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2.3 A POLÍTICA EM SUA RELAÇÃO COM A NATUREZA

2.3.2 O significado das agressões humanas à natureza

Desde o primeiro livro da Gênesis, a tarefa do homem era modificar a natureza ─ no sentido pacífico de cultivar a terra ─, exercendo um domínio, ostentado até na própria Bíblia que conta:

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.[...]. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai- vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra (A BÍBLIA, 1969, cap. 1, 26-28, grifo nosso).

Os filósofos que entraram nessa questão chegaram à conclusão de que o Antigo Testamento diz que a natureza não foi criada para os homens, mas sim para Deus, enquanto durante o desenvolvimento do cristianismo surgiu a ideia de antropocentrismo, que deu origem à dominação do homem sobre a natureza. Segundo Passmore (1986),

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Essa não se entende na perspectiva da Escola de Chicago, mas sim num sentido mais amplo que relaciona diversas áreas de conhecimento. “As tentativas de definição de Ecologia Humana são sempre limitadoras de suas potencialidades, porque não nos livramos do fantasma da verdade das ecologias das plantas e dos bichos dissociadas do sentido humano. A polissemia das “ecologias humanas” é produto das dissociações dos saberes, do esquartejamento da verdade do sujeito, sempre um incômodo ao pensamento reducionista” (MARQUES, 2012, p. 38).

A origem da atitude "arrogante" do cristianismo para com a natureza, portanto, terá que ser procurada na separação do homem com a natureza, e na ideia de que a natureza foi especialmente criada para ele, concepções essas especificamente cristãs, não no conceito de "domínio do homem" do Antigo Testamento (PASSMORE, 1986, p. 27, tradução nossa37).

Vale destacar que a partir dessa dominação que parece ser o objetivo da vida humana na Terra, pode-se aceitar a ideia de que a modificação das terras, primeiro mediante a agricultura de subsistência, depois mediante a construção de infraestruturas e de cidades, foi indispensável ao desenvolvimento da sociedade e da civilização. Até aqui o ‘sistema ambiente’ não resulta ameaçado; no entanto, o que ocorreu ao longo da história da humanidade mostra que o ser humano não se limitou simplesmente a modificar as terras e os elementos naturais, mas foi muito além disso, agindo de uma forma tão transformadora que chegou a prejudicar a vida animal e vegetal no Planeta.

Esta prática ─ que evidentemente é nociva tanto à humanidade, como à natureza ─ tende a ir, cada vez mais, na direção de uma morte da natureza, ou, como diria Arendt (2007), uma morte do mundo. Nos seus escritos, Arendt (2007) fala em termos de “morte do mundo”, usando esta forte expressão para designar a destruição da natureza que vem acontecendo para atender a sociedade de consumo, que é a prova mais contundente da desumanidade do ser humano.

Esta autora ressalta também que cada pessoa é diferente por nascença de todas as outras; a cada nascimento humano o individuo introduz algo inteiramente novo e cria objetos (materiais e imateriais) numa velocidade sem precedentes; da mesma forma a cada morte, o mundo perde algo de inteiramente original.

O homo faber, por exemplo, é a demonstração de que os seres humanos têm uma capacidade exclusiva entre os seres vivos, de fabricar objetos que por sua vez irão produzir outros objetos de forma cada vez mais acelerada, até gerar um círculo vicioso onde a sociedade de consumo está aprisionada na lógica de produção dominante vigente, que é a lógica capitalista. Esta produção acelerada de objetos, ou de espaços, ou de natureza, é a condição humana da qual o homem não consegue fugir.

Ora, essa produção se torna prejudicial para os seres humanos que, segundo Arendt (2007), criam um “mundo onde tudo é possível”, onde o homem, ao destruir a

37L’origine dell’atteggiamento “arrogante” del cristianesimo verso la natura andrà perciò cercata nella

separazione dell’uomo dalla natura, e nell’idea che la natura sia stata creata appositamente per lui, concezioni queste propriamente cristiane, non nel concetto di “dominio dell’uomo” dell’Antico Testamento.

natureza, destrói também a sociedade e as culturas. Ao refletir sobre o significado de mundo, Arendt (2007) escreve que,

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo ─ artifício humano ─ separa a existência do homem de todo o ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente a ciência vem se esforçando para tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza (ARENDT, 2007, p. 10).

Entendemos, portanto, que para Arendt (2009), o mundo é concebido como aquela entidade que está entre os homens e a natureza; não é o homem na natureza, mas o homem no mundo. Para ela, “O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens, ou uma natureza sem homens, seria uma contradição entre si” (ARENDT, 2009, p. 36).

Sendo assim, o conceito de mundo é provavelmente menos abrangente, ou melhor, está contido no conceito de natureza, já que são os homens que criam um “mundo artificial” e vivem nele, diferente dos outros seres vivos que vivem na natureza. Assim, voltando ao nosso objeto de pesquisa, o mundo artificial está incorporado na natureza artificializada dentro da cidade, pelo riacho natural que é transformado em urbano e, aos poucos, em canal de esgoto.

Tanto as preocupações sobre a poluição dos riachos urbanos, como sobre as áreas verdes, a contaminação do solo, da água, do ar e dos alimentos, estão sempre ligadas a uma resposta em termos de atuação política, já que somente a política tem a possibilidade de modificar o espaço e a natureza – para o bem ou para o mal. Neste sentido Arendt (2009) afirma,

Não importa como pode ser feita a pergunta, se é o homem ou o mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a resposta que empurra o homem para o ponto central das preocupações do presente e que acha que deve modificá-lo, remediá-lo, é a política em seu sentido mais profundo (ARENDT, 2009, p. 35).

A reflexão que esta autora faz sobre a modificação ou remediação do mundo por parte da política está ligada ao fato deque a sociedade humana contemporânea ─ que sente a necessidade de intervir nas dinâmicas políticas de decisão sobre os

aspectos que envolvem a vida e os direitos humanos ─ de fato não tem pleno poder sobre o próprio destino e o destino do ambiente que os circunda, por isso é necessário delegar (eleger) aos gestores públicos como representantes políticos do povo. É aqui que a política começa a ser entendida ─ assim como a natureza ─ um domínio externo ao homem, já que não consegue se aproximar de todos. Em vez de ser algo que está entre-os-homens, assim como o mundo, a política, assim como a natureza, é, muitas vezes, considerada fora dos homens.

O problema é, segundo a Arendt (2007), de tipo relacional e teve início na era moderna, quando a sociedade se deu conta da condição humana em que vivia. A partir desta condição, no homem aconteceu um desenraizamento do espaço político que o levou a se retirar e se isolar da vida pública, da política, da Terra, da natureza, dele mesmo, sendo que no contexto contemporâneo, caracterizado pela produção do consumo de massa, essa Terra e essa natureza viraram simplesmente objetos de uso e consumo, que por sua vez só é possível mediante o consumo exagerado da natureza, o que implica a sua destruição.