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O processo da descentralização e os arranjos institucionais num Estado federado

3. CONDICIONANTES À FORMAÇÃO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS

3.2. O processo da descentralização e os arranjos institucionais num Estado federado

A descentralização política e administrativa tornou-se foco principal com a Constituição Federal de 88 e caracterizou como um resultado em reforço da federação. Para

alguns, ela significa democratização do poder político com a maior participação social nos processos inseridos na federação. Para outros, ela resulta na diminuição do tamanho e da abrangência do aparelho do Estado e a possível diminuição dos déficits destes. Já alguns abordam essa temática com a expectativa de que a descentralização melhore a administração pública devido à proximidade do poder decisório ao povo. O fato é que a descentralização é uma estratégia política, de racionalidade técnica e administrativa, assim como uma estratégia de democratização social.

Abrucio (2006) define a descentralização como um processo claramente político que resulta da transferência ou conquista efetiva de poder central a governos subnacionais. A transferência de poder nas esferas subnacionais pode ocorrer em quatro dimensões, segundo o autor: (1) a política – quando adquirem autonomia para escolher governantes e legisladores; (2) a administrativa – quando passam a comandar diretamente sua administração; (3) a jurídica – para elaborar legislação referente às competências que lhes cabem; e (4) a tributária – para cuidar de sua estrutura tributária e financeira. Acrescenta-se a esse pensamento a dimensão territorial – quando a conjuntura tempo e espaço direcionam os processos gestores e regulam a forma de como os objetos se organizam no território.

Arretche (2010) salienta que a descentralização é um processo de reordenamento político e administrativo de vários tipos, tais como: a redistribuição de competências no interior de uma política específica; a afirmação de um grau de autonomia orçamentária e decisória dos governos subnacionais, principalmente, os municípios; e a transferência de atribuições dentro dos governos. De forma substancial, para Tobar (1991), os processos descentralizatórios estabelecem a transferência de autoridade no planejamento e na tomada de decisão do poder decisório nacional aos níveis subnacionais.

Apreende-se com essas explanações que a descentralização possui diferentes usos, tanto de seus conceitos, quanto da sua aplicabilidade. Entretanto, é unânime afirmar que ele veio em resposta ao centralismo autoritário do poder e que a mesma possui características comuns, como: o fortalecimento da esfera local; o caráter político da formação e a busca pela eficiência administrativa das ações; o papel central dos autores sociais envolvidos no processo; e os condicionantes territoriais que compõem esse espaço.

A difusão da descentralização e da federalização deu-se por fatores como: a expansão do fenômeno da globalização na fase da mundialização do capital; o enfraquecimento do poder regulatório dos Estados nacionais, que, sozinhos, não conseguem coordenar um país, devido à crises fiscais e aos instrumentos de intervenção; a emergência dos espaços econômicos regionais/locais que se conectam diretamente com a economia internacionalizada,

fora do controle dos Estados-nação; a nova ascensão do ideário liberal, responsável pela redução do papel do Estado na economia – aliada à crença de que, com a descentralização, aumentaria a eficiência do setor público como prestador de serviços à população; e a expansão do plano nacional gerando demandas por democracia nos planos subnacionais. (AFFONSO, 1995; ABRUCCIO, 2006).

Esse último ponto foi um dos fatores que influenciaram a redemocratização brasileira e a ideia, quase indissociável por muitos, da descentralização. Pois, no Brasil, inicialmente, descentralização virou sinônimo de democracia e de desenvolvimento. Não que a sua aplicabilidade não tenha rebatimento nessas duas dimensões, mas descentralização é um processo de alocação de poder e de responsabilidade, e só ocasionará esses rebatimentos a depender da forma em que ela seja adotada e das condições sociais, econômicas e políticas existentes em determinado espaço e tempo.

Dito isso, uma das grandes consequências da descentralização estabelecida na Constituição Federal de 88 foi a distribuição de recursos fiscais aos estados e, especialmente, aos municípios. No entanto, para isso, não houve um planejamento e uma coordenação de competências e funções a esses entes. Assim, os estados e municípios passaram a conviver com atribuições e responsabilidades contrários à sua capacidade de governo, ou melhor, eles não possuem estrutura suficiente para gerir os escassos recursos e melhorar a vida dos seus cidadãos.

No entanto, o aumento dos recursos transferidos para os governos subnacionais não foi acompanhado por uma clara redistribuição de funções, de modo que o governo federal continuou responsável, após a Constituição Federal de 1988, pela prestação da maior parte dos serviços públicos. Além disso, há, na legislação, as competências comuns entre as esferas governamentais, em que muitas das atribuições não são exclusivas de cada ente. A partir disso, cria-se um “jogo de empurra” entre as instâncias governamentais, quando os entes federativos não assumem as obrigações impostas constitucionalmente e atribuem às outras esferas o desenvolvimento de determinadas ações, sendo bastante perversos para o conjunto das políticas públicas.

Corroborando com isso, Arretche (2000) considera que essa descentralização fiscal não foi suficiente para aplicar os recursos na implementação de políticas públicas que deixaram de ser realizadas diretamente pelo Governo Federal. Ainda segundo a autora, para que assumam a responsabilidade sobre a prestação de políticas sociais, as escalas subnacionais precisam ser incentivadas, sendo:

“...esta decisão resultado de um cálculo no qual a natureza da política, o legado das políticas prévias, as regras constitucionais e a existência de uma estratégia eficientemente desenhada e implementa da por parte de um nível de governo são componentes decisivos”(ARRETCHE, 2000, p.53).

