• Nenhum resultado encontrado

O lapidar da palavra na superfície de “Uma faca só lâmina” MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "O lapidar da palavra na superfície de “Uma faca só lâmina” MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA"

Copied!
80
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Mercia Maria da Silva Procópio

O lapidar da palavra na superfície de “Uma faca só lâmina”

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Mercia Maria da Silva Procópio

O lapidar da palavra na superfície de “Uma faca só lâmina”

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira.

(3)

Banca Examinadora

(4)
(5)

AGRADECIMENTOS

À Profª Drª Maria Aparecida Junqueira, por ter me acompanhado no Mestrado, pelo seu olhar poético tão preciso.

À Secretaria da Educação, pela Bolsa Mestrado, que me possibilitou realizar o curso.

Às doutoras Maria Vírgília Frota Guariglia e Maria José Gordo Palo, pelas orientações valiosas no Exame de Qualificação.

(6)

A folha branca não aceita senão a que acha que a merece: essa só sobrevive ao fogo desse branco que é gelo e febre,

(7)

PROCOPIO, Mercia Maria da Silva. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2013. 90p.

RESUMO

O objeto de estudo desta dissertação é o poema “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto. Tem como objetivos buscar elementos que compõem a base do processo de criação desse poema, assim como analisar o papel das imagens na apresentação da realidade. A problemática centra-se na discussão de uma poesia que se constrói fundamentada na recusa, na poética da negatividade, tendo como base a depuração e o esvaziamento, na qual o ver, o ouvir e o silenciar fazem parte do processo de criação do poema. A fundamentação teórico-crítica, na qual se apoia o trabalho, baseia-se em estudos acerca da poética da negatividade, como, por exemplo, em O espaço literário – A experiência de Mallarmé, de Maurice Blanchot (2011). A representação palavra e objeto sustentam-se nas produções críticas, entre outras, de João Alexandre Barbosa (1975), Benedito Nunes (2007), Marta Peixoto (1983), Solange Rebuzzi (1998). O trabalho do poeta mostra uma poesia arquitetada laboriosamente. É uma poesia produzida no cálculo, na exatidão, em especial, nesse poema, na exatidão da lâmina poética cabralina.

(8)

PROCOPIO, Mercia Maria da Silva. Master thesis. Postgraduate Studies program in literature and literary criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2013. 90p.

Abstract

The object of study in this dissertation is the poem "uma faca só lâmina" written by João Cabral de Melo Neto. It aims to get elements that compose the basis of the creation process in this poem, as well as analyze the role of images in the reality representation. The issue focuses on the discussion of a poetry which is built based on the refusal, in the poetic of negativeness based debugging and vacuum, which the view, hear and silence are part of the creation process of the poem. The theoretical and critical reasoning, which supports the work, is based on studies about the poetics of negativity, as, for instance, in the literary space – Mallarmé, Maurice Blanchot (2011). The word and object representation supports in critical productions of João Alexandre Barbosa (1975), Benedito Nunes (2007), Marta Peixoto (1983), Solange Rebuzzi (1998). The poet's work presents a poetry laboriously architected. It is a poetry produced according to the calculation, in accuracy, specialy, in this poem, the accuracy of the “cabralina poetic blade”.

(9)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

CAPÍTULO 1: Concepções críticas sobre o processo de criação em “Uma faca só lâmina” ... 10 1.1. Antonio Candido, Waltencir Alves de Oliveira, Marta Peixoto: poética da imagem ... 10 1.2. João Alexandre Barbosa e Luiz Costa Lima: poética da desmontagem ... 14 1.3. Solange Rebuzzi, Marly de Oliveira e Benedito Nunes: poética do silêncio ... 21

CAPÍTULO 2: A experiência poética da página em branco em “Uma faca só

lâmina” ... 27 2.1. O poema da recusa, carência e negação: coisa, imagem, voz ... 27 2.2 A imagem no poema: metáfora-metonímias... 34

CAPÍTULO 3: O processo de criação na superfície da palavra em “Uma faca só lâmina” ... 44 3.1. Construir/ Desconstruir versos: trabalho com coisas feitas de voz ... 44 3.2. Rastros do real: objetos na tessitura silenciosa da poesia ... 46 3.3. Desdobramentos inventivos da poesia cabralina: cálculo, exatidão, negatividade ... 67

Considerações Finais ... 75

(10)

7 INTRODUÇÃO

A escolha do poema “Uma faca só lâmina” revela o empenho de embrenhar -se na obra de um dos mais instigantes poetas do século XX. João Cabral de Melo Neto (1920-1999) considerado um poeta crítico, escreveu alguns ensaios e despontou para a literatura em 1942 ao publicar seu livro Pedra do sono. Sua poesia surge num momento em que se configura uma crise sem precedentes históricos. Segundo o crítico literário Décio Pignatari (1971, p.93):

A crise do artesanato, no século XIX, é a crise do artista, que não encontra mais a função na sociedade utilitária. Interioriza a crise e a exterioriza no próprio fazer-a-sua-arte. Na areia movediça, deseja

“conservar”, como que num instinto de defesa “artesanal”, e quanto

mais deseja conservar, mais parece acelerar a dissolvência da própria obra. Instalam-se nêle a mauvaise conscience e a atitude reflexiva, crítico-analítica, não só diante da própria obra, como face à vida, em busca de novas formas conteúdos. E a arte e o artista são obrigados a defrontar-se com a ciência e a indústria, resistindo-lhes, combatendo-as e adotando adaptando-lhes os métodos e processos.

Quem se depôs a levar às últimas consequências para superar essa crise foi o poeta francês Mallarmé (1842-1898). João Cabral é citado por Pignatari (1971) como sendo de estirpe mallarmaica, e como o primeiro poeta nitidamente de conteúdo-construção em nossa poesia, em oposição à poesia de contéudo-expressão (sem projeto). Sua obra pertence a uma linhagem da linguagem, ele instaura um novo modo de fazer poesia, sua arte é experimental, incorpora elementos das ciências em sua poesia, não fabrica metáforas ilustrativas, tem muito de um cientista, poesia guiada pela lucidez, exatidão, voltada para o mundo dos objetos, das coisas, da linguagem do código e da mensagem. Vejamos:

João Cabral de Melo Neto se inseriria nesta última, se considerássemos principalmente O engenheiro e Psicologia da

composição. Mas, fascinado talvez pela “imprevisibilidade da linha

curva de Miró” – a que se referiu certa ocasião – reincidiu numa

didática discursiva de conservação de certos valores (a “poesia”,

(11)

8 Sua poesia em relação à poesia posterior é de superação, poesia de signos, de coisas. Na poesia contemporânea, a palavra é coisa e não mera portadora de significados.

Nosso recorte nesse universo poético é discutir o poema “Uma faca só lâmina” sob o viés de uma poesia que se constrói fundamentada na recusa, na poética da negatividade, tendo como base a depuração e o esvaziamento, na qual o ver, o ouvir e o silenciar fazem parte do processo de criação do poema.

O poema “Uma faca só lâmina” se compõe de onze seções: introdução, conclusão e nove seções intermediárias, nomeadas de A a I. Esta dissertação tem como objetivos buscar elementos que compõem a base do processo de criação desse poema, assim como analisar o papel das imagens na representação da realidade.

Como problemática centrou-se nas questões: Como o ver, o ouvir e o silenciar fazem parte do processo de criação em “Uma faca só lâmina”? Como se dá a representação do real? Como a palavra poética capta o real, superando a distância entre a palavra e o objeto?

A fundamentação teórico-crítica, na qual se apoia o trabalho, baseia-se em estudos acerca da poética da negatividade, como, por exemplo, em O espaço literário– A experiência de Mallarmé, de Maurice Blanchot (2011). A representação palavra e objeto, por sua vez, assenta-se em propostas de Marta Peixoto (1983) e de Solange Rebuzzi (1998).

Assim para compreender melhor essa relação entre objeto e realidade nos debruçamos sobre a teoria do espaço literário e a solidão essencial de Maurice Blanchot (1907-2003), tangenciando Mallarmé com a folha em branco, e Paul Valéry (1894-1945) com a poesia da exatidão.

