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2.1 A Noção de Carreira em Weber

2.1.2 O Tipo-ideal de Burocracia para Weber

Comumente associada a toda a sorte de transtornos decorrentes do excessivo formalismo presente nas relações que o Estado mantem com a sociedade, não é este o conceito de burocracia consagrado pela literatura. À guisa de esclarecer o polêmico conceito, em breves palavras resume Motta (2008, p. 29-30) a burocracia weberiana: “Ao aparato administrativo que sustenta a dominação legal ou racional-legal, dá-se o nome de burocracia. Crentes nas leis e na ordem legal e tidos como burocratas, funcionários que o integram têm posições e relações definidas por regras impessoais”.

Nesse entendimento, sustenta-se a visão de Freund (2006), que vê na organização fortemente estruturada do Estado moderno o locus ideal para o desenvolvimento da atividade

institucional. É intervindo nos mais diversos domínios que, segundo o autor, o Estado garante continuidade à atividade política e, no interesse da sociedade, sujeita a vontade de seus membros a regulamentos racionais explícitos que lhes orienta e disciplina a ação.

Partindo da premissa de que, em contexto estatal, a dominação legal se apropria de novas racionalidades que legitimam o exercício do poder do Estado sobre indivíduos e grupos socialmente organizados, Weber (1999) estabelecera um novo paradigma para a administração pública que coloca em relevo os aspectos presentes na construção do funcionalismo moderno, quais sejam: (i) competências oficiais fixas, em que pese a observância a normas, a divisão de responsabilidades e a limitação racional da autoridade; (ii) hierarquia de cargos e da seqüencia de instâncias, que juntos disciplinam as relações de mando, subordinação e recurso mantidas entre dirigentes e funcionários; (iii) documentos, objetos e quadro de funcionários que juntos dão forma ao escritório, contexto em que se exercem as atividades profissionais e que, portanto não deve ser confundido com o domicílio, o que deixa clara a separação entre patrimônio individual e institucional, enquanto meio oficial; (iv) atividade oficial especializada que, via de regra, requer do funcionário instrução condizente; (v) emprego da plena força de trabalho do funcionário, que prevê o exercício do cargo como atividade principal ou exclusiva; (vi) regras que orientam a administração dos funcionários devem ser objeto de aprendizado, sendo seu conhecimento apropriado pelo funcionário (WEBER, 1999).

No que se refere à hierarquia de cargos, merecem destaque as características que conferem forma e conteúdo à noção de cargo, tal como Weber (1999) a define:

obrigações objetivas; despersonalizado; define-se pelas tarefas a serem desempenhadas; nomeação numa hierarquia rigorosa de cargos (rede escalar); competências funcionais fixas; cargo como profissão principal; existência de carreira; desempenho atribuído ao cargo e à ideia de um ethos próprio. Quanto ao seu ocupante: vínculo formal com a administração; qualificação certificada e remunerada com salários fixos e em dinheiro; recebimento de pensões; impossibilidade de apropriação dos cargos; submissão à disciplina e ao controle (CÂMARA, 2009, p. 641).

Para Câmara (2009, p. 641), se, por um lado, estas características decorrem do reconhecimento da centralidade do cargo para o exercício da dominação legal, por outro concorrem para a “composição do tipo ideal da dominação burocrática”, a partir do qual se configura uma relação de trabalho portadora de ethos próprio, que assegura, não apenas a obediência do quadro administrativo, como continuidade ao modo burocrático de organização no contexto da Administração Pública.

Conferindo ênfase às racionalidades observadas no contexto estruturado do Estado, esclarece Saraiva (2002, p. 188-189) que,

enquanto forma de dominação, a burocracia se sustenta sobre o conhecimento técnico, que além de lhe conferir caráter racional, a transforma em instrumento capaz de assegurar alta eficiência administrativa. Isso pressupõe certa racionalidade impessoal que, guiada por regras formais que padronizam e conferem igualdade no tratamento dos casos, define com precisão as relações de mando e subordinação, mediante a distribuição das atividades a serem executadas tendo em vista os fins a que se visa.

