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2.2 O Profissionalismo em Contexto Estatal

2.2.2 O Profissionalismo na ótica do Serviço Público

A noção de profissionalismo, enfatizada na seção anterior, reforça o fato de que nem toda ocupação chega a constituir uma profissão, se considerado o seu significado estrito. Nesse sentido, vale lembrar que o vínculo que une a noção de profissão aos seguintes requisitos: competência técnica adquirida mediante especialização formal e acúmulo de um variado repertório de experiências (expertise); compromisso com o interesse público no exercício de sua função social; e a auto-regulação desse exercício por meio de associações de classe e de um código de ética que conforma a conduta profissional dos associados (MACHADO, 2003).

Não obstante esteja o profissionalismo atrelado à noção de know how no âmbito de uma determinada competência, também traz implícita a mobilização do indivíduo no sentido de comprometê-lo com um projeto coletivo fundamentado em princípios e valores socialmente pactuados (MACHADO, 2003).

No entanto, adverte Machado (2003) que, princípios e valores não impedem que uma profissão se desvie do ideal de profissionalismo que se pretende ter consolidado. Ainda que enderecem ao amadorismo, à desonestidade, ou ao corporativismo, quando o compromisso com a categoria suplanta o compromisso com o interesse público, “tais possibilidades de desvio, no entanto, devem apenas servir de alerta, nem de longe contaminando a caracterização pretendida do exercício profissional” (MACHADO, 2003, p. 6).

Reforça-se, com isso, o comportamento ético associado à prática de uma profissão. Pautando-se em princípios altruístas, deve o profissional pautar sua ação em um repertório de valores socialmente acordados, sobretudo no serviço público, no qual, via de regra, o interesse público prevalece sobre quaisquer outros interesses (MACHADO, 2003). Isso remete à

essencialidade da ética no trato com a coisa pública, e à institucionalização de um código de ética12 que instrumentalize a preservação dos valores e princípios da Administração, enquanto requisito para o desenvolvimento econômico e social de um país (CAIDEN; VALDÉS, 2012). Segundo Caiden e Valdés (2012, p. 141), a efetividade do Estado requer o

robustecimento das instituições públicas na elaboração de restrições efetivas a ações arbitrárias, no combate à corrupção, na promoção de incentivos aos servidores públicos para melhor desempenho, e tornar o Estado mais afeito às necessidades do povo, aberto à participação pública, descentralizando poder e recursos, e fortalecendo o profissionalismo no serviço público.

As expectativas em torno dos servidores públicos de carreira13 revelam uma forte demanda pela profissionalização do serviço público, haja vista que a proficiência em um ofício advém de múltiplos predicados que transcendem aos requisitos associados a uma ocupação comum. Espera-se, entre outras coisas, que o servidor seja agente de mudanças no plano social e que, portanto, planejem, formulem e implementem políticas públicas, eduquem, socializem, intervenham, mas, para tanto, há que se ter, no serviço público, uma infraestrutura profissional condizente (CAIDEN; VALDÉS, 2012). Para Caiden e Valdés (2012, p. 143),

O profissionalismo no serviço público não é apenas mais uma tarefa ou ocupação. Representa uma vocação desafiadora envolvendo o cometimento de servir ao público, promovendo seu interesse e evitando tentações de colocar-se antes de seus deveres públicos, obrigações e responsabilidades. Isso compreende que as ações, ou os comportamentos do profissional, estejam sempre abertas ao escrutínio público, e sujeitas à avaliação pública até mesmo quanto a omissões em agir. (...) Não há limites temporais; o apelo é constante, até mesmo no período de férias. Ou seja, o público é chefe exigente e não especialmente empregador-compensador.

Espera-se do servidor que se comprometa com a essa ‘vocação desafiadora’, mas não é isso que se observa na prática, seja pelo excesso de segurança de que gozam os servidores, ou pelo pouco incentivo que recebem no sentido de aprimorarem próprio desempenho. Percebe- se no servidor forte tendência à acomodação, assim como à priorização de regras em detrimento do bem público, razão pela qual deve a Administração recorrer a controles externos e a instrumentos que possibilitem a mensuração de desempenho (CAIDEN; VALDÉS, 2012).

