pelo avesso: seja relógio ou bala,

ou seja a faca mesmo.(MELO NETO,2007.183).

Interessante notar que, se levarmos em consideração que essa faca se alimenta do vazio, e tal vazio fermenta o positivo de sua ação que é a fome das coisas, é exatamente o que acontece com o escritor na experiência de escrever. Como corrobora Blanchot (2011, p. 40-41):

Eis o momento mais escondido da experiência. Que a obra deva ser a claridade única do que se extingue e pela qual tudo se extingue, que ela se apresente tão só onde o extremo da afirmação é verificado pelo extremo da negação, ainda compreendemos tais exigências, embora sejam contrárias à nossa necessidade de paz, de simplicidade, de sono; compreendemo-las intimamente, como a intimidade dessa decisão que somos nós próprios e que nos dá o ser, somente quando, correndo os nossos riscos e perigos, rejeitamos, pelo fogo, pelo ferro, pela recusa silenciosa, sua permanência e favor. Sim, compreendemos que a obra, nesse aspecto, seja puro começo, o momento primeiro e último em que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz excluí-lo soberanamente, sem incluí-lo ainda, porém, na aparência dos seres. Mas essa exigência que faz da obra o que declara o ser no momento único da ruptura, “essa mesma palavra é”, esse ponto que ela faz brilhar enquanto recebe o clarão relampejante que a consome, devemos também compreender e sentir que torna a obra impossível, porquanto é o que jamais permite que aconteça à obra, o aquém onde, do ser, nada é feito, nada se realiza, a profundidade da ociosidade, da inação do ser.

O poema é uma página escrita, compõe um cenário cheio de vazios. Diante das negações, o poeta que vive sob seu jugo, sob a exigência da obra, vive a solidão essencial. A solidão essencial, o sumo da solidão, cabe à obra. “A solidão da obra, a obra de arte, a obra literária – desvenda-nos uma solidão mais essencial”. (BLANCHOT, 2011, p.11).

55 O escritor faz falar a solidão da obra através do que ecoa em seus ouvidos. Ao escritor é dado, pois, impor silêncio à fala incessante da obra. Esse silêncio, sabemos, “tem sua origem no apagamento daquele que escreve” (BLANCHOT, 2011. p. 30).

A pedra, na obra de Cabral desde a primeira obra Pedra do sono, adquire um símbolo e vai somando dureza, adquirindo caráter pedagógico em sua obra a

Educação pela pedra. A faca é outro símbolo emblemático na obra de Cabral e,

neste trabalho, buscamos em “Uma faca só lâmina” a relação da palavra com o real, a palavra coisa, faca, imagem catalisadora de uma ausência.

A imagem da faca torna-se nesse poema, de acordo com Benedito Nunes (2007, p. 75):

(...) um acumulador de outras imagens, determinando para o objeto respectivo a função emblemática de palavra-tema, que passará a outros poemas, conotando toda natureza cortante, aguda, penetrante ou agressiva, seja das coisas e da linguagem, seja de estados e de atitudes humanas. Ela pertencerá ao grupo de palavras privilegiadas na poesia de João Cabral, como pedra e cabra, que são ao mesmo tempo substantivas e adjetivas. Há uma condição pedra, de dureza, de resistência moral, como há uma natureza cabra, de conformismo inconformado, e a propriedade faca, da lucidez insaciável, que fere, impiedosa, a todo aquele que padece do gume de sua inquietação. Estamos diante de um poema no qual os andaimes de construção se apoiam numa poética negativa, orientada pela depuração e o esvaziamento. O poeta serve- se de todos os artifícios da palavra. Aprende lição de um de seus grandes mestres, Valéry, por exemplo, enunciando-a no subtítulo, Ou: (da serventia das ideias fixas) com lucidez e precisão, forma que a próprio título arrebatou de forma avassaladora: “A uma faca só lâmina”. Como diz Valéry (apud CAMPOS, 2011, p. 89): “A literatura – não tem para mim outro interesse que o exemplo ou a tentativa de dizer o que é difícil dizer.”

Uma outra lição é o cerebralismo que é visível na composição desse poema. Sobre o papel branco a luta com e contra as palavras é aberta. Observamos também na parte C, o tom exortatório que a caracteriza:

Cuidado com o objeto, com o objeto cuidado, mesmo sendo uma bala

56 desse chumbo ferrado.

“O importante é que a faca o seu ardor não perca e tampouco a corrompa a cabo de madeira.(p. 184).