Optar por uma poesia tão “afiada” foi uma tarefa muito instigante, tanto por estreitar o olhar até chegar ao centro da imagem, o núcleo do núcleo do seu núcleo, quanto por tentar auscultar no texto o “ver, o ouvir e o silenciar”. Só um poeta com a poética da exatidão pode conceder as pistas .

(12)

9 (1998), Marta Peixoto (1983), João Alexandre Barbosa (1975), Luiz Costa Lima (1995), Solange Rebuzzi (1998) e Benedito Nunes (2007).

O segundo capítulo, intitulado “A experiência poética da página em branco em „Uma faca só lâmina‟”, aborda algumas indefinições de poesia, assim como do poema da recusa, carência e negação. Trata, também, dos operadores constituintes do processo de criação de João Cabral de Melo Neto.

O terceiro capítulo, nomeado “O processo de criação na superfície da palavra em ‟Uma faca só lâmina‟”, enfatiza a construção /descontrução de versos, por meio de um jogo lúdico/exato do poeta com a palavra.

(13)

10 CAPÍTULO 1: Concepções críticas sobre o processo de criação em “Uma faca só lâmina”

1.1. Antonio Candido, Waltencir Alves de Oliveira, Marta Peixoto: poética da imagem

A fortuna crítica sobre a obra poética cabralina é extensa. Selecionamos algumas que, parecem-nos, contribuem para a compreensão do nosso corpus.

O crítico Antonio Candido escreveu uma resenha no jornal A Folha da Manhã em que comentava aspectos da obra Pedra do sono (1942), obra inicial de João Cabral. Elogia o poeta ao dizer que o livro era de um poeta extremamente consciente e que os poemas foram construídos com muito rigor.

O crítico aponta, nesse artigo, para a tendência construtivista da poesia de João Cabral, como também destaca que há nele qualidades fortes de poesia e que há poemas realmente belos. José Guilherme Merquior (1962), em seu ensaio “Serial”, observa que o trabalho, o esforço atento de ver de João Cabral, assim como o seu método incansável de atenção são o raio-x e o cubismo. Ele arrasta ao claro com sua retina de microscópio, sua poesia se torna plástica pelo visual, cubista pela correlação de planos. Merquior aponta para a dialogicidade da poesia de Cabral com a pintura , literatura, cinema e ressalta como o olhar do poeta se destaca nessa poesia. Ele afirma:

(14)

11 João Cabral é colocado ao lado de grandes poetas universais:

O grande poeta é o que denuncia tudo. É o realista, não por oferecer todos os elementos, o que é o programa dos imbecis, mas porque nos lança em rosto todos os sentidos, o que é o programa de Dante, de Shakespeare e de Goethe. (MERQUIOR, 1962/2007, p.LXIV).

Alfredo Bosi (1984/2007), no ensaio “O auto do frade: as vozes e a geometria”, aborda a obra de João Cabral, o Auto do frade, que conta a história de Frei Caneca ou Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, dito Caneca (seu pai era tanoeiro e latoeiro).

João Cabral recorta, dos cinquenta anos de vida de Frei Caneca, a paixão e a morte. É o desfecho que o atrai, o que está perto da morte. O auto é um ato final, regularmente partido em sete quadros, lembrando as estações das antigas procissões dos Passos. A composição é simples e sólida, o poeta se apoia nas leis da geometria para compor o poema. Segundo Alfredo Bosi (1988, p.102):

Se a geometria do texto, visto como um todo, circunscreve o Auto e lhe sofreia o passo, criando um clima préstito fúnebre, as vozes da tessitura abrem os canais da História do sujeito, deixando irromper o pathos dramaturgo e sua consciência ideológica.

O crítico ainda observa um ponto crucial no último quadro do poema e ressalta como uma das chaves ideológicas do texto:

O tanoeiro Caneca, pai do frei, ficara rezando no Pátio do Carmo, o dia inteiro da execução, olhos postos no cais à espera do barco que traria o indulto do imperador. (BOSI, Alfredo, 1984/2007, p.LXXVII)

Nos momentos finais à execução, há um distanciamento entre linguagem e realidade e uma guinada em direção ao real do olhar poético.

(15)

12 Sobre o título do livro-poema, de 1955, “Uma faca só lâmina”, Oliveira (2012, p. 86) afirma:

A faca assume a condição de imagem privilegiada de desbaste da linguagem poética e instrumento de penetração na realidade, conferindo-lhe a precisão e a contenção necessárias para o enfrentamento com o real em sua formulação mais densa e pessoal: a autobiografia.

Oliveira observa que a imagem da faca sem cabo, só lâmina, apresentada em conjunção com outras “facas”, como bala e relógio, inscreve a obsessão e a ausência como ideias abstratas, subjacentes à concretude das imagens que são decompostas no poema.

João Cabral faz do ato da escrita um ato visceral conduzido pelo viés de uma poética negativa que recusa o fácil, fronteira entre vida e morte, limite de criação que corre subterraneamente por vias éticas que espelha sua simetria contundente de uma obra que nasce em luta, contundente como faca, palavras expostas a palo seco. O poeta trabalha com a negatividade, busca dizer “não” ao que já foi dito, quer o novo.

Nesse sentido João Cabral dialoga com O que é o contemporâneo de Agamben (2009). Segundo o autor, o poeta – o contemporâneo- deve manter fixo o olhar no seu tempo. O contemporâneo não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a sombra, a sua íntima obscuridade.

João Cabral é o poeta que mantém o olhar no escuro da época, mas percebe, nesse escuro, mais que uma luz, uma recusa para dizer um sim e estabelecer o novo: uma estética nova, a estética cabralina.

(16)

13 Peixoto (1983, p. 126) afirma que o aspecto mais surpreendente do poema é a sua apresentação em forma de enigma:

Trata-se de uma definição que utiliza uma predicação com o verbo

“ser” para descrever, em termos paradoxais ou inesperados, a atividade de um objeto ou conceito escondido, lembrando a

adivinhação (que geralmente começa com: o que é o que é?”).

Assim, o enigma é uma definição que evita a definição para melhor definir, por meio de uma formulação que capta um aspecto imprevisto de um objeto ou conceito. A surpresa do ouvinte estimula a sua receptividade. Nesse poema, a forma de adivinhação é logo

sugerida pelo título: “uma faca só lâmina” não é, afinal, um objeto útil, e as perguntas como “Por quê?” e “O que isso significa?” se tornam

necessárias.

José Castello (2006, p.24), por sua vez, em seu livro João Cabral De Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo, faz um apontamento de extrema importância:

Há um poema-chave em torno do qual toda a estética cabralina se

põe a correr e, no galope da fuga, a se desenhar. Poema “menor”,

esquecido no brilho da obra, relegado a terceiro plano diante dos grandes poemas de prestígio (basta pensar em O cão sem plumas e Uma faca só lâmina). Versos despretensiosos e de circunstância que, por isso mesmo, revelam um segredo: o combustível interno que põe a poesia andar. Trata-se de “Resposta a Vinicius de Moraes”, curto poema de apenas uma dúzia de versos, publicado por

Cabral em 1988, em Museu de tudo.

Vejamos o poema:

Resposta a Vinicius de Moraes

(17)

14 Esse “diamante” opaco que vale pelo que tem de cacto, Cabral mostrou em toda sua trajetória poética quando fez opção pela estética da precisão, quando se opôs ao fácil em sua escrita. Ao negar o verso fácil, foi em busca de uma apresentação do objeto com o máximo de perfeição, aparando, em sua poética, as arestas com pedras, facas, foices.

