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O posicionamento do(a) investigador(a) e implicações éticas e metodológicas

No documento O papel da cultura de liderança (páginas 140-144)

PARTE I: A CONSTRUÇÃO DA PROBLEMÁTICA: TRAJECTO TEÓRICO E METODOLÓGICO

Capítulo 3 Metodologia e desenho da pesquisa-ação

3.3 O posicionamento do(a) investigador(a) e implicações éticas e metodológicas

Enquanto investigadora de pesquisa-ação é fundamental responder à pergunta: "quem sou em relação aos participantes e contexto? Esta questão é fundamental, na medida em que coloca questões acerca da validade da pesquisa e de confiança na investigação. Nesta investigação em particular, a investigadora é uma facilitadora externa de um processo de mudança que estabelece uma relação de colaboração com os intervenientes internos, como resultado inicial de uma contratação no início de 2013 para a transformação da cultura organizacional da organização, resultante da aspiração do seu CEO. Os objetivos são enunciados pelo CEO e pelo diretor de recursos humanos com a sua equipa. Com base nesses objetivos começam a ser desenhadas intervenções, que mais tarde virão a constituir a base de um conjunto de ciclos de pesquisa-ação. O projeto de doutoramento estava em curso, e a experiência de facilitação nesse ano abre a possibilidade para esse campo de intervenção passar a ser também o campo da pesquisa do doutoramento. Essa possibilidade foi autorizada e formalizada e foi estabelecida e consolidada uma relação de tipo colaborativo que tinha como pressuposto o respeito mútuo pela inteligência coletiva da organização e dos seus atores e pelo conhecimento especializado do facilitador. Num processo de interação colaborativo, as equipas internas trabalharam com a equipa externa para definir prioridades, ao passo que o facilitador externo dirigiu o processo, conjuntamente com a sua equipa externa, enquanto especialistas. Em alguns momentos dos ciclos de intervenção o processo foi de co-aprendizagem - as equipas internas e externas partilharam conhecimento e trabalharam em conjunto para desenhar planos de ação, - e de cocriação - as equipas internas

e externas criaram e desenvolveram processos e soluções para responder ao desafio e objetivo. Nas etapas do ciclo respeitantes à ação as diferentes intervenções aconteceram junto dos atores no campo.

O processo de pesquisa-ação teve início em abril de 2013 e ficou concluído em janeiro de 2017, tendo passado por vários ciclos. As várias intervenções descritas adiante do capítulo 5 foram asseguradas por uma equipa externa de seis pessoas. A investigadora desta dissertação, enquanto membro da equipa, tinha o papel de gestão do cliente e do projeto além da responsabilidade pedagógica pelo programa. A primeira etapa do projeto, descrita no 2º ciclo, e as suas várias intervenções para desenvolvimento individual e da cultura, consistiu em cerca de 418 horas de feedbacks individuais, 1200 horas de coaching individual para desenvolvimento de liderança, e em 120 dias de workshops. Destes, a investigadora assegurou 252 horas de feedbacks individuais, 99 dias de workshops (o equivalente a 792 horas). A restante equipa teve como principal responsabilidade 166 horas de feedbacks individuais, o coaching a cerca de 200 pessoas - o equivalente a 1200 horas -, e 21 dias de workshops para desenvolvimento individual e das equipas. Um dos membros da equipa foi, juntamente com a investigadora, responsável pelo desenho de algumas intervenções, além de ter assegurado uma intervenção estruturada de quatro sessões de team

coaching a uma das áreas de negócio. Em síntese, esta foi a distribuição de horas entre a investigadora e a restante equipa para o total das intervenções no 2º ciclo:

Total de horas de intervenções no 2º ciclo

Total de horas da investigadora Total de horas da restante equipa de 6 elementos 418 horas de feedbacks individuais (respeitantes a 209 LCP) 252 horas de feedbacks individuais 166 horas de feedbacks individuais