Observe-se que esta forma de funcionamento remete a questões que, no contexto do presente estudo, merecem destaque, já que emprestam fundamento aos princípios que orientam a ação no campo da administração, quais sejam: profissionalização, impessoalidade, legalidade, formalismo e universalismo de procedimentos (WEBER, 1999). Nesse sentido, vale destacar o entendimento de Câmara (2009, p. 640) de que

da construção ideal típica do autor emerge seu entendimento de cargo público e o significado do mesmo no contexto mais amplo do Estado moderno, especificamente por meio da atividade pública organizada e exercida segundo critérios racionais, técnicos e legais.

Em primeiro plano, posiciona-se a questão que propõe o entendimento do cargo como profissão, entendimento este manifesto tanto na “exigência de uma formação fixamente prescrita, que na maioria dos casos requer o emprego de plena força de trabalho por um período prolongado, e em exames específicos prescritos, de forma geral, como pressupostos da nomeação” (WEBER, 1999, p. 200), como no caráter de dever que ao cargo é atribuído.

Conforme anteriormente descritas, racionalidades próprias da administração burocrática moderna que remetem à observância de regras exaustivas de conteúdos relativamente estáveis, cuja apropriação requer a submissão do funcionário a um rígido e continuado programa de treinamento e a exames especiais que o habilitam ao exercício profissional de um dado cargo público pelo qual é remunerado (WEBER, 2002).

Já no que concerne à autoridade conferida ao funcionário, sustenta o autor estar esta amparada na mesma base legal que a limita. Ressalte-se que é na perspectiva de sua regulação, criação e distribuição, que a autoridade tem seu alcance estendido à esfera política, seja pelas prerrogativas de que faz jus em virtude do cargo, seja pela forma em que é este distribuído (CÂMARA, 2009, p.641-642).

Considerando que é por meio das instituições que a burocracia exerce dominação sobre a coletividade, sustenta Weber (2002) seu posicionamento quanto à necessidade de se restringir o acesso ao emprego público a indivíduos que, de fato, reúnam as qualificações

profissionais previstas em regulamento, o que torna prescritiva a adoção de critérios técnicos e impessoais ao recrutamento e seleção de candidatos.

Há, no entanto, outra questão a considerar: o condicionamento do acesso ao cargo à nomeação por instância superior que, segundo Weber (1999), favorece a subordinação do funcionário a um sistema disciplinar baseado nos princípios da hierarquia dos cargos e níveis de autoridade. Desses princípios emergem relações de poder que, nos atributos do cargo, se consolidam segundo uma lógica impessoal de mando e subordinação que, per si, justifica a essencialidade da supervisão dos postos inferiores pelos superiores (WEBER, 2002).

Em troca de uma existência segura e da possibilidade de desfrutar de uma elevada estima social estamental, condiciona-se a ocupação do cargo à aceitação pelo candidato de uma espécie de pacto de fidelidade para com aquele e para com a finalidade objetiva e impessoal que lhe justificara a criação, bem como da impossibilidade de acesso aos meios (WEBER, 1999). No tocante a essa pretensa segurança, adquire relevância a proposta de vitaliciedade do cargo7 que, segundo enfatiza Weber (1999), não configura direito de posse sobre o cargo, mas, tão somente, um mecanismo que ao funcionário concede certas garantias contra arbitrariedades que venham a culminar com sua transferência, ou mesmo, seu afastamento do cargo. Garantida ao funcionário relativa estabilidade no cargo, outros benefícios lhe foram dados por acrécimo.

Pelos serviços prestados à administração, são os funcionários remunerados em bases fixas8, cuja escala se conforma à responsabilidade afeta às posições que ocupam na “ordem hierárquica das autoridades” (WEBER, 1999, p. 204), bem como assistidos em sua velhice com uma pensão vitalícia para compensar os anos que, por opção ou vocação, tenham aqueles dedicado ao Estado. Além disso, lhes é facultado, em sua trajetória profissional na Administração, percorrer uma carreira dos cargos inferiores aos superiores na hierarquia das autoridades.

Muito embora os escritos weberianos não tragam explícito um conceito de carreira, assinala Weber (1999) que, estimulados pela perspectiva de ascenção nas respectivas carreiras, os funcionários nelas progridem em decorrência do mérito (aqui entendido como desempenho), do tempo de serviço ou de ambos, critérios cuja objetividade lhes liberta do arbítrio de seus superiores, ainda que a estes permaneçam submissos em termos disciplinares.

