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3 SITUAÇÃO ATUAL: OS RIACHOS URBANOS INTERMITENTES EM

4.1 AS ATUAIS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA NATUREZA NA CIDADE

4.1.1 A visão dos ribeirinhos

O questionário aplicado aos moradores ribeirinhos dos riachos foi estruturado em duas partes: uma mais quantitativa e outra mais qualitativa (apêndice I). Na

primeira parte há informações sobre identificação da pessoa e da casa, naturalidade dos moradores, propriedade da casa, quantidade de pessoas na residência, quantidade de anos ou meses que o entrevistado esteve morando no entorno do riacho.

No total o primeiro questionário foi aplicado em 212 pessoas residentes nas margens dos riachos; destes, a tabela 11 mostra uma diferenciação, especificando o gênero e a faixa etária (jovens, adultos, idosos). Já a tabela 12 mostra a naturalidade das pessoas entrevistadas, sendo que nem todos nasceram em Juazeiro-BA.

Tabela 11 – Quantidade e faixa etária dos pesquisados (ribeirinhos)

Pessoas Até 19 anos De 20 a 59

anos 60 anos ou mais Total Homens 11 63 3 77 (36%) Mulheres 14 102 19 135 (64%) Total 25 165 22 212

Fonte: Organizada por Matteo Nigro, com base em pesquisa de campo, 2015.

Tabela 12 – Naturalidade dos pesquisados (ribeirinhos)

Pessoas Juazeiro-BA Outras

localidades Total

Homens 41 36 77

Mulheres 58 77 135

Total 99 (47%) 113 (53%) 212

Fonte: Organizada por Matteo Nigro, com base em pesquisa de campo, 2015.

Um dado importante que resultou dos questionários aplicados é que a maioria das pessoas que moram nas margens dos riachos urbanos (53%)não são naturais de Juazeiro-BA, provêm de outros municípios de vários estados do Nordeste brasileiro (por exemplo Ouricuri-PE, Curaçá-BA, Remanso-BA, Salgueiro-PE, Jaguarari-BA, Campo Formoso-BA, Juazeiro do Norte-CE, Bodocó-PE, Saúde-BA, Pilão Arcado-BA, Monte Santo-BA, entre outros).

Das 99 pessoas (47%) pesquisadas que são naturais de Juazeiro e que moram nas margens dos nove riachos, 34 (1/3 delas) estão concentradas somente nas margens do canal fechado (coberto) da Vila Jacaré – sendo este canal aparentemente menos problemático para a população ribeirinha do que os outros riachos, por conta da cobertura de concreto que esconde os dejetos. Nas margens do canal da Vila jacaré (canal fechado) 66% da população é natural de Juazeiro,

enquanto a média dos naturais juazeirenses que moram em habitações nas margens dos outros oito riachos urbanos é somente 10%.

Como polos de crescimento, Juazeiro e Petrolina atraem muitas pessoas em busca de oportunidades de trabalho e serviços sociais coletivos públicos e privados. Assim, são atraídas pessoas com poder aquisitivo desde alto até baixo, e cada grupo de renda irá ocupar partes da cidade segundo sua capacidade de consumo.

Quanto à pesquisa sobre a propriedade da residência, dos 212 ribeirinhos questionados, 151 (71,2%) são proprietários e 54 (28,8%) moram em casas alugadas. Vale lembrar que o questionário foi aplicado apenas a uma pessoa por casa.

Também foi perguntado há quanto tempo a família residia naquela residência; a tabela 13 mostra os resultados.

Tabela 13 – Tempo de moradia dos pesquisados na casa ribeirinha

Tempo Pessoas % Até 1 ano 42 20 De 1 a 5 anos 62 30 De 6 a 10 anos 37 17 De 11 a 20 anos 47 22 De 21 a 30 anos 13 6 Há mais de 30 anos 11 5

Fonte: Organizada por Matteo Nigro, com base em pesquisa de campo, 2015.