Segundo José Castello, Cabral entrega nesses versos as bases de sua estratégia poética, ou seja, o gosto pela precisão e pela claridade. Ele admite que a opção do poeta pelo concreto é uma sina e não uma opção. Cabral pratica uma poética do pudor e da contenção, poética antilírica, antipoética. A transcendência para ele está na dureza do real. Castelo (2006, p. 122) afirma:

Sobre “Uma faca só lâmina” João Cabral entende que ele é

um poema sobre obsessão. Ideia fixa colada a coisas reais, expressa em sentimentos concretos e sem qualquer fundo metafísico, ao contrário da interpretação tramada por muitos leitores eruditos, que leem segundas intenções onde há apenas uma faca com seu corte. O subtítulo é precioso: Serventia das Ideias Fixas. O mundo vê como mania aquilo que, ao poeta, serve como matéria-prima. Cabral se distingue, mais uma vez, do senso comum. Diante das ideias fixas, o bom senso fala de uma doença, mas o poeta encontra trabalho persistente. O clichê mediano aponta apenas morbidez, mas o poeta se dá conta de uma serventia. O livro, outro sintoma, é dedicado a Vinicius de Moraes. É ao amigo sensível e apaixonado que o poeta, com seus versos firmes, pretende dar uma lição. Vinicius atua em Uma faca só lâmina no papel silencioso de interlocutor. Papel privilegiado que o poeta da paixão desempenha, na verdade, ao longo de toda poética cabralina.

Como o próprio José Castello (2006, p. 122) sintetiza, “Uma faca só lâmina” é um grande poema de prestígio, a vitória final das coisas sobre as palavras, Cabral faz da palavra uma lâmina que remove, toca, esculpe o mundo real. Acrescentamos: Cabral esculpe o mundo em imagens.

1.2. João Alexandre Barbosa e Luiz Costa Lima: poética da desmontagem

(18)

15 poesia de João Cabral desde Pedra do sono (1942) até Educação pela pedra (1966).

No ensaio intitulado “João Cabral ou a Educação pela poesia”, Barbosa (1996, p. 239) considera como traço importante da poesia de Cabral:

(...) um modo de relação entre poeta, poesia e leitor: a maneira pela qual é possível extrair da poesia uma lição que o poeta dá ao leitor e a si mesmo é que ele faz um modo próprio de sua poética.

Não se trata somente de registrar os momentos de meditação acerca do poema, quer como movimento de construção, quer como espaço a ser ocupado pela experiência, mas como um percurso de aprendizagem a que o poeta se obriga e, se obrigando, passa a ler nos objetos possíveis de sua linguagem. Lições de poética.

O poeta não apenas capta os momentos de meditação do poema, pois seus textos antes de falarem sobre poesia, fazem poesia. Sua poesia é uma poesia de posse. Como enfatiza Pignatari (1971), ele descasca a realidade, selecionando suas opções.

João Alexandre Barbosa assinala a articulação de todo o projeto poético de João Cabral. A começar com Pedra do sono (1942), em que a operação poética aponta para a consciência do fazer, tal consciência se redimensiona num diálogo com outras linguagens (André Masson e Picasso), que é dominante em O engenheiro (1945). Da luta entre poeta e poesia, surgem os livros , nos anos 50, O cão sem plumas, O rio, Morte e Vida Severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. Além disso, Barbosa cita o tríptico publicado em 1947: Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode.

A obra de João Cabral, nesse momento, adquire uma nova consciência. É o que comenta Décio Pignatari (1971, p. 105):

Começa tudo de nôvo, único modo de poder saber diferenciar novamente as palavras que, se são coisas, são também signos que transferem sentido. Da flor passa à faca. A faca vai descascando a realidade sub specie de paisagens e fatos, selecionando suas opções na medida mesma em que as descreve e organiza. A partir

(19)

16 A negatividade entre poeta e poesia é intensificada no tríptico. O poema torna-se um instrumento de aprendizagem, o poeta aprende com a linguagem, bem como o poema, com a linguagem dos objetos da realidade. Em O cão sem plumas (1950), está traçado o aprendizado, o poeta fala com coisas em O rio (1953) e assim vai se cumprindo o aprendizado do poeta nas obras seguintes: Uma faca só lâmina (1956), Quaderna (1956-1959), Dois Parlamentos (1958-1960), e Serial (1959-1961) e Educação pela pedra (1962-1965). De acordo com Barbosa (1975), João Cabral assume o risco das tensões entre fazer e dizer, faz da linguagem da poesia um espaço aberto com outras linguagens. Barbosa, ainda, cita a antologia que João Cabral organiza em 1982 dos seus próprios poemas, intitulado Poesia Crítica. Consciente de seu trabalho como poeta, Cabral divide a antologia em duas partes: “Linguagem”, poemas que têm por base a criação poética, e a segunda, “Linguagens”, poemas que se voltam para criadores, poetas e obras.

João Alexandre Barbosa, em A imitação da forma, faz uma análise detalhada do poema “Uma faca só lâmina”. Afirma que,

(...) neste poema de 1955, a significação da poesia, o seu direcionamento para a realidade, é abordada a partir de um discurso orientado para a própria linguagem, recolhendo-se em nível metalinguístico se visto em função de textos anteriores, o que foi possível conquistar pelo exercício de uma linguagem de carência. (BARBOSA, 1975, p.145)

Barbosa afirma que o poema, após um longo símile de trinta e dois versos, cujo início: “Assim como uma bala”, que se estende através de conexões comparativas: “assim como”, “qual”, “igual” e uso do subjuntivo “tivesse”, enfatiza as imagens bala, relógio e faca, tornando-as apenas nomes para a designação do conceito de “ausência”. Já na primeira estrofe, o poeta diz:

Seja bala, relógio, ou a lâmina colérica, é contudo uma ausência o que esse homem leva.

(20)

17 Outro crítico, Luiz Costa Lima (1995,p. 292) observa que

Não há alguém que sofra ou se alegre. (...). Lidamos com um corpo do qual como se houvesse desligado o centro nervoso, de modo que se pudesse sobre ele trabalhar, observar sua vida interna, sem nenhuma preocupação pelas reações do paciente. Pois, se este paciente não é alguém, é, entretanto, algo: a linguagem.

Há nas citações pontos que divergem, Luiz Costa Lima não ressalta um alguém ou um corpo no prólogo do poema, mas a linguagem; enquanto João Alexandre Barbosa vê a conquista da ausência pela própria ausência. Assim ele comenta:

(...) o que possibilita a conquista é precisamente a redução das imagens propostas ao mesmo nível de eficácia. O que é bala, relógio ou faca no prólogo será aquilo que não está no homem da parte A: o uso dos símiles iniciais estavam, deste modo, orientados, para que, em seguida, fossem negados. (BARBOSA,1975,p.147)

É certo que o poema remete com insistência a expressões negativas como vazio, sem, escasso, nada e à carência psicológica, uma espécie de vazio interior. Esse predomínio do negativo determina o uso de palavras de referência concreta. Os versos abaixo evidenciam, por meio da imagem, uma linguagem de carência:

por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem de uma faca reduzida à sua boca,

(21)

18 Ambos os críticos – Barbosa e Costa Lima - desejam atingir as subcamadas do poema a fim de encontrar respostas para o enigma proposto. O leitor se pergunta o que é essa ausência?

Barbosa afirma que essa ausência é a imitação de um objeto, ao qual somente uma linguagem de corte cortante pode penetrar. Em suas palavras:

...aquilo que a faca é capaz de ensinar ao poeta não está antes nem depois de existência da imagem: o que se diz pela linguagem de faca é a imitação de um objeto (ausência) a que somente aquela linguagem dá acesso. (BARBOSA, 1975, p.152)

Luiz Costa Lima (1995), por sua vez, em seu livro Lira e antilira, chama atenção para o princípio de construção do poema. As oito primeiras estrofes afirmam:

Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto;

assim como uma bala do chumbo mais pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo

igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo

e também revoltoso,

relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada;

assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia,

(22)

19 ou faca de uso interno

habitando num corpo como o próprio esqueleto

de um homem que tivesse, e sempre , doloroso

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.(MELO NETO,p.181)

Para Luiz Costa Lima (1995), bala, relógio e faca não são núcleos imagéticos, tratam da mesma imagem, cuja tríplice nomeação resulta do esforço do criador em assegurar um signo sempre mais próximo da sua intenção significativa. Correto será dizer: bala, relógio ou faca. O crítico descarta a possibilidade de um ser individualizado.