1200 horas de coaching 0 1200 horas de coaching

120 dias de workshops (960 horas)

99 dias de workshops (792 horas) 21 dias de workshops (168 horas)

2578 horas 1044 horas 1534 horas

A investigadora assegurou 40,5% do total das intervenções para desenvolvimento da cultura de liderança e 80,5% das intervenções em grupo. Dos 21 dias de workshops assegurados pela equipa (168 horas) a investigadora assistiu a 10; os restantes 11 dias foram reportados pela equipa à investigadora na qualidade de gestora do projeto, ainda que não

constituam fontes de observação direta. Dado que o código de ética da prática de feedbacks individuais e de coaching obriga à total confidencialidade entre coach e coachee, as 166 horas de feedback mais as 1200 horas de coaching assegurados pela equipa são relevantes para efeitos de contabilização de horas de desenvolvimento individual, mas os seus conteúdos não foram considerados enquanto dados para efeito da pesquisa-ação. No entanto, os padrões de comportamento quando identificados pela equipa podem constituir indicadores de cultura. Neste caso, são discutidos em sede de reunião de equipa de projeto para tomada de decisão no âmbito dos vários ciclos de pesquisa-ação. Por exemplo se, numa área de negócio, uma pessoa quer sair da empresa e discute esse tema com o coach, trata-se de um tema de foro confidencial; se várias pessoas, da mesma área de negócio, pretendem sair da empresa, poderá tratar-se de um indicador relevante em termos de clima organizacional. No entanto, foram considerados como dados de pesquisa, além das 792 horas de workshops em equipa, os conteúdos das 252 horas de feedback assegurados pela investigadora. As 252 horas, apesar da confidencialidade, encontram-se registadas em cadernos de registo da investigação. O número de horas de pesquisa-ação assegurado pela investigadora, bem como a não utilização de dados da restante equipa enquanto dados primários, garantem a validade da pesquisa. No 3º ciclo, além da continuação das intervenções iniciadas no 2º ciclo, foi desenvolvido um programa de liderança adaptativa de nível mais avançado (detalhado mais adiante no capítulo 5.3), para cerca de 34 líderes.

Trataram-se de dois workshops. O primeiro foi conduzido por um dos elementos da equipa com o apoio da investigadora, o segundo workshop foi assegurado na totalidade pela investigadora. O total de dias de intervenção para esta fase foi de 16 dias e a investigadora esteve presente em todos. Os dados desta fase do 3º ciclo resultaram assim de observação direta em contexto de pesquisa-ação, apesar de no caso do primeiro workshop haver um membro da equipa enquanto facilitador. A investigadora facilitou ainda, no âmbito do 3º ciclo, uma série de workshops e de reuniões – cerca de 11 - para a criação de algumas ferramentas e alavancas de suporte à mudança, além de todas as reuniões de planeamento, discussão e de desenho do projeto com o cliente, ao longo dos 4 ciclos (3,5 anos). No 4º ciclo, os dados utlizados na pesquisa-ação são todos primários e resultam da observação direta em contexto de facilitação e de pesquisa-ação.

No decurso destes ciclos, o duplo papel de investigador e de facilitador gerou algumas tensões que obrigaram a um trabalho ainda mais cuidado de reflexão e de

investigação teórica. A observação no decurso da pesquisa ao longo dos quatro anos possibilitou a observação da evolução do comportamento de pessoas e de grupos. Ela permitiu ir compreendendo progressivamente as relações e redes de poder e influência internas. No papel de facilitador, a investigadora não está na realidade na qualidade de um observador participante tradicional, na medida em que nesse papel a sua missão é a de intervir no sistema. No trabalho de intervenção a investigadora está exposta a muitos dados, mas porque o seu papel não é o de investigar, a recolha não é científica, na medida em que os workshops, reuniões ou coachings não são filmados por questões éticas. Assim, a investigação, apesar de assentar na observação do real, faz-se depois por via da reflexão e da análise a posteriori e é combinada com um conjunto de outros dados e critérios de avaliação da pesquisa-ação. A observação na pesquisa-ação implica saber ouvir em profundidade e ver para lá do óbvio, fazendo uso de todos os sentidos. Implica saber perguntar de forma estruturada e não estruturada a partir do que emerge e por isso a escrita e a anotação devem ser constantes.

