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5. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO RECOMENDAÇÕES

5.2 O problema da remoção das camadas de pintura

Reforçando conceito de que qualquer acção no património se baseia no conhecimento, o facto dos esgrafitos estarem todos pintados, adquire um papel ainda mais importante, não só porque, se desconhece a qualidade desse universo, mas também porque é urgente alterar esta “moda” de pintura dos esgrafitos e valorizar a autenticidade da matéria e, consequentemente, da técnica dos esgrafitos. Como conservar os esgrafitos pintados e, portanto, alterados? A resposta a esta questão, nem sempre é evidente, exigindo a ponderação de diversos factores antes de qualquer decisão.

O facto dos esgrafitos estarem cobertos com tinta e/ou cal, não permite conhecer a sua extensão, qualidade e estado de conservação. Os esgrafitos podem estar irremediavelmente degradados, muitas vezes até picados, para melhorar a adesão da nova argamassa/ barramento, mas, a pintura pode, também, ter ajudado a preservar a superfície original. O universo dos esgrafitos pintados inclui dois grandes grupos: os esgrafitos que, ainda, garantem a sua função decorativa, mantendo-se o motivo, embora pintado (cerca de 44,6%), e os esgrafitos cobertos na totalidade com camada de pintura monocromática (36,4%), tratados como uma superfície sem decoração. Neste último caso, durante o trabalho de campo, foram classificados como pintura sobre esgrafito todas as decorações em baixo-relevo que utilizam o jogo de planos paralelos, tendo sido excluídos os trabalhos de modelagem com argamassas cujo resultado são elementos não planimétricos, mas sim, tridimensionais, tipos os trabalhos de estuque.

As camadas de pintura escondem a superfície e a textura original do esgrafito o que resulta, geralmente, numa falta de detalhe na decoração porque fazem desaparecer as linhas de incisão e de corte, assim como a textura da argamassa e alguns detalhes do desenho

do motivo decorativo. Muitas vezes a tridimensionalidade do esgrafito é anulada com a aplicação de um reboco ou barramento, só sendo perceptível em condições únicas de iluminação, ou devido à degradação desse barramento/reboco, como por exemplo na Rua 5 de Outubro.

Em ambos os casos o problema da remoção das camadas de pintura deve ser sempre equacionada.

A possibilidade de ter acompanhado a intervenção de conservação dos esgrafitos na Igreja de nossa Senhora da Conceição, antiga Sé de Elvas, permitiu-me contextualizar, através da apresentação do estudo de caso, alguns dos princípios e recomendações aqui expressos.

Em Elvas, com excepção do friso, toda a decoração da abóbada esgrafitada estava coberta com várias camadas de cal e pontualmente de tinta, embora fossem perceptíveis, os motivos florais e a forma de concha, no topo da abóbada. A remoção da cal tornava-se necessária não só para o estudo dos esgrafitos como para a apresentação e musealização da sala.

Durante a operação de remoção verificou-se que alguns detalhes dos códigos de apresentação não tinham qualquer leitura, pois tinham sido anulados com a espessura das camadas de pintura. São exemplo as molduras dos caixotões decoradas com esgrafitos que simulavam alvenaria.

Constatou-se, também, que apresentação dos esgrafitos tinha outros princípios cromáticos. Tanto as molduras dos caixotões como as cimalhas do friso não eram pintados de branco mas mantinham a coloração de uma argamassa, não pigmentada, cuja coloração de areia é conseguida pela selecção dos agregados. Num dos topos da abóbada a tarefa de remover a cal pôs a descoberto um brasão em esgrafito, aparentemente monocromático, executado com uma só camada de argamassa, onde eram visíveis as linhas de corte da argamassa, realizadas com grande destreza manual e aptidão técnica.

Embora o objectivo desta intervenção fosse expor os esgrafitos, na sua forma e aparência original, não foi possível aplicar este conceito a toda a extensão da decoração. De facto, alguns factores introduziam problemas de leitura. Entre estes, salientam-se a existência de grandes lacunas, preenchidas muitas vezes com argamassas de cimento e a dureza das películas de cal e de cimento, que cobriam alguns dos esgrafitos com uma película esbranquiçada ou acinzentada que alterava completamente toda a intenção cromática e expressiva da decoração, cuja acção mecânica de remoção introduziria perdas significativas da autenticidade material da superfície.

Assim, optou-se por deixar os motivos decorativos do friso e das flores na abóbada visíveis na sua aparência original — cor de areia e branco — fazendo pequenos retoques

e reintegrações cromáticas nas lacunas para que estas não interferissem na leitura decorativa da sala. Quanto ao motivo do brasão, decidiu-se cobri-lo novamente com cal, depois de ter sido realizado o levantamento gráfico e o registo fotográfico, devido às grandes lacunas que apresentava e que não permitiam a leitura do motivo decorativo que, por sua vez, já apresentava pouca expressividade. As molduras e os trabalhos de modelação foram também caiados, com cal parda, para permitir uma leitura mais clara dos motivos esgrafitados. Foi deixada uma pequena área, que estava em melhor estado de conservação, com o seu jogo cromático original, permitindo não só uma leitura como uma interpretação mais consentânea a com a intencionalidade do artista que a executou. Em Évora, a intervenção pioneira realizada durante o ano de 1999/2000, nos esgrafitos na

Rua 5 de Outubro260, optou pela reintegração das lacunas. Atrás de inúmeras camadas

de cal e até de tinta estava uma fachada, decorada em pintura fingindo azulejo, com o cunhal e o friso junto ao beirado decorado com esgrafitos. A decoração, essencialmente de padrão repetido, tinha uma coerência característica do século XIX, mas apresentava algumas lacunas que foram reintegradas ou refeitas, utilizando técnicas e materiais tradicionais, com a preocupação de não criar um falso histórico.

Reconstruir e retocar as lacunas, com o objectivo de restabelecer o aspecto original do esgrafito tem tido sucesso como princípio de conservação aceite nas várias teorias de intervenção no património. Esta opção pode, porém, contrariar o conceito conservacionista de “intervenção mínima” que defende a aplicação de um reboco, garantindo a sua função protectora, mas sem refazer a sua decoração.

Na praxis da conservação e restauro da pintura foram dedicados muitos estudos à apresentação da pintura degradada, na forma como os problemas estéticos, nomeadamente as lacunas, são resolvidos. Embora os princípios teóricos possam variar duma posição minimalista para o extremo oposto ou vice-versa, as soluções estéticas para resolver os problemas das lacunas na pintura estão globalmente definidas e muito experimentadas.

A transposição destas soluções para os esgrafitos não é todavia simples. A grande diferença é a tridimensionalidade do esgrafito, porque a decoração ultrapassa a superfície “pintada”. No esgrafito, a argamassa de fundo é a superfície mais importante. É aquela que foi cortada, segundo as linhas do desenho e esgravatada em certas áreas. Sendo o esgrafito uma técnica decorativa, com características do baixo-relevo, mas que mantém as qualidades intrínsecas de uma superfície pintada, talvez necessite do contributo desta duas áreas do conhecimento para a determinação de soluções e técnicas de conservação e restauro.