Tanto Barbosa quanto Costa Lima lidam com um corpo, em que não há um centro nervoso, mas observam a vida interna desse corpo. Para Luiz Costa Lima, esse paciente não é alguém, é a linguagem, e é nela que o poeta fala em fazer uma penetração cirúrgica, ou seja, penetrar no corpo da linguagem.

De estrofe em estrofe, Costa Lima demonstra esse processo de descascamento intenso que vai transgredindo os limites da palavra, como em:

porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,(parte A,p.182)

a lâmina despida

que cresce ao se gastar, que quanto menos dorme

quanto menos sono há. (parte B, p.183).

ou ainda uma faca que só tivesse lâmina, de todas as imagens

a mais voraz e gráfica,(MELO NETO, p.187)

(23)

20

e afinal à presença da realidade, prima, que parou a lembrança e ainda gera, ainda, por fim à realidade, prima, e tão violenta que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta. (MELO NETO, p. 191).

Para Luiz Costa Lima (1995, p.293), o humano está ausente enquanto reação individual, o que ele enxerga é um paciente, que não é alguém, mas é a linguagem, refere-se ao corpo da linguagem. Percebe-se que Cabral elimina qualquer sugestão encantatória ao usar recursos paralelísticos com a finalidade de eliminar qualquer ilusionismo artístico. É o que diz “bala”, por exemplo:

“... como uma bala enterrada no corpo,” (p. 182). “...como uma bala do chumbo mais pesado,”(p. 182). “... qual bala que tivesse um vivo mecanismo, (p. 182).

“a bala que possuísse um coração vivo.” (p. 182). (MELO NETO).

Na visão desse crítico, a imagem da bala é mostrada por dentro, revelando sua interioridade. Na primeira referência, ela é apenas como se apresenta: enterrada no corpo, na segunda, é a matéria do chumbo mais pesado; na terceira, ressalta a função de mecanismo vivo; na quarta, pulsa um coração vivo.

O mesmo processo é aplicado à segunda imagem: relógio e, também à terceira, a faca. A cada novo processo, como que num descascamento, o poeta vai lavrando a palavra. É o que percebemos também com a imagem do “relógio”:

“...igual ao de um relógio submerso em algum corpo, “ (p. 182). “... ao de um relógio vivo e também revoltoso,” (p.182).

(24)

21 E com a imagem da “faca”:

“...como uma faca que sem bolso ou bainha,” (p.182). “... qual uma faca íntima ou faca de uso interno,” (p.182). “... de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso,” (p.182).

“... de um homem que se ferisse contra seus próprios ossos.” (p.182).

A palavra, entretanto, se faz neutra, para penetrar na problemática luta do homem. Cabral não sentimentaliza a ausência, não há um centro nervoso nesse homem ou nesse alguém, como bem observaram os críticos. Há neutralidade nesse homem. Costa Lima (1995, p. 293) afirma que a palavra se faz técnica, e o centro nervoso de tal homem está, desligado. João Alexandre Barbosa (1992, p. 240), por sua vez, destaca:

Indagando por uma poética da denotação, quando os elementos são destruídos em sua opacidade e recebem o impacto de uma constante dessacralização, João Cabral apontava, desde então, para aquilo que, mais tarde, virá a ser uma espécie de projeto permanente em sua poesia: a liquidação das relações metafóricas pela inclusão, no verso, de uma desmontagem reflexiva de suas próprias tessituras poéticas.

1.3. Solange Rebuzzi, Marly de Oliveira e Benedito Nunes: poética do silêncio

Solange Rebuzzi (2010), faz um estudo sobre a escrita cabralina. Ressalta que o idioma cabralino é pensado por meio de conceitos bastante produtivos. Ela trabalha o conceito de désoeuvrement, criado por Maurice Blanchot, que pensa a obra como ausência, texto em elaboração. Outro conceito com o qual trabalha é objeu, concebido por Francis Ponge, que traz à palavra o estatuto de objeto verbal para o inacabamento como princípio.

A autora descreve o que seria désoeuvrement:

Escrever é fazer obra da palavra e, nesse caminho, a obra é désoeuvrement.Esse conceito interessa-nos, pois remete à abertura

(25)

22

mudanças radicais, é uma violência e é uma interrupção, visto que transgridem leis e muda os rumos do até então estabelecido. A literatura vista dessa maneira se constitui, portanto, como um espaço onde tudo que é fixo se torna móvel, e as verdades são abaladas, em um misto no qual as contradições e dicotomias desaparecem. Podemos relembrar ao leitor que Blanchot se refere a um desaparecimento, falando de apagamento, de um anonimato necessário, de um estranhamento diante do mundo, algo que o escritor experimenta na escrita, quando esta não se dirige ao sentido, mas quando busca a materialidade das coisas, sua natureza e sua presença física. (REBUZZI, 2010, p.2)

João Cabral trabalha seus poemas desobrando-se, correndo os riscos, tanta lucidez dá vertigem. Solange Rebuzzi observa que expressões usadas por João Cabral como: não, nunca, nenhum, nada, sem, aparecem com frequência, traduzindo objetos e traços ausentes, essas expressões são provas da luta travada no texto. O poeta traz para o poema aspectos da linguagem que também traduzem o intraduzível desse despojamento dado pela vida do poema que quase não vinga, nessa intenção em que a poesia liga uma impossibilidade (a de tudo dizer) a uma condição: a “condição severina” (REBUZZI, 2010, pp. 77-78).

Esses aspectos de linguagem que tentam traduzir o intraduzível no poema “Uma faca só lâmina”, “a ausência”, por exemplo, fazem com que o poeta explore recursos que trazem a presença material ao texto poético: as palavras negativas passam a ser os materiais de construção. Segundo Rebuzzi (2010:78), “há uma acumulação e um esforço colocados ora na ideia de agudeza, ora na ideia de vazio”, cujo estudo atende à poética da negatividade.

Roniere Menezes (2011, p. 120-121) fala da configuração estética na obra de João Cabral de Melo Neto, enfatizando a relação entre poesia e mundo exterior:

Cabral elimina qualquer ideia de “inspiração”, de “iluminação” ou de “êxtase” vinculada ao momento criativo. Destitui a emoção do fazer

(26)

23 Selma Vasconcelos (2009), em João Cabral de Melo Neto: o retrato falado do poeta, cita um comentário de João Alexandre Barbosa sobre linguagem e realidade. Segundo ela, o crítico afirma que, ao tornar o real mais presente na escrita, Cabral revela uma luta em que a faca com sua lâmina cruel rasga o verbo expondo o exterior de forma absoluta. Nas palavras de Barbosa (apud VASCONCELOS, 2009, p. 261):

A tensão entre o fazer e o dizer que jamais se apresenta como resolução, rege toda a obra do poeta, e não permite a separação simplificadora de dois momentos diversos na sua obra: a busca da linguagem e a descoberta do exterior. Toda sua produção se oferece como dialética entre linguagem e realidade; ainda quando faz poesia com coisas, o poeta aprende com os objetos uma forma de imitar a realidade.

Vasconcelos (2009) ressalta, também, em seu livro, que João Cabral de Melo Neto não suportava escrever sem ver a palavra impressa na página em branco. Palavra como imagem. O poema “Uma faca só lâmina” é um poema imagético e convida o leitor a vê-lo. Para reforçar essa idéia, Vasconcelos exemplifica com um poema, publicado no dia 10 de outubro de 1999, um dia após o falecimento de Cabral, no qual o sentimento da incapacidade do poeta de escrever sem usar o olho-pincel, instrumento de toda a sua vida, é corroborado:

Pedem-me um poema Um poema que seja inédito. Poema é coisa que se faz vendo Como imaginar Picasso cego?

Um poema se faz vendo Um poema se faz para a vista Como fazer um poema ditado Sem vê-lo na folha inscrita?