Um outro aspeto relevante na observação na esfera da pesquisa-ação prende-se com a interação entre o(a) facilitador(a)/investigador(a) e o seu objeto de estudo, na medida em que a recolha de dados e o progresso das várias intervenções decorrem das relações que vai desenvolvendo com os atores de mudança, razão pela qual é crítica a autoanálise, a vigilância sobre sentimentos e emoções como frustração e desapontamento, por exemplo, e a supervisão de mentores, supervisores ou pares. Dado que a investigadora é uma observadora que está a ser observada, as reações dos atores à sua intervenção também constituem informação e dados relevantes sobre o estado da relação e a acerca da sua neutralidade. O desejo de imersão na cultura e o apelo para ajudar a fazer acontecer mudanças constituem tentações a que a investigadora tem de estar constantemente alerta. Em muitas ocasiões o(a) facilitador(a) passa a fronteira de facilitador(a) externo(a) e começa a sentir-se um ator interno. Estes erros, quando acontecem constituem uma fonte de aprendizagem sobre si e sobre a cultura que está a tentar transformar.

Na pesquisa-ação o apelo do propósito e o desejo profundo de melhorar os sistemas em que intervém, apesar de assumidos, podem interferir na capacidade do(a) investigador(a) ver e interpretar corretamente a realidade e a experimentação. A supervisão destes dilemas e tensões é fundamental, quer por via da reflexão e da tomada de consciência, quer convidando outros investigadores, orientadores ou colegas a manter a vigilância e sobre a intervenção e experiência de pesquisa-ação. Por essa razão, tornou-se crítico ao longo do

processo, o facilitador ser alvo de supervisão e de peer coaching por parte de um dos membros da equipa para preservar um olhar crítico e externo e recuperar o distanciamento e neutralidade necessários ao papel quer de facilitador, quer de investigador. Períodos sem intervir para ganhar distanciamento seguidos de reflexão, discussão com os restantes quatro membros da equipa, desenho colaborativo das intervenções com um dos membros da equipa, testes piloto de intervenções, discussão com orientadores, feedback contínuo por parte dos atores da mudança e discussão com vários interlocutores-chave do cliente constituíram estratégias de distanciamento do facilitador.

O duplo papel de facilitador e investigador pode colocar ainda questões de natureza ética e com implicações metodológicas. Na medida em que as intervenções do facilitador são desenhadas para responder a um conjunto de objetivos há uma inerente preocupação com a sua eficácia e sucesso, sucesso esse que é avaliado por vários interlocutores - quem contrata e quem é objeto da intervenção, podendo por vezes estes dois papéis se sobreporem numa mesma pessoa ou pessoas. Na pesquisa-ação, o(a) investigador(a) está preocupado com a geração de conhecimento na pesquisa que tenha validade e seja fiável, mas o foco principal, tal como o do facilitador, também está na produção de resultados como resultado da ação. Donde que existem dois fatores críticos de sucesso: (1) a necessidade de legitimar a fiabilidade desses resultados, garantindo a validade da pesquisa através de critérios de qualidade; (2) garantir que apesar do(a) investigador(a) na pesquisa-ação estar a facilitar um processo, a tentar capturá-lo e a narrá-lo, descrevendo e refletindo sobre os diferentes ciclos ao longo do processo, consegue analisar o resultado final das várias intervenções e responder à pergunta: "o que aprendemos e de que forma o que aprendemos pode informar a discussão em torno da pergunta da investigação?".

No documento O papel da cultura de liderança (páginas 140-144)