Isso mostra que nas casas ribeirinhas aos riachos urbanos existe uma mobilidade residencial muito grande de pessoas que preferem morar somente temporariamente naquela residência, e isso apareceu também com muita ênfase nas falas dos moradores, já que muitos relataram estarem insatisfeitos em ter escolhido morar nas margens dos riachos. Por exemplo, um morador que reside na beira do riacho Malhada falou: “É ruim. Eu só moro aqui porque não tenho outra opção”. Opinião semelhante foi apresentada por outros moradores que moram nas margens do mesmo riacho: “Morar aqui não presta não. O fedor é demais!”. E de outro que mora na margem do antigo leito do riacho Mulungu: “É difícil morar aqui, mas moro porque não tenho onde morar”. Vale considerar que estes relatos não foram respostas de perguntas específicas sobre a moradia, mas os respondentes colocaram as próprias angústias dentro das outras perguntas.

representações que a população escolhida para aplicação dos questionários tem em relação aos riachos. Especificamente, os resultados se basearam em dados qualitativos obtidos mediante duas perguntas: uma sobre a função e outra sobre a forma dos riachos. Além destas, foi feita outra pergunta sobre o apreço ou desprezo em relação os elementos naturais: água, terra, vegetação.

A primeira pergunta, sobre: qual é a finalidade ou o uso do riacho, foi feita no intuito de saber se a população que tem uma relação direta com os riachos é ciente, ou não, da principal função que esses corpos hídricos desempenham na cidade, ou seja, do papel que o sistema natural de macrodrenagem pluvial tem de evitar enchentes e inundações na zona urbana. Na sistematização das respostas livres e abertas se optou por fazer uma divisão em grupos de respostas semelhantes (gráfico 7); ao ler todas as respostas foram identificados cinco grupos de respostas, onde cada grupo contem as respostas que contemplam os mesmos elementos nos conteúdos, ainda que a composição da frase e a ênfase de cada resposta sejam um pouco diferentes 69.

Gráfico 7 – Respostas da pergunta 1: na sua opinião, para que serve esse riacho?

40% 25% 18% 15% 2% 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% 45%

Para juntar lixo, muriçocas, ratos, cobra

etc.

Como canal de esgoto da cidade.

Para trazer doenças. Sei la, para nada! Drenagem de água pluvial.

Fonte: Organizado por Matteo Nigro, com base em pesquisa de campo, 2015.

Interpretando as informações obtidas nas respostas da pergunta 1, é evidente

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No apêndice 7 estão transcritas integralmente algumas respostas obtidas na aplicação do questionário 1 com os moradores ribeirinhos, divididas em grupos de respostas.

que a quase totalidade da população questionada desconhece a importante função de macrodrenagem natural que os riachos desempenham na cidade, mesmo estando em situação de extrema deterioração.

Fazendo uma reflexão teórica sobre essa pergunta, pode-se pensar na dificuldade que existe em deixar de lado a visão utilitarista da natureza por parte dos seres humanos, pois o próprio modo como foi posta a pergunta pressupõe uma utilidade do objeto natural, e nas palavras da filosofa Unger (2001) significa que o homem moderno tende a tratar a natureza somente como “objeto de uso”. Na realidade entende-se que os elementos naturais, uma vez inseridos nos ambientes humanos, urbanos, passam a desempenhar uma função social que não significa ter uma relação de servidão do ser humano com a natureza (no sentido de a natureza que serve ao homem), mas sim uma relação de cooperação entre o ser humano e a natureza. Uma cooperação que, no entendimento do “contrato natural” de Serres (1991), deve ser baseada na manutenção e respeito dos ambientes naturais, como contrapartida aos benefícios que estes oferecem para a sociedade.

As respostas do 1° grupo (40%) mostram a dificuldade em entender que os riachos tão poluídos e desprezados pudessem ter alguma utilidade (função social) no contexto da cidade, e por com indiferença e ironia apareceram os fatores negativos – despejo de lixo, proliferação de bichos – como a principal função dos riachos, que não traz nenhum benefício, mas somente incômodos e transtornos à população.

As respostas do 2° grupo (25%) mostram que a população entende que os riachos servem como corredores para transportar os esgotos das casas dos moradores até o rio São Francisco. É importante entender que como afirmação essas respostas não estariam equivocadas, considerando que o uso atual que se faz dos riachos urbanos é o despejo e transporte de esgotos diretamente até o rio SF (corpo receptor final). Porém não é possível ignorar a necessidade de drenar as chuvas e evitar os alagamentos urbanos, simplesmente aceitando a ideia de que é o despejo a sua principal finalidade de que esses corpos d’água devam ser usados eternamente como canais de esgoto.