Poema é composição mesmo da coisa vivida

um poema é o que se arruma, dentro da desarrumada vida

(27)

24

Em suas margens domado para chegar ao Recife,

Onde com o Beberibe com o Tejipió, Jaboatão para fazer o Atlântico todos se juntam à mão

Poema é coisa de ver é coisa sobre um espaço

como se vê um Franz Weissman Como não se ouve um quadrado

(MELO NETO, apud VASCONCELOS, 2009, p.270).

O projeto poético de Cabral, de acordo com Marcos Siscar (2010, p.189-290), em seu livro Poesia e crise, “se propõe a ir além de uma mímesis entendida como adequação entre texto e experiência vivida (...) Cabral preocupa-se com a legitimidade social de sua estética, arte que lida com a palavra, coisa essencialmente social.”

A poesia de João Cabral é arquitetural, ilustra, por meio de elemento da realidade, o pensamento teórico sobre a procedência da técnica em poesia. O ensaio “João Cabral: um sistema para abordar a realidade”, de John Parker (1976) que traz uma abordagem crítica sobre o poema “Uma faca só lâmina”, tem também como partida a ausência, ou seja, uma poética do risco. Essa poesia, na sua lógica negativa que recusa o fácil, e quer o gesto do esforço, do risco, está em “Uma faca só lâmina”. O poema é sobre a poesia e o processo criador: é poema metalinguístico.

(28)

25 razão e inteligência, à agudeza do olhar. Suas obras refletem a tendência à objetivação do poema, num projeto de rigor, de consciência, capaz de descobrir qualquer véu que obscureça o dizer poético. A autora, no decorrer do seu ensaio, caracteriza a poesia de Cabral como imagética, que valoriza o uso de palavra concreta.

Sobre “Uma faca só lâmina”, Marly de Oliveira (1994, p. 18-19), comenta:

Uma faca só lâmina, admirável poema, permite várias leituras, de acordo com cada leitor, que hoje já ninguém mais concebe como consumidor passivo. Como sob o título há uma indicação de serventia das ideias fixas, a obsessão pode ser um conceito poético, uma ideia política ou qualquer outra coisa, mas, me parece, partindo do fato de que é, sobretudo uma ausência, que deve ser preenchida e, muito provavelmente, de natureza amorosa.

O poema permitiu a Marly de Oliveira uma interpretação bem diferente de todas as que já vimos: “ausência de natureza amorosa.” Se levarmos em consideração as várias possibilidades de leitura do poema, essa ausência que o homem leva pode ser de ordem amorosa, porque os três elementos permitem desdobramentos que conduzem à conclusão de uma separação dessa ordem.

Ainda, a crítica tece comentários sobre todas as obras de Cabral, dando sempre ênfase ao que singulariza a poesia dele e o faz inventor. Ressalta a acepção poundiana, que o faz refugiar da explicitamente confessional, fazendo da imagem o núcleo do poema, como é o caso da obra A educação pela pedra. A autora não deixa de explicitar o valor do poeta, no final de seu texto, quando diz que João Cabral é um dos mais importantes poetas do século, seja em língua portuguesa, seja em qualquer outra de origem latina ou anglo- saxônica.

Outro crítico, Benedito Nunes, em relação à A educação pela pedra, de 1966, escreve um ensaio, intitulado “A máquina do poema”, em que faz alguns comentários acerca da composição do livro:

(29)

26 Segundo Benedito Nunes, João Cabral, para compor o poema A educação pela pedra, reforça um dos traços mais característicos de sua poética que é a análise progressiva, mediante negações. Isso confirma a nossa temática da poética da negatividade, da poesia da recusa. Nunes (1966/2007, p. LXXII) ainda afirma:

Oposições e equivalência, esvaziamentos e acréscimos, movimentos internos da poesia de A educação pela pedra, configuram os acordos e os desacordos, os antagonismos e os nexos do mundo e da vida.

O crítico aponta para duas operações básicas da poética negativa sustentadas por Cabral: a depuração e o esvaziamento. Vejamos:

(...) A flor que a “Antiode” de João Cabral identifica a fezes reverte a

sua substância impura, com que a indigência do tempo é assumida pela indigência da poesia. Tal aceitação implica empobrecimento voluntário: despoja-se a poesia de todas as roupagens supérfluas e de toda profundidade ilusória de todos os ornamentos da fantasia e da sublimação dos sentimentos. Despe-a o poeta de seus véus para que ela desnude, por sua vez, as coisas, até descobrir aquilo com que sonhava em O engenheiro: O mundo justo que nenhum véu encobre. (NUNES, 2007, p. 45).

(30)

27

CAPÍTULO 2: A experiência poética da página em branco em “Uma faca só lâmina”

2.1. O poema da recusa, carência e negação: coisa, imagem, voz

Escrever sobre “Uma faca só lâmina é falar sobre recusa. O poeta recolhe palavras, quer a escrita do corte, o fio da navalha e, para isso, escolhe, seleciona, combina, dialoga. A poética é de recusa ao fácil, a luta é pela palavra.

No processo de criação do poeta entram em cena as operações do ver, ouvir, silenciar. O poeta coloca em destaque o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. No livro A metalinguagem, Samira Chalhub (1997, p. 22), destaca:

Segundo Roman Jakobson, em “Linguística e poética”, “A função

poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o

eixo de combinação”. Toda organização de linguagem implica a

seleção, a escolha de alguns signos e, portanto, a renúncia de outros.

Barbosa (2009, p. 108), em As ilusões da modernidade, também reflete sobre a metalinguagem e, em especial, fala de uma poesia metalinguística em João Cabral:

Uma educação paradoxal porque poética: livre do diadaticismo por força da construção, a sua obra ensina mais radicalmente, isto é, pela raiz das coisas em que são procuradas as significações mais entranhadas. Neste sentido, é possível falar numa poesia eminentemente metalinguística: não uma poesia sobre poesia, mas uma poesia que empresta a linguagem de seus objetos para com ela construir o poema.

Nesse sentido, João Cabral lê a realidade pelo poema, refazendo a história pelas leituras anteriores da poesia. Frisa Barbosa (2009, p. 109):

(31)

28 Nessa linhagem de pensamento, Haroldo de Campos (1976, p. 21), em um de seus ensaios Texto e História, aponta para a importância dessa dialogicidade passado/ futuro:

“No vocabulário crítico a palavra precursor é indispensável, mas

teríamos de purificá-la de toda conotação polêmica ou de rivalidade. A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado como há de modificar a do

futuro.” (Kafka y sus precursores”).Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo livro movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. Nesse sentido é que a literatura é o domínio do simultâneo, um simultâneo que se reconfigura a cada nova intervenção criadora.

Também Pignatari (1973, p. 11) entende que, no processo de criação, o rigor na seleção das palavras reflete na agudeza da construção do poema, afirma: “o poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem”. É desse modo que o poeta João Cabral constroi sua poética. Firmado em seu olhar-pincel, esmiúça a palavra no poema, fazendo de a faca, a bala, o relógio, lâminas silenciosamente cortantes.

Ernesto de Mello e Castro (1984, p. 35-36), no livro Projeto: Poesia, tece algumas considerações sobre essa relação:

O Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein desenvolve uma pesquisa da linguagem logicamente perfeita, na qual estão inequivocadamente definidas as relações entre as palavras e as coisas. (...) Existe, portanto uma inumerada quantidade de relações entre ideias, coisas e palavras de que não podemos falar, servindo-nos da linguagem logicamente perfeita. Há então uma obrigatoriedade de silêncio a respeito dessas relações. (...) A Poesia é assim o silêncio que se diz em palavras.

Ernesto de Mello e Castro (1984, p. 39) assinala o silêncio como valor positivo de criação artística e como material de criação, podendo ser comunicação sem mensagem. O poeta quer o silêncio do risco da lâmina na folha em branco.

