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2.2 COMPREENDER A NATUREZA E O SER HUMANO

2.2.1 O princípio da “domesticação” do mundo natural

O domínio do ser humano foi aumentando ao longo do tempo. A história da colonização e o fato de descobrir e conquistar novas terras em benefício dos reinos colonizadores se tornou favorecido pela justificativa ideológica de um mundo social que “deve” se impor sobre um mundo natural, entendendo que deste mundo natural também fazem parte os povos que vivem em sociedades em estágio de evolução, distinto do colonizador. Tanto as terras indígenas quanto os povos que habitam essas terras, tratados como natureza, foram alvo de dominação.

Uma das primeiras formas de modificar a natureza foi cultivar a terra, que certamente não implicava uma dominação no sentido negativo, pelo menos até o momento em que a forma de fazer agricultura não se tornou prejudicial. Thomas (1988, p. 17), descrevendo as atitudes do homem em relação à natureza na Inglaterra do séc. XVI, afirma que “A agricultura estava para a terra como o cozimento para a carne crua. Convertia natureza em cultura. Terra não cultivada

significava homens incultos”.

Este autor explica que entre os séculos XVI e XVIII na Inglaterra as terras precisavam ser todas lavradas porque a agricultura representava progresso e civilização; não era admissível deixar superfícies de terra incultas no seu estado natural/selvagem, pois estas eram — segundo a população da época — desperdiçadas e consequentemente vistas como feias e desagradáveis aos olhos humanos. Essa imagem negativa da natureza selvagem mudaria radicalmente durante o século XIX.

Considerando que a modificação da natureza começou por meio da agricultura e da pecuária, e que a alimentação é a necessidade primária para a sobrevivência humana, vale lembrar que essas atividades surgiram quando o homem deixou de caçar, de ser nômade e passou a morar e trabalhar num sítio onde se podia produzir os alimentos e também guardá-los; dessa maneira puderam ser formadas comunidades e consequentemente deu-se origem ao aparecimento das aldeias ou simplesmente aglomerações humanas, localizadas principalmente às margens de rios e mares, que evoluíram para o que se conhece por cidades. De acordo com Liebmann (1979, p. 88), “No início as populações sempre foram erguidas nas proximidades de fontes de água”. Como explica Mello (2005),

A proximidade à água diz respeito desde ao atendimento de necessidades básicas do homem, como o abastecimento e higiene pessoal, a funções de transporte, pesca, recreação, bem como à valorização dos aspectos estéticos e de beleza cênica. Relaciona-se também a fatores simbólicos, ritualísticos; a água é um elemento universal de conexão do homem com a natureza (MELLO, 2005, p. 16).

Nessas aglomerações ribeirinhas a vida humana estava sujeita a riscos e ameaças por parte da natureza, que podia “trazer” inundações e tempestades. Portanto, já que o ser humano estava ciente da própria capacidade de modificar os elementos físicos do espaço natural, inicialmente para se defender, exerceu esse domínio ao longo de centenas de anos e cada vez com mais força e grandeza: desviando os cursos naturais dos rios; criando lagos semiartificiais mediante a construção de barragens; aterrando grandes áreas costeiras; desenvolvendo, com o tempo, capacidades sempre maiores, chegando, por exemplo, a cortar os topos das montanhas e até desviar os ventos27.

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Ao compreender que a relação da natureza com o ser humano foi fundada historicamente e atualmente se baseia ainda mais numa relação de domínio, a filósofa Unger (2001) observa que,

A natureza é reduzida à condição única de objeto manipulável pelo sujeito humano, auto-erigido em referencial ontológico do universo. Por isso, pode- se afirmar que a história do mundo é a história da procura de mais e mais poder na medida em que o ser humano entende sua humanidade na razão direta de sua capacidade de tudo dominar (UNGER, 2001, p. 27).