As respostas do 3° grupo (18%) foram centradas sobre a preocupação da proliferação de doenças a partir da situação do esgoto a céu aberto e de muitas superfícies de água parada, os questionados fizeram bastante referência ao mosquito da dengue e das outras febres/vírus que transmite.

As respostas do 4° grupo (15%) – entre os respondentes quase todos eram adolescentes com até 19 anos de idade – mostraram desconhecer completamente a possibilidade de os riachos possuírem uma utilidade para a população. Responderam que simplesmente os riachos não servem “para nada”, provavelmente pensando nos fatores negativos que a situação atual dos riachos lhe proporciona (mau cheiro, muriçocas etc.). Isso mostra que o tema da drenagem urbana ainda é pouco conhecido e explorado pelas instituições de ensino básico e pelos meios de comunicação – que muitas vezes tendem a tratar os alagamentos urbanos como um problema que a chuva traz para a cidade (culpando a natureza), e não focando na falta de infraestruturas para o escoamento das águas pluviais.

As respostas do 5° grupo (2%), ou seja, somente cinco das pessoas questionadas fizeram referência à macrodrenagem urbana, mostrando conhecer o real benefício dos riachos na cidade. Vale ressaltar que, apesar de serem conscientes pelo menos em parte dos benefícios ambientais dos riachos para a cidade, apareceu também que a população ribeirinha aos riachos desconhece o fato de que na cidade há bairros que já possuem a rede coletora de esgotamento sanitário70. Isso porque a presença dos riachos urbanos transformados em grandes canais de esgoto é tão significativa e impactante na vida de quem mora em suas margens, que a população ribeirinha aos riachos, de um lado é desinformada, e de outro lado pensa que o sistema de coleta e transporte de esgoto adotado pela cidade de Juazeiro-BA é feito exclusivamente por meio dos riachos, e tomam essa noção como normal, definitiva, universal, sem considerar que a cidade é complexa e diversa de bairro para bairro, onde existem situações diferentes.

Nas falas obtidas nas respostas da pergunta 1, foi revelada a cultura do desconhecimento da natureza como parte integrante da vida humana. Os ambientes naturais são vistos como entidades alheias, distantes e inúteis para a vida humana e para a cidade. Os riachos urbanos de Juazeiro-BA, que na visão de Latour (1994; 2004) seriam objetos híbridos entre a natureza e a sociedade são considerados pela população somente como objetos independentes que não mantêm nenhuma relação benéfica com a população urbana.

Como entende Carvalho (1998), os elementos de qualquer ecossistema são

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Porém o SES atual não funciona porque não há manutenção suficiente da rede coletora, faltam estações elevatórias de esgoto, acontecem diariamente entupimentos das tubulações e transbordamento dos esgotos nas ruas, essas tubulações são interligadas com o leito dos riachos, e todos os problemas que o mau funcionamento do SES comporta.

entre eles conexos e interdependentes, e isso vale tanto para os ambientes naturais quanto para os ambientes urbanos; porém a população – aparentemente e respondendo de forma irrefletida – não concebe as relações e as conexões entre os meios sociais e naturais, tratando os elementos da natureza com indiferença e ironia, ou seja, mostrando, de forma inconsciente ou não, o próprio sentimento de desprezo pela natureza, afirmando uma consciência alheia ao mundo natural, como foi abordado na teoria de Arendt (2007).

A linguagem usada nos depoimentos remete a uma função egoísta e utilitarista de um “bem” natural. Isso torna os moradores ribeirinhos vítimas ingênuas do próprio desconhecimento. Se ainda não se consegue nem perceber os resultados benéficos proporcionados pela natureza à sociedade humana, que dirá construir um entendimento de síntese entre a natureza e a política, como sugere Latour (2004) na ótica da ecologia politica.

A segunda pergunta aberta do questionário 1 foi centrada especificamente sobre as representações sociais dos riachos, no sentido de desvendar as imagens que a população ribeirinha tem dos corpos d’agua. Para isso foi perguntado o que vem imediatamente à mente quando se pensa no riacho. A sistematização das respostas foi realizada com o mesmo procedimento da primeira pergunta (gráfico 8).

Gráfico 8 – Respostas da pergunta 2: o que lhe vem à mente quando o Sr/Sra pensa no riacho?

Das respostas da pergunta 2 resultou que a totalidade das pessoas que responderam o questionário tem uma representação social negativa em relação aos riachos urbanos, ainda que cada pessoa veja e imagine o objeto de um ponto de vista diferente, também ressaltando nas respostas diversos aspectos71.