(32)

29 Stéphane Mallarmé e ensaios de Paul Valéry, escritor que teve papel decisivo em sua formação.

Podemos pensar a poesia de João Cabral a partir da negatividade. Ele enveredou na construção de seus poemas, revelando-a como procedimento construtivo. Em vez do fácil, prefere o trabalho severo e severino, operado por meio de recusas. Essa qualidade é marca de uma família de poetas. A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo, afirma Augusto de Campos (2003, p. 15), em seu livro Poesia da recusa:

Da recusa estética (Mallarmé) à recusa ética (Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa poesia, baluarte contra o fácil, o convencional e o impositivo, ficou à margem e precisa, de quando em vez, ser lembrada para que a sua grandeza essencial avulte sobre o aviltamento dos cosméticos naturais.

Augusto de Campos (2003) comenta também que Quirinius Kuhlmann, o estranho poeta-mártir, é o melhor ícone para alegorizar a poesia da recusa. Também nessa categoria, dentre eles: Mallarmé, Maiakóvski, Tzvietáieva, todos unidos pela rebeldia poética. Declara, ainda, que também Cabral, como Mallarmé, recusa viver o mundo que rejeita. Sua poesia nasce em luta. Ambos fizeram do ato de escrita um ato de experiência em plena lucidez. João Cabral foi buscar, no mestre Stéphane Mallarmé, algumas lições que incorporou em sua poesia. Acrescentamos que o poema “Uma faca só lâmina” é exemplo vivo dessa experiência de tormenta do poeta que trabalha com uma poesia do não, embrenha-se pela poética mallarmaica e também de Valéry.

Solange Rebuzzi (2010, p. 2-3), em O idioma pedra de João Cabral, corrobora que a escrita de João Cabral:

(...) reflete sobre o paradoxo da linguagem que se faz coisa, e ao

mesmo tempo se mostra na fórmula: “Tudo proferir é também proferir

o silêncio. É, portanto, impedir que a palavra jamais se torne

silenciosa.” Um paradoxo que atingiu tanto Mallarmé como Blanchot

(33)

30 A luta com a palavra é uma experiência que se faz presente desde sua primeira obra Pedra do sono (1942) em que, supostamente, o poeta ergue, com os versos de Mallarmé “Solitude, Recife, estrela...”, um brinde, endereçando os três significantes ao seu futuro de poeta. (REBUZZI, 2010, p. 7).

A poesia de Cabral nega a inspiração, é uma escrita de rigor de um poeta crítico. O seu olhar sobre a escrita é muito mais preciso, porque sua escrita é cortante. Cabral nega o sujeito. A despersonalização é um dos traços mais marcantes da estética literária moderna, pautando-se a literatura numa série de critérios, cujo ponto principal é a negação da categoria sujeito.

Pode- se reconhecer, também, muitos dos conceitos e dos temas de Paul Valéry e Mallarmé na poética de Cabral: a página em branco, a criação como ato de pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever. Segundo Benedito Nunes (2007, p.27), para Valéry, o ato de pensar, que se prolonga no ato de escrever, consiste numa operação de caráter voluntário. É a disciplina intelectual que, suprimindo o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental, impõe limites à dispersão dos fenômenos interiores, furtando-se não só à inspiração como forma romântica de entusiasmo que embriaga, mas também ao sonho que fascina e ao inconsciente que o reduziria a um “papel lamentavelmente passivo”. O poeta deve ganhar essa luta para poder construir, enfim, o poema como máquina de linguagem. Máquina que requer construção, rigor, limites. Nada é por acaso, o poeta tem consciência do seu ato criativo.

A lucidez entranhada de Cabral e a busca de diálogo por meio da leitura que faz da obra mallarmaica ecoam nos versos de “Uma faca só lâmina”. A escrita de Cabral reflete o paradoxo da linguagem. Escrever, para Mallarmé e Cabral, era ato de luta, privar-se na folha em branco e, nessa experiência, encontrar a palavra que componha o verso, que mostre o real. Eles vivem uma experiência extrema. Blanchot (2011, p. 31) caracteriza essa experiência, ao dizer:

(34)

31

desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.

A negativa permeia a obra de João Cabral, o poeta tem a experiência da criação levada às últimas consequências, porque o seu objetivo é o desnudamento total, isto é, encontrar a palavra que concretize o objeto. Uma escrita cortante, de faca, só lâmina. Conforme declara Benedito Nunes (2007, p. 28):

A luz da depuração e do esvaziamento, tópicos de uma poética negativa, o que antes era resíduo, produto de criação misteriosa, transplantado à superfície mineral da folha em branco, é a natureza própria das coisas – quando em estado de palavras – e das palavras quando em estado de coisas.

É no “vazio” que se dá o “não”, a recusa. A poesia de João Cabral está fundamentada num projeto que rejeita modelos, busca na invenção algo mais do que encontra na criação: um passo a mais, um passo em direção ao novo, dizendo “não” ao que é conhecido e fácil ou, apenas, já dito. (Rebuzzi: 2010, p. 84). Desse modo, o vazio da experiência da página em branco é uma experiência limite na vida do poeta.

João Cabral embrenhou-se, em particular, na poesia de Paul Valéry, por intermédio de outro intelectual, Willy Lewin, seu amigo na juventude que lhe empresta os livros em francês. Cabral os devora sem pestanejar. Também José Castello (2006, p. 48), lembra que Cabral adota a lição valeriana, passando a buscar uma poesia dirigida pela razão. O poeta o descobre seu cúmplice. O poder que Valéry tem de teorizar suas obras fascina Cabral. O rigor na articulação teórica, o cerebralismo, a reflexão sobre o fazer, Cabral carrega para a criação dos seus poemas na antologia Duas Águas, dentre os quais está “Uma faca só lâmina”.

O subtítulo do poema - (Ou: serventia das ideias fixas) - é termo emprestado de Valéry. No livro O engenheiro,há um poema “A Paul Valéry”, no qual esclarece o projeto engenheiro do poeta Valéry, e mostra suas fases: as suas conhecidas e nomeadas ideias fixas (Rebuzzi, 2010, p. 28). O poema diz:

A Paul Valéry

(...)

(35)

32

equilíbrio perfeito do apetite de menos. (...)

Doce tranquilidade

do pensamento da pedra,

sem fuga, evaporação, febre, vertigem.

(...)

A inaudível palavra futura – apenas saída da boca, sorvida no silêncio.

(MELO NETO, 2007, pp.58,59).

Faz parte desse projeto um apetite por “menos”. A poesia negativa, a poesia da recusa se faz a partir do árduo trabalho da escolha que requer recusas, lucidez, doce tranquilidade do pensamento lúcido, sem fuga nem “vertigem”.

A ambição literária de Valéry era a escrita de precisão. Isso foi seguido à risca por João Cabral em todo seu projeto poético. Para Valéry, o ato de pensar, que se prolonga no ato de escrever, consiste numa operação voluntária (NUNES, 2007, p. 29). É a disciplina intelectual que, suprimindo o supérfluo, evitando o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental, impõe limites tanto à dispersão dos fenômenos subjetivos, quanto à sua incessante fluidez, impõe silêncio.

Essa disciplina intelectual pode-se observar na composição do poema. João Cabral em seu ensaio de 1952, intitulado “Poesia e composição”, declara:

A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que pra uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição é, hoje em dia, assunto por demais complexo, e falar da composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.

(36)

33 A poética de João Cabral dialoga com a poética de Valéry: escrita de precisão observada no exercício intelectual, fascínio pela forma, poesia da recusa, Cabral elabora poesia no poema, trabalha com coisas. Em entrevista a José Castello, Cabral (apud CASTELLO, 2006, p. 168) disse que “Valéry foi o homem que mais marcou sua poesia”. O poeta francês o convence, em definitivo, de que a inspiração é o blefe dos indolentes e que a arte é apenas um trabalho intelectual. Paul Valéry tinha obsessão pela precisão. Ambos se assemelham nessa fronteira em que a obsessão pelo rigor se avizinha da insanidade.

O rigor é obsessão na obra de João Cabral. O reflexo desta obsessão está no subtítulo do poema que estudamos “Uma faca só lâmina” (Ou: serventia das ideias fixas). O próprio processo de criação do poeta é raiz de inquietação, no seu laborar a linguagem poética.