O domínio do homem afastou a ideia de natureza, da espiritualidade, de Deus, já que a natureza foi cada vez mais determinada pelas ciências da natureza – a física, a química e a biologia. Isto foi aperfeiçoado no séc. XVIII, com o racionalismo, quando nasceu a noção de ciência como estudo da natureza. Lenoble (1975) lembra que o homem, que hoje se comporta como se fosse patrão do seu destino, teve sempre algo por sobre ele: Deus. Ele ressalta que agora que a natureza está sendo controlada pelo homem, é o próprio homem que se tornou um deus, lembrando que na época antiga a ciência era a física baseada na metafísica, como Platão e Aristóteles a tinham concebido; mas com o passar do tempo, a metafísica foi progressivamente recusada; “Deus e a alma são sempre objetos da metafísica, mas a ligação entre a física e a metafísica, aliás entre a natureza e Deus, quebrou-se” (LENOBLE, 1975, p. 418, tradução nossa)28.

Uma vez que a natureza deixou de ocupar a alma e o espírito da humanidade e passou a ocupar o domínio da ciência, ela também foi, inconscientemente, associada a uma entidade sem vida. Gonçalves (2006) relaciona essa falta de alma e de vida com a origem da dominação antropocêntrica. Assim afirma o autor:

O antropocentrismo consagrará a capacidade humana de dominar a natureza. Esta, dessacralizada já que não mais povoada por deuses, pode ser tornada objeto e, já que não tem alma, pode ser dividida, tal como o corpo já o tinha sido na Idade Média. É uma natureza-morta, por isso pode ser esquartejada [...] (GONÇALVES, 2006, p. 34).

Acreditamos que essa visão, primeiro de dominação e depois de destruição da natureza, foi originada com o fim da época “obscura” – quando houve a separação

chuva numa localidade e não em outra, a exemplo da Energia Orgônica ou Cosmic Orgone Engineering (CORE) que deu origem ao ‘Cloudbuster’ (domador de nuvens), uma máquina que consegue aumentar a camada de nuvens, provocando precipitações localizadas.

28Dio e l’anima sono sempre oggetti dela metafisica, ma il legame tra la fisica e la metafisica, ossia fra

corpo/alma, matéria/espírito – que deu início à época moderna e sucessivamente ao período das “luzes”, da ciência moderna, do conhecimento, que tirou a alma da natureza e lhe deixou somente o corpo para ser estudado cientificamente.

No séc. XIX a ciência se tornou o novo ídolo para adorar. Segundo Thomas (1988, p. 34-35) “[...] o controle do homem sobre a natureza era o ideal conscientemente proclamado dos primeiros cientistas modernos”. Com isso, os três termos: natureza, ciência da natureza e certeza científica chegaram a formar a fé da maioria dos homens nos últimos séculos, graças à ideia de o homem ter que se modelar sob a natureza e, já que a natureza depende da ciência, resulta que a ciência sozinha diz tudo e que as certezas humanas não precisam mais da metafísica.

Na história da ideia de natureza não encontramos nunca uma “realidade nua”, pois a natureza sempre apareceu no pensamento dos homens como uma construção de ideias muito influenciadas por paixões, tendências e instintos humanos. Segundo Lenoble (1975, p. 419, tradução nossa)29 “A ciência, se diz,

estuda a natureza, mas a natureza não parece com aquilo que habitualmente se chama ‘um fato científico’”. Portanto, é preciso considerar a natureza nos muitos significados que no tempo ela assumiu para os homens e lembrar com que facilidade ela se dobrou aos desejos do homem.

A tese que este autor usa na sua obra é que reduzir a natureza somente à ciência significa antes de tudo ignorar essa história da ideia de natureza. “O homem nunca aceitou e nunca vai aceitar só as informações parciais que a ciência oferece. Ele levantará os olhos sobre a natureza para descobrir o mistério, para conhecer o segredo que não pode ser fruto de laboratório” (LENOBLE, 1975, p.420, tradução nossa)30.

Uma vez compreendida a essência do significado de natureza na sua dimensão espiritual e não somente física, é necessário continuar essa história das relações (de harmonia ou de conflito) entre o ser humano e a natureza, por meio de uma análise das atitudes humanas, do apreço ou desprezo pela natureza, por parte da sociedade.

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La scienza, si dice, studia la Natura ... ma la Natura non rassomiglia affatto a ciò che si chiama comunemente <<un fatto scientifico>>.

30Mai l’uomo ha accettato, e non accetterà mai, le informazioni parziali che la scienza gli offre. Sempre

alzerà gli occhi sulla Natura per scoprirne il mistero, per conoscerne il segreto, e questo segreto non può essere frutto di laboratorio.