Desta forma, muita das vezes a União acaba sendo tutora do processo de descentralização frente aos entes subnacionais. Seja pela forma de manter o controle, ou porque ela não tem competência para assumir tudo e/ou pela incapacidade institucional e tributária dos outros entes – visto que a grande parte das transferências é tutelada – o governo central acaba motivando esse tipo de ação. O que resulta não em uma descentralização do poder, apenas em uma descentralização administrativa ou uma desconcentração, ou seja, ações em que há a delegação de competências e recursos, mas o processo decisório continua concentrado nas mãos da União.

No entanto, para Tobar (1991) esse processo de desconcentração pode ser um projeto pedagógico, não num sentindo de antagonizar as duas categorias, mas na intenção de criar condições para facilitar a descentralização. Segundo o autor, “a desconcentração seria, então, uma condição necessária, embora não suficiente, para atingir os níveis desejados de descentralização nas tomadas de decisões”. (TOBAR, 1991, p. 5)

Nesse sentido, a partir desse processo não estruturado do federalismo brasileiro, conflitos acabam surgindo entre os níveis de governo, sendo destacados três. O primeiro é a disputa verticalizada entre os entes, que tem dois vieses: a natureza defensiva da União, como descrita nos parágrafos anteriores; e o caráter predatório da ação por recursos das esferas estaduais e municipais. O segundo conflito é a horizontalidade das disputas, fazendo com o que as diferenças não se limitem às esferas de governo, mas aconteça dentro das próprias esferas, o que tem gerado as guerras fiscais, os ressentimentos regionais historicamente constituídos que permanecem latentes e a dificuldade de manter vínculos cooperativos entre eles. O terceiro é a generalização do conflito, que deixa de se ater a disputas fiscais e acabam alcançando outras dimensões, seja dentro do aparelho estatal, nos sistemas de prestação de serviços, nos sistemas de representação política, ou seja, acaba por dimensionar os demais conflitos de natureza política, institucional, territorial e social, extrapolando todos os níveis de governo (SILVA; COSTA, 1995).

Assim, o grande desafio é a equidade, a justa distribuição territorial de poder e de recursos entre as instâncias de governo, a fim de garantir que todas as esferas tenham independência e autonomias sem comprometer o caráter universal da nação. Para isso, um dos caminhos apontados é a construção de uma descentralização cooperada, na qual coexistam graus diversos de intervenção federal, autonomia nas decisões, capacidade de financiamento e

gasto por parte das unidades subnacionais e ações conjuntas entre esferas de governo, como pode ser visto nos consórcios públicos.

A cooperação nessa conjuntura está totalmente associada ao grau de autonomia de cada ente, ou seja, a capacidade de autogestão territorial garantida pela Constituição, além da existência da descentralização. Logo, a autonomia e a cooperação acabam sendo peças fundamentais para o êxito de qualquer arranjo federado num país como o Brasil, pois através delas podem-se criar mecanismos coordenados de equidade estrutural entre as partes, mantendo a coesão interna da federação.

Sendo que essa descentralização cooperada seja não somente ter competências e funções próprias e decisórias, mas também participar do processo de elaboração, decisão e execução de programas, normas mais gerais que, mais tarde, condicionarão a sua atuação, podendo reduzir as disparidade a quase nada (BORJA, 1984). Pois, se não for dessa forma, as instâncias envolvidas podem acordar a descentralização num aspecto e, ao mesmo tempo, a centralização em outro.

Entretanto, cabe considerar que a descentralização é um processo e não uma solução. A depender dos acordos e de cada estratégia descentralizadora, o conflito será posto de uma determinada maneira, porém, como já salientado, esse conflitos e o problema das disparidades são inerentes aos sistemas federativos. Logo, descentralizar é a construção de um processo, estando intrinsecamente interligado ao sistema político adotado pelo governo central.

Assim, todas essas relações existentes no federalismo brasileiro e a questão da descentralização e de como os entes federados se articulam servem de contexto para a realidade dos consórcios públicos no país, uma vez que esse processo de cooperação federativo foi fortificado com a Emenda Constitucional de 1998, e aprimorado com a Lei 11.107 de 2005, como descrito no capítulo 2.

Nesse mesmo trabalho, está apontada a fomentação do governo federal à criação dessas entidades. Essa motivação deu-se através da Secretária de Relações Institucionais – SRI com a intenção de disponibilizar instrumentos adequados de articulação de políticas públicas de responsabilidade compartilhada, de forma a possibilitar um planejamento de médio e longo prazo para a gestão intergovernamental; atender a demanda proveniente das entidades municipalistas; e suprir a fragilidade jurídica dos arranjos legais e institucionais existentes de cooperação intergovernamental (RAVELLI, 2010).

Na busca de descentralizar as políticas públicas, a União criou incentivos aos consorciamentos, como: a ampliação dos valores referenciais para as modalidades de licitação, que são considerados em dobro ou em triplo para os consórcios públicos, a depender

do número de entes consorciados – Art. 17 da Lei 11.107, de 2005; a possibilidade de redução dos limites mínimos da contrapartida exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal para as transferências voluntárias da União, quando os recursos forem destinados a consórcios públicos ou à execução de ações desenvolvidas por esses consórcios; e a abertura de crédito diretamente para os consórcios públicos no financiamento de obras e serviços estruturantes do território do consórcio (RAVELLI, 2010).

Além disso, a SRI criou cartilhas informativas sobre esse arranjo cooperativo, descrevendo sua importância, a implicação e aplicabilidade dessa instituição, além do passo a passo para a construção de um consórcio público. E a partir disso, a Secretária realizou cursos e palestras nos estados brasileiros, no sentido de divulgar essa nova forma de cooperação e fomentar a sua criação. Assim, em 2007, a SRI realizou o primeiro encontro com o governo da Bahia e suas secretarias, a fim de estimular esse instrumento de cooperação federativa no estado.