O poeta, por meio do rigor de uma poesia que recusa tudo o que é fácil, vai golpeando a linguagem com suas palavras-tema. Faca é uma delas, o corte é radical, ele põe em funcionamento uma poesia da negatividade em grau máximo, uma poética que se constrói com cortes. Assim o poeta privilegia o olhar, a palavra na experiência-limite.

João Alexandre Barbosa (1996), no ensaio “A lição de João Cabral”, escreve que o poeta aprende lições sobre contenção e submissão à meditação pelos caminhos da linguagem poética. Mas neste aprender há um perigo: o do silêncio por força da recusa, da negação. É justamente essa recusa articulada desses elementos que intentam uma afirmação dialética da poesia, o poeta não quer a bala, não quer o relógio, não quer a faca, quer a alma da faca, quer a lâmina, o fio da navalha, enquanto instrumento de uma busca de significação a ser encontrada.

Diante dessas considerações, perguntamos: qual a relação entre imagem e realidade? Em “Uma faca só lâmina” -, “faca, bala, relógio” - qual das três imagens mais se afina com a realidade desnuda?

A imagem cruel da lâmina é a que mais chama a atenção do poeta:

Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel

(37)

34 João Cabral, à luz dos elementos de uma poesia negativa, compõe e decompõe a experiência da luta que é a do poeta no campo da folha em branco. Além da depuração e do esvaziamento de sua poesia negativa, ele faz uso, em “Uma faca só lâmina”, da obsessão do rigor na seleção das palavras, acentuando, assim, sua perspectiva lúcida e construtiva para com a linguagem.

É importante lembrar que, para João Alexandre Barbosa (1975, p. 58), a negatividade é interpretada não como recuo, mas como recusa, a partir da qual é possível repensar os dados da criação.

O poeta faz do exercício da escrita uma experiência, na qual monta, desmonta, rasura, mede, calcula. A experiência da página em branco é uma experiência em que o limite da criação recusa o fácil. O poeta chega num ponto nevrálgico, tal é o limite de sua experiência. Chega num momento em que a linguagem sofre a depuração do silêncio. Assim o poeta João Cabral dessacraliza a poesia, na busca da palavra perfeita. Inclui nela “palavras impossíveis de poema que registram seu caráter residual e vivo.” (W. A. de OLIVEIRA, 2011, p.39). O fazer poético é enfrentamento absoluto, a página em branco é o limite da experiência que se faz com a linguagem na luta com a palavra que nunca se diz inteiramente.

2.2 A imagem no poema: metáfora-metonímias

No poema A lição de Poesia”, João Cabral trata da luta que trava no seu processo de criação:

1

Toda a manhã consumida como um sol imóvel diante da folha em branco princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar sequer uma linha;

um nome, sequer uma flor

desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado, cada dia comprado,

do papel, que pode aceitar, contudo, qualquer mundo.

(38)

35

A noite inteira o poeta em sua mesa , tentando salvar da morte os monstros germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas de palavras, circulando, urinando sobre o papel, sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão de ideia fixa, carvão da emoção extinta, carvão consumido nos sonhos.

3

A luta branca sobre o papel que o poeta evita,

luta branca onde corre o sangue de suas veias de água salgada.

[...]

E as vinte palavras recolhidas nas águas salgadas do poeta e de que se servirá o poeta

em sua máquina útil.(MELO NETO, 2007,pp.54-55).

O poeta convive com as palavras, só a jovem manhã revelará o poema na superfície da página em branco. O poeta está em luta, sua luta com as palavras traduz o seu interesse pelo mundo novo que surgia, um novo momento do mundo, com os tropeços nos acasos alcançados nos caminhos (REBUZZI, 2010, p. 117).

O livro Duas Águas surge num momento em que o poeta visceralmente se entrega na superfície de uma página em branco. Escreve “Uma faca só lâmina”, poema de vertente reflexiva, em que, à luz dos elementos de uma poesia negativa na imagem da faca, palavra-coisa, arrisca-se a manter sobre o papel branco, a luta aberta com e pelas palavras.

Na parte H do poema, encontramos esse sentimento de inquietação, essa luta extremada com e contra as palavras:

(39)

36

Os homens que em geral lidam nessa oficina têm no almoxarifado só palavras extintas:

umas que asfixiam por debaixo do pó, outras despercebidas em meio a grandes nós;

palavras que perderam no uso todo metal e a areia que detém a atenção que lê mal.

Pois somente essa faca dará a tal operário olhos mais frescos para o seu vocabulário.

e somente essa faca e o exemplo de seu dente lhe ensinará a obter de um material doente

o que em todas as facas é a melhor qualidade: a agudeza feroz, certa eletricidade,

mais a violência limpa que elas têm, tão exatas, o gosto do deserto,

o estilo das facas.(MELO NETO, 2007, p.189).

Benedito Nunes (2007, p. 75) afirma que a imagem de faca torna-se, nesse poema, um acumulador de outras imagens, determinando para o objeto respectivo a função emblemática de palavra-tema, que passará a outros poemas, natureza cortante, aguda, penetrante ou agressiva, seja das coisas e da linguagem, seja de estados e de atitudes humanas. Ela pertencerá ao grupo de palavras privilegiadas na poesia de João Cabral, como pedra e cabra, que são ao mesmo tempo substantivas e adjetivas. Há uma condição pedra, de dureza, de resistência moral, como há uma natureza cabra de conformismo inconformado. Assim também há a propriedade faca, de lucidez insaciável, que fere impiedosa a todo aquele que padece do gume de sua inquietação.

(40)

37 momentos da experiência reflexiva, como atesta Benedito Nunes (2007, p.75): “no primeiro, com a atualização ou presentificação da coisa na lembrança, e no segundo com a própria coisa no instante de sua apreensão perceptiva, quando ela se dá corporalmente como realidade.”

O fragmento final do poema “Uma faca só lâmina”, exemplifica:

e daí à lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa do que pôde a linguagem,

e afinal à presença da realidade, prima, que gerou a lembrança e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade, prima, e tão violenta que ao tentar apreendê-la

toda imagem rebenta. (MELO NETO, 2007, p. 191).

Essa natureza da linguagem multissimbolizável da realidade dimensiona a própria linguagem, e o poeta que trabalha com palavras sabe bem manejar o verso, a imagem, o significado. Ele separa e une, num só ato, o símbolo ao simbolizado, o significante ao significado, a imagem da coisa à própria coisa (NUNES, 2007, p. 76).

O poeta faz uso de imagens formados por metáforas com base metonímicas:

Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado): (parte A, p.182).

(41)

38 2.3. Analogias severinas em lugares vazios: faca, relógio, bala

No ensaio sobre Joan Miró, João Cabral de Melo Neto (1950/2007, p.291) esclarece um dos pontos da sua teoria da composição, o significado do vazio, quando afirma:

... essa valorização do fazer, esse colocar o trabalho em si mesmo, esse partir das próprias condições do trabalho e não das exigências de uma substância cristalizada anteriormente , tem na obra de Miró , uma outra utilidade. Esse conceito de trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permite, ao artista, o exercício de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mínimo resultado a que seu trabalho vai chegando.

A “ausência” que o homem leva o que é se não um vazio? Tanto a coletânea

Duas Águas como o poema “Uma faca só lâmina” remetem com insistência a conceitos negativos: “o vazio, o sem, o nada”. O trabalho é sentido com os lexemas que aparecem no prólogo: “enterrada”, “pesado”, “revoltoso”, “impiedade”, “doloroso”. Na série negativa, no encadeamento que a obra cabralina mostra ao longo de seu percurso, também encontramos palavras negativas (não, nunca, nenhum, nada, sem) que aparecem com bastante frequência, traduzindo objetos e traços ausentes. (REBUZZI, 2010, p. 78). É o que se nota nos versos:

Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem da faca que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica aquela ausência sôfrega que a imagem de uma faca reduzida á sua boca,

(42)

39 As palavras - lâmina, ausência, faca - dão sinais da força semântica, do trabalho com a negatividade que traduz a possibilidade de um poema que exibisse uma agudeza cortante, linguagem incisiva, sem lirismo, precisa.