12

O Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994, que “aprova o Código de Ética profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal”, estabelece as regras deontológicas que regem os principais deveres do Servidor Público, as vedações a que estão sujeitos, e estabelece a necessidade de criação de Comissão de Ética, em todos os órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, indireta, autárquica e fundacional, ou em qualquer órgão ou entidade que exerça atribuições delegadas pelo poder público (CAIDEN; VALDÉS, 2012, p. 141).

13

A Lei nº 8.112, de 11/12/90, “que dispõe sobre o regime jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais,” com as alterações advindas com a Lei nº 9.527, de 10.12.97, estabelece o regime disciplinar dos servidores, enuncia deveres (art. 116); proibições (art. 117); responsabilidades (arts. 121 a 126) e penalidades a que estão sujeitos os servidores, na esfera administrativa (art. 127 a 142) (CAIDEN; VALDÉS, 2012, p. 141).

Essa visão oferece um contraponto ao entendimento de Dória (1994), para quem a conduta do servidor é exemplo para toda a sociedade. Práticas toleradas no Serviço Público rapidamente se replicam no setor privado. Portanto, o exercício do papel de agente de mudança que do servidor espera a sociedade, remete ao compromisso dos servidores de carreira com uma conduta rigorosamente pautada na observância dos princípios e valores da Administração.

Demandas conflitantes, valores concorrentes, arranjos institucionais, pressão dos pares e cultura organizacional são fatores que, entre outros, exercem mais ou menos influência na conduta profissional do servidor, conforme o nível de consciência e de controle a que esteja sujeito. Há, portanto, diversas variáveis a considerar quando a eficiência do setor público é colocada em discussão (CAIDEN; VALDÉS, 2012).

A exemplo de outras categorias profissionais, as profissões do serviço público são conformadas a um sistema do mérito que, ao tempo em que restringe o acesso ao cargo público, também impõe conduções para a promoção do servidor na respectiva carreira, como estratégia para impessoalizar o processo de recrutamento e seleção de servidores, estimular a auto-formação e, com isso, melhorar as condições de trabalho e a qualidade do Serviço Público. De acordo com Caiden e Valdés (2012, p. 149),

a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público entre os talentosos, e a progressão é também fundada entre os que se destacam. As mais altas posições são ocupadas pelos profissionais mais capazes, escolhidos por critérios que incluem competência, conhecimento, inovação e contribuição à profissão.

A compreensão de que a flexibilidade e a autonomia conquistadas por uma profissão decorrem dos padrões de desempenho apresentado por seus integrantes, faz com que estes se interessem em alcançar padrões mais elevados de qualidade e produtividade. Não obstante, as condições de autonomia e independência que, em geral, se verificam nas profissões tradicionais, não se replicam nas profissões da área pública, tendo em vista a subordinação política a que se encontra sujeita a burocracia estatal (CAIDEN; VALDÉS, 2012).

Contemporânea à emergência do capitalismo no século XIX, a burocracia surgiu da necessidade de distinguir o público do privado e a política da administração, para, assim, livrar o Estado de ameaças como a corrupção, o nepotismo e o empreguismo.

Ancorada na ideia de profissionalismo implícita na dominação racional-legal weberiana, foi a moderna administração burocrática implantada no Brasil no início do século passado. Apoiando-se em elementos como ”o saber, a competência, a integridade, a impersonalidade, a independência e certa ética do bem comum ou do interesse geral”

(CHANLAT, 2002), defende a burocracia um Serviço Público racional, profissionalizado e imune a práticas patrimonialistas que, ainda hoje, prevalecem no cotidiano das distintas esferas da Administração (VIEIRA, 2008).

A partir desse ponto, segue o estudo pela análise dos mecanismos estruturantes empregados na implantação e modernização da burocracia brasileria ao longo das últimas décadas. Busca-se, com, isso, a descoberta de elementos que favoreçam a compreensão dos arranjos organizacionais que, direta ou indiretamente, exercem influência sobre o processo de profissionalização do Serviço Público.