Na parte D, a faca recua em sua maré-baixa, que pode ser duradoura ou mais restrita. Aqui, faca e relógio colocam-se sucessivamente em analogia implícitas com a luz, o mar, uma criatura que dorme, um inseto e uma substância ácida. Quer durma ou se apague, a faca, em ambos os casos, resta desamparada ou inútil:

Mas quer durma ou se apague: ao calar tal motor,

a alma inteira se torna de um alcalino teor bem semelhante à neutra substância, quase filtro, que é das facas que não têm facas- esqueleto. E a espada dessa lâmina, sua chama antes acesa, e o relógio nervoso e a tal bala indigesta, tudo segue o processo de lâmina que cega: faz-se faca, relógio ou bala de madeira, bala de couro ou pano, ou relógio de breu,

faz-se faca sem vértebras, faca de argila ou mel.(p.185).

O poema explora repetidamente certos campos semânticos a fim de retirar imagens secundárias para os símbolos centrais. Talvez o mais usado, como diz Marta Peixoto (1983, p. 129), seja a vitalidade animal (geralmente de animais selvagens e insetos), mas também se destacam a atividade mecânica, a agudeza, a secura, a vigília e a solidão. Embora cada campo semântico ocorra várias vezes, nenhum deles se mantém por muito tempo. Ao contrário, dão-se mudanças rápidas e misturas de efeito cômico, como na estrofe que abre a seção ou parte B, onde a

57 faca e o relógio colocam-se sucessivamente em analogias implícitas com a luz, o mar, uma criatura que dorme, um inseto e uma substância ácida:

Pois essa faca às vezes por si mesma se apaga. É a isso que se chama maré-baixa da faca. Talvez que não se apague e somente adormeça. Se a imagem é relógio, a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague ao calar tal motor,

a alma inteira se torna de um alcalino teor.

Os valores negativos são enfatizados por meio dos campos semânticos. Na parte D, acidez (alcalino teor), falta de corte (lâmina cega), maciez (substância quase feltro), descrevem o enfraquecimento de cada objeto. Os verbos “apagar, adormecer, cessar”, contrastam-se com aqueles que definem os objetos em suas potencialidades máximas. O predomínio do negativo determina o uso de palavras de determinadas palavras. Com sua linguagem-faca Cabral apresenta uma realidade vista sob um olhar incisivo, contundente e preciso, totalmente depurado. São elementos constitutivos de uma poética negativa.

Na seção E, é retomada a interiorização das imagens em função do que já se tem como substância do objeto que, não sendo nomeado, é, entretanto qualificado pela posição que ocupa:

Forçoso é conservar a faca bem oculta pois na umidade pouco seu relâmpago dura ( na umidade que criam salivas de conversas, tanto mais pegajosas

quanto mais confidências).(p.186).

Temos aqui outro tipo de aplicação positiva do negativo. O elemento negativo pode ser a privação vinda de fora. O elemento externo provoca no poeta lucidez,

58 como representar o real por meio de palavras que expressam alto grau de depuração: ar duro, sem sombra, sem vertigem, ácidos do sol, sol do Nordeste, febre desse sol, sede a terra. Na esterilidade do sol do Nordeste, o poeta cria possibilidades para representar o real como em:

Mas nunca seja ao ar que pássaros habitem. Deve ser a um ar duro, sem sombra e sem vertigem. E nunca seja à noite,

que esta tem as mãos férteis. aos ácidos do sol

seja, ao sol do Nordeste, à febre desse sol

que faz de arame as ervas, que faz de esponja o vento e faz de sede a terra.(p.186).

O foco atencional como esclarece o crítico Benedito Nunes (2007, p. 36), concentra-se por efeito daquele médium exterior da escrita, a folha em branco, em cujo espaço se exerce. Desempenhando uma função diurna, de agenciamento da clareza e de consistência, ela ajuda a espacilizar o tempo, a estancar a fuga da duração do real.

A imagem do sol (dia) é bem sugestiva em contraponto com a (noite). É no dia que o poeta fulgura a voz. A linguagem é a fala, segundo Mallarmé, para o escritor.

Na parte E do poema, no penúltimo verso da estrofe final, a imagem do vento é palavra e grito, corroborando que o poeta na luta pela palavra certa, iluminado pelo sol, ouve os gritos da poesia em algum páramo ou agreste de ar aberto.

Na parte F, o poeta mostra a melhor maneira de manejar a faca. Alerta também que não é possível se livrar desses objetos nem pela força de vontade, nem pela ajuda de outra pessoa:

F

Quer seja aquela bala ou outra qualquer imagem, seja mesmo um relógio a ferida que guarde,

59 ou ainda uma faca

que só tivesse lâmina, de todas as imagens a mais voraz e gráfica, ninguém do próprio corpo poderá retirá-la,

não importa se é bala