Solange Rebuzzi (2010), em sua tese de doutorado, cita o crítico Francis Ponge sobre a teoria do objeu (objeto que se reporta a um fora “ob” – ao mesmo tempo em que, de forma paradoxal, está inserido no jogo da linguagem). Afirma que Ponge se situa em uma ampla variedade de poesia de circunstância, na qual os objetos do cotidiano se mostram em potência de linguagem obscura. Eles estão fora da alma e, certamente, são como chumbo em nossa cabeça. (REBUZZI, 2010, p. 95).

Encontramos, no poema “Uma faca só lâmina”, objetos que compõem uma imagística que têm como sema comum a agudeza, a ausência, a precisão (faca, lâmina, esqueleto, ossos, sabres, espada, vértebras, agulha, deserto). Os semas negativos de - vazio, sem, nada, escasso - refletem na linguagem, como enfatiza Solange Rebuzzi (2010:95), “em forma de objetos concretos acompanhados de modificadores negativos e objetos incompletos, que introduzem a falta ou o vazio”.

A falta ou o vazio que esses objetos incompletos introduzem remetem-nos a alguns pontos de semelhança. A primeira diz respeito à prioridade dada ao “espesso” das palavras (REBUZZI, 2010, pp. 99-100), traduzido em “Uma faca só lâmina”:

Essa lâmina adversa, como o relógio ou a bala, se torna mais alerta todo aquele que a guarda,

sabe acordar também os objetos em torno e até os próprios líquidos podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago, toda frouxa matéria, para quem sofre a faca ganha nervos, arestas.

(43)

40

Em volta tudo ganha a vida mais intensa, com nitidez de agulha e presença de vespa.

Em cada coisa o lado que corta se revela, e elas que pareciam redondas como a cera

despem-se agora do caloso da rotina, pondo-se a funcionar com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas que também já não dormem, o homem a quem a faca corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina e seu jato tão frio, passa, lúcido e insone,

vai fio contra fios.(MELO NETO,2007, p. 190)

Nas imagens que compõem a parte I, o poeta trabalha a noção de corte, precisão, depuração. Os semas são comuns à agudeza, lucidez, obsessões. No ato da criação, no trabalho com a linguagem, Cabral não se deixa fascinar, ele sabe que o trabalho é constante, que o viés é de recusa para se chegar à apresentação da realidade.

No ensaio “O espaço literário”, Maurice Blanchot (2011, p. 25-26) lembra-nos que

escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco da ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço. É passar do Eu ao Ele, de modo que o que me acontece não acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita. Escrever é dispor a linguagem sob o fascínio e, por ela, em ela, permanecer em contato com o meio absoluto, onde a coisa se torna imagem, onde a imagem, de alusão a uma figura se converte em alusão ao que é sem figura e, de forma desenhada sobre a ausência, torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há mais ninguém.

(44)

41 outras, abriga e legitima as imagens; João Cabral usa o fio da navalha da palavra poética negativa que recusa o limite, quer uma estética entre a imagem no texto e o texto da imagem, quer a imagem do risco da lâmina, risco da palavra ainda não escrita, mais sonora para ser ouvida.

Nesse sentido, o lavoro é difícil, a luta com as palavras se dá num nível de obsessão. João Cabral segue à risca as precisões matemáticas de Paul Valéry. Exatidão era uma das obsessões de ambos os poetas na tão almejada hora da escrita. Podemos, aqui, evocar Italo Calvino de As seis propostas para o próximo milênio, cuja terceira proposta “Exatidão” afirma que exatidão quer dizer principalmente três coisas:

1) um projeto de obra bem definido e calculado;

2) a evocação de imagens visuais nítidas , incisivas , memoráveis;

temos em italiano um adjetivo que não existe em inglês, “icastico”, do

grego e’ikaotlkós;

3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (CALVINO, 1990, p.71-72).

João Cabral cumpre à risca o projeto calculado, incisivo em “Uma faca só lâmina”. Isso pode ser observado na linguagem depurada, com rigor voltado à poesia de recusa que se reflete na escolha dos símiles, dos semas, que traduz de maneira precisa a perspectiva lúcida do poeta - que desafia os limites da representação da força cognoscitiva da palavra - palavra-faca, que corta, sangra.

O trabalho de Cabral reflete a imagem que Italo Calvino recolhe do texto de Leopardi que suscita a sensação do “indefinido”. Observemos o trecho abaixo a fim de atentarmos para o trabalho preciso do poeta, numa imprecisão que conduz à exatidão:

(45)

42

tico, uma varanda elevada e pênsil, em meio aos penhascos e des- penhadeiros, ou num vale, sobre as colinas vistas da parte da som- bra, de modo a que estejam dourados os cimos; o reflexo que pro- duz, por exemplo , um vidro colorido sobre os objetos em que se reflitam os raios que passam através desse mesmo vidro; todos es- ses objetos, em suma, que por diversas circunstâncias materiais e ínfimas se apresentam à nossa vista, ouvido etc. de maneira incer- ta, imperfeita, incompleta ou fora do ordinário etc.

(LEOPARDI apud. CALVINO, 1990, p. 75).1

Para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário atenção extremamente precisa e meticulosa (CALVINO,1990, p. 75). Ao lermos Cabral tem-se a impressão de se enxergar o poeta da precisão. Em “Uma faca só lâmina”, o poeta soube captar com olhos, ouvidos e silêncio, o impreciso por meio de sua aguda linguagem, de suas cortantes palavras-lâminas. Dialoga com a poesia falando da própria poesia. Cabral faz do ordinário o extraordinário, ele soube ler e muito bem os ensaios de seu mestre: Paul Valéry. Também Italo Calvino (1990, p.81) vem corroborar essa qualidade singular valeriana:

Paul Valéry é a personalidade que em nosso século melhor definiu a poesia como tensão para a exatidão. E continua: Refiro-me principalmente à sua obra de crítico e ensaísta, na qual a poética de exatidão segue uma linha que de Mallarmé remonta a Baudelaire, e de Baudelaire a Edgar Allan Poe.

Para Valéry e Cabral, a poesia é um trabalho que exige tomar as palavras e as ideias por sua manejabilidade material. (CAMPOS, 2011, p. 83). O trabalho na folha em branco até o dia nascer se dá numa luta com as palavras. A palavra é

1

Cf. CALVINO,(1990, p. 74). "...la luce del sole o della luna, veduta in luogo dov’essi non si vedano e non si scopra la sorgente della luce; un luogo solamente

(46)

43 cortante, palavra-faca, sangra, verte o real para o espaço da folha, poesia arquitetural. João Cabral maneja bem o seu instrumento, visualiza o corte. Para ele, interessa o essencial. Ele apara as arestas, lapida, depura o objeto até apresentá-lo em sua real magnitude.

Referências

Documentos relacionados

1) Médias das estimativas do consenso (Bloomberg); 2) Preço-alvo originalmente para as ADRs (conversão pelo dólar projetado para o final do ano);. Stock

Apesar dos esforços para reduzir os níveis de emissão de poluentes ao longo das últimas décadas na região da cidade de Cubatão, as concentrações dos poluentes

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

The case studies show different levels of problems regarding the conditions of the job profile of trainers in adult education, the academic curriculum for preparing an adult

Esse tipo de teste relaciona-se com este trabalho pelo fato de que o servidor OJS será instalado e configurado pelo autor deste trabalho, ou seja, informações como sistema

1. No caso de admissão do cliente, a este e/ou ao seu representante legal são prestadas as informações sobre as regras de funcionamento da ESTRUTURA RESIDENCIAL

Em especial o subcritério de custo de frete apresentou uma dificuldade adicional por ser uma informação de difícil acesso e tratamento, sendo necessário realizar diversas