7

Avitaliciedade do cargo é adotada como regra mesmo em contextos em que, oportunamente, demissões ou reconfirmações periódicas possam vir a acontecer (WEBER, 1999, p. 204).

8

“A segurança relativamente alta da subsistência do funcionário e também a recompensa que representa a estima social fazem com que [...] os cargos públicos sejam muito concorridos, o que permite salários relativamente baixos na maioria dos cargos” (WEBER, 1999, p. 204).

Nesse sentido, pode-se afirmar que, se Weber não chegou a definir carreira, ao menos lhe preparou as bases para a sua organização ao delinear os critérios que objetivamente oportunizariam ao funcionário a ascensão na estrutura em que os quadros se distribuem (WEBER, 1999). Nessa perspectiva, fica clara a vinculação do mérito com o processo de avaliação de desempenho quando, acerca das condições previstas para a referida ascensão e a despeito de um dileto mecanicismo temporal da parte dos funcionários, aponta o autor uma tendência à opção pela objetividade meritocrática:

(...) Eventualmente, num sistema muito desenvolvido de exames específicos, toma- se em consideração a nota deste exame, a qual constitui, de fato, em alguns lugares, um character indelebilis, vitaliciamente vigente, do funcionário. Em conexão com o pretendido fortalecimento do direito ao cargo e com a tendência crescente à organização estamental e segurança econômica dos funcionários, este desenvolvimento tende a tratar os cargos como “prebendas” dos qualificados por diplomas (WEBER, 1999, p. 204).

Dos argumentos expostos, procurou-se extrair os elementos estruturantes presentes na burocracia weberiana que ofereçam subsídio à contrução de uma noção de carreira conformada ao ideário de Max Weber. Partindo da premissa que a idéia de carreira somente encontra sentido em contextos burocráticos, merecem destaque os seguintes aspectos: (i) estrutura de cargos hierarquicamente organizada; (ii) atribuições, responsabilidades e competências do cargo precisamente definidas; (iii) requisitos para um desempenho eficiente da função inerente ao cargo; (iv) perspectiva de progressão na hierarquia definida, segundo critérios de mérito e antiguidade; e (v) remuneração progressiva conformada à ascenção na cadeia hierárquica.

Sintonizado com os aspectos acima endereçados, Santos (1996, p. 10) define carreira como “o conjunto de classes da mesma natureza de trabalho, escalonadas segundo o nível de complexidade e o grau de responsabilidade dos cargos que as compõe, dentro do qual se dá o desenvolvimenteo profissional do servidor”. Atribuindo ao conceito a qualidade de construto, o autor salienta a vinculação deste com outros conceitos de igual natureza, como os de “cargo público, plano de carreira, promoção e desenvolvimento” (SANTOS, 1996, p.10).

Considerando que o conceito de carreira apresentado faz menção às classes, conceito igualmente relevante no que tange à organização de carreiras, conveniente se mostra definí-lo neste momento:

Grupo de cargos (...) com suficiente semelhança quanto às tarefas, responsabilidades e autoridade respectivas, de modo que o mesmo título descritivo possa ser convenientemente usado para designar cada cargo participante da classe, que os mesmo requisitos de educação, experiência, capacidade, conhecimentos, proficiência, habilidade e outras qualificações devam ser exigidos dos ocupantes, que se usem os mesmo testes de aptidão para selecionar os servidores qualificados, e

que a mesma faixa de salário possa ser aplicada, com justiça, desde que sob condições de emprego absoluta, ou substancialmente idênticas. (BARUCK, pp. 76- 77) apud SANTOS (1996, p. 10).

É nas classes de uma carreira que progride o servidor em uma ‘tabela’ que, não apenas conforma a remuneração de seus integrantes, mas na qual se graduam as atribuições em termos de complexidade e responsabilidade, tendo em vista a experiência que, ao longo dos anos, supõe-se ter acumulado o servidor em sua trajetória profissional.

A ideia de uma trajetória profissional para o servidor remete, tanto ao o entendimento do cargo como profissão, como ao princípio da profissionalização que, entre outros, orienta a ação administrativa (WEBER, 1999), o que sugere a investigação de como o conceito de profissionalismo, trazido pela Sociologia das Profissões de Elliot Freidson, se aplica a contextos burocráticos institucionais.