As respostas do grupo 1 (54%) mostram que a primeira imagem mental que aparece ao se referir aos riachos é relativa à proliferação exagerada de insetos, répteis e anfíbios, pois de uma forma geral, na cidade de Juazeiro-BA é muito comum o problema da grande quantidade de Culex quinquefasciatus (muriçocas). Esta questão foi relatada com mais ou menos ênfase por quase todas as pessoas pesquisadas, mas não necessariamente aparecendo na segunda pergunta, já que todas as perguntas do questionário podem ter respostas comuns.

As respostas do grupo 2 (22%) mostraram que o que vem logo à mente é uma imagem de “imundície, sujeira e mau cheiro”, fazendo referência também aos resíduos sólidos despejados irregularmente nos riachos.

As respostas do grupo 3 (15%) foram centradas sobre o medo pelos alagamentos urbanos ou inundações durante os dias de chuva, pois a água de chuva que escorre para os riachos, geralmente transborda por várias razões: pelo fato de existir já um volume considerável de esgotos no leito dos riachos, que diminui a vazão útil dos corpos d’água; também transborda por causa do assoreamento dos córregos; da vegetação aquática que se constitui como muita matéria solida, dificultando o escoamento rápido da água; bem como pelo problema dos resíduos sólidos jogados nos riachos, que obstruem a passagem da água.

As respostas do 4° grupo (7%) tratam da violência urbana. Os questionados responderam que o riacho traz à mente o “perigo de assaltos devido ao mato”, ou seja, devido à grande quantidade de mata ciliar, constituída principalmente por taboas que, sendo adensadas e altas, reduzem a visibilidade e acomodam esconderijo para os meliantes.

As respostas do 5° grupo (2%) ressaltaram a imagem de poluição ambiental. À luz das respostas obtidas da pergunta 2, pode-se afirmar que são formadas imagens muito parecidas entre os moradores. Assim, os primeiros resultados desta pesquisa revelam que esses sujeitos têm uma mesma representação social, que é principalmente negativa. De acordo com Lynch (1918, p. 8), “Cada individuo cria e

71

No apêndice 7 estão transcritas integralmente algumas respostas da pergunta 2, divididas por grupos de respostas.

assume sua própria imagem, mas parece existir um consenso substancial entre membros do mesmo grupo”. No nosso caso, pode-se considerar membros do mesmo grupo de interesses toda a população que respondeu aos questionários pelo fato de morarem na mesma cidade e nas margens dos riachos.

Além das respostas referentes às perguntas 1 – sobre a função, e 2 – sobre a forma dos riachos, no questionário houve outra pergunta sobre a representação social dos elementos naturais na cidade, ainda que focando nos riachos urbanos, mas dessa vez a pergunta foi especificamente sobre a água, a terra e a vegetação ribeirinha dos riachos urbanos. Para facilitar o entendimento por parte da pessoa respondente, a questão foi redigida da seguinte maneira: O que o Sr/a acha sobre essa vegetação, água e terra dos riachos na frente da sua casa? As respostas foram bem parecidas entre todos os questionados, e para a sistematização dos resultados relativos a essa questão foram escolhidas as respostas mais comuns, ressaltando algumas diferenças nos conteúdos (quadro 20, apêndice 7) Decidiu-se, portanto, não separar os grupos de respostas parecidas, mas agrupa-las em relação aos conteúdos que apareceram.

Os resultados da pergunta 3 mostram, que resultou uma ideia de natureza que tende a deturpar a imagem das áreas naturais na cidade, que são vistas e representadas como “galhos velhos”, “mato feio”, ignorando completamente o benefício climático, ecológico e paisagístico que a natureza traz para a cidade no contexto semiárido. Conceitualmente apareceu um repúdio ao ambiente natural por parte das pessoas que querem afastar o mais possível da própria casa a imagem da natureza porque é primitiva, selvagem, e taxada como “feia”. A natureza foi tornada feia e inútil diante dos artifícios humanos. Assim como nas ideias de Arendt (2007), o ser humano criou um mundo meramente humano que separa a existência do homem de todo o ambiente natural, por isso quanto mais humano, ou seja, quanto mais urbanizado seja o espaço, tanto mais será agradável e bem aceito.