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Ao pensar o protagonismo no processo de resistência é importante pensar em cada sujeito envolvido. Por vezes, o processo é demorado até as pessoas se sentirem parte dele, pois elas têm a compreensão que são “os de fora”, referindo-se ao movimento social, que acabam lutando e buscando seus direitos. Nesse sentido, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), tem um importante papel a cumprir no sentido de fomentar a participação dos atingidos no processo de discussão e possível consolidação das barragens. Desde o início, mesmo com resistência, as pessoas situadas às margens dos rios e das decisões, necessitam dar-se conta que o seu envolvimento é importante uma vez que serão as vozes que ecoam no processo de bravura e resistência.

Desde a sua origem e posterior consolidação, o MAB luta pela implementação de uma política nacional, que reconheça quem é o atingido/a por barragem. Nesse cenário, o MAB tem concentrado forças para um estudo aprofundando acerca da Violação dos Direitos Humanos no processo de construção das barragens no Brasil. Nesse estudo, realizado por uma comissão ampla, constatou-se que um conjunto de 16 direitos humanos foram violados sistematicamente. Segundo ANAB (2013), entre os principais fatores apontados pelo estudo que causam as violações de direitos humanos na implantação de barragens estão: a

precariedade e insuficiência dos estudos ambientais realizados pelos governos federal e estaduais e a definição restritiva e limitada dos conceitos de atingido adotado pelas empresas.

Figura 4 – Emblema do MAB

Fonte: Site do MAB

O emblema, símbolo e marca presente de modo especial nas bandeiras (mas também nas camisetas, bonés, material impresso, site) do Movimento dos Atingidos por Barragens traz todo um simbolismo da luta. A torre faz referência à implantação das hidrelétricas, que em função da crucificação de uma pessoa, remete às pessoas que são obrigadas a sair do seu território onde são residentes há muitas gerações, tendo criado vínculos e raízes.

A presença de uma pessoa crucificada denota também a identidade cristã da população, bem como a grande influência de membros da Igreja Católica alinhados com a Teologia da Libertação no processo de organização dos atingidos. Na torre ainda vê-se uma enxada e uma foice, que simbolizam o trabalho na agricultura familiar projeto defendido pelo MAB. (BENINCÁ, 2011, p. 96).

As cores escolhidas também possuem uma relevância no modo de expressar. As águas límpidas e cristalinas são aquelas que acabam barradas nas grandes obras de barragens causando inúmeros impactos e danos. As cores estampadas na bandeira trazem implicitamente a conjugação de diferentes ideias: de paz (branca), de preservação ambiental (verde e azul); de morte (preta); de luta na perspectiva socialista (vermelha). Os elementos simbólicos constituem um conjunto de aspectos simbólicos os quais constituem o movimento em si. Aliás, movimento remete as pessoas que não ficam indiferentes com os projetos, e por isso, desencadeiam ações concretas que mobilizem o conjunto da sociedade envolvida direta ou indiretamente. Assim, a compreensão de atingido acaba resultando no processo de envolvimento de discussão dos projetos de hidrelétricas. O adjetivo atingido pode ser

transformado em verbo atingir no aspecto de lutar pela cidadania de indivíduos quando abandonam sua situação passiva e avançam na condição de sujeitos da história.

Benincá (2011, p. 100) sintetiza os principais objetivos do Movimento dos Atingidos Barragens:

Resistir contra a construção de barragens que provocam danos sociais e ambientais; lutar para que nenhuma barragem seja construída sem acordo com a população; defender a permanência do povo na terra; reivindicar garantia de justa indenização ou reassentamento aos atingidos; proporcionar formação aos integrantes do Movimento; ampliar o número de militantes; discutir e propor um novo projeto energético para o país que garanta, entre outros itens, utilização de fontes alternativas de geração à energia para todos, com tarifas populares para os consumidores familiares.

Com o propósito de perceber elementos do MAB em Alecrim, em meados de novembro de 2016 contatamos Joana Maria que se dispôs a ser nossa entrevistada. Joana Maria, pescadora, pequena agricultora, mãe de dois filhos, moradora da divisa entre Brasil e Argentina foi uma das escolhidas no processo de resistência da barragem Panambi, afim de expor, por meio de conversas, parte de sua trajetória de vida. Consciente de suas condições de visão de mundo, acesso e conexão a era digital, se mostrou ser uma mulher em busca de uma sociedade mais humana, pois tem no seu espírito uma fibra, um entusiasmo contagiante que não mede esforços para assumir tarefas, representar o movimento social, em atividades de mobilização, articulação. Assim, podemos considerar na Joana Maria uma atingida que percebeu o protagonismo necessário para resistir no seu lugar enquanto defensora do território como espaço vital.

A partir de uma relação de confiança e de amorosidade como Freire apresenta nas suas obras, foi se estabelecendo ao longo das conversas, diferentes disposições de um ser humano que evidencia seu querer ser uma resistente no seu lugar. Destaca-se aqui que o aceite em falar sobre o processo de resistência de uma barragem já é uma conquista, pois à medida que se tem um contato e uma pequena relação de confiança é necessário diferenciar o papel do pesquisador, o qual necessita uma relação de amizade, mas precisa manter certa distância em relação à identidade e às questões individuais.

O sociólogo não faz uma obra especificamente sociológica ao se interessar pelos objetos, obras ou pessoas, ou pelas ‘condições sociais de produção’; ele o faz descrevendo a forma como as situações, investem seus momentos para garantir sua relação com o mundo. Em outros termos, o sociólogo não deve escolher seus ‘objetos’ (em todos os sentidos do termo): tem de se deixar guiar pelos deslocamentos dos atores do mundo em que habitam. (LAHIRE, 2004, p. 24). Ao fazer a escolha por seu objeto de análise, o sociólogo sente a necessidade de manter uma coerência em compreender os destaques das entrevistas, submeter as

interpretações sociológicas aos grupos e atores, pois, segundo Bernard Lahire (2004) são incitados a interpretar as análises dos sociólogos e a reagir a elas. Dessa maneira, a interpretação das entrevistas analisa as disposições do entrevistado, interpretação que é uma realidade reconstruída por um processo de socialização.

O ser indagado/entrevistado é aceitar o convite de falar, dar abertura, estabelecer uma relação de confiança, o que pode ser compreendido como um “jogo” de linguagem. Joana Maria, como uma pessoa disponível, aberta e muito sensível ao desejo de atender os convites, dispôs-se a falar e colaborar desde o início do primeiro contato em meados de novembro de 2016.

Joana Maria e seu esposo Leonor, num período, tinham feito a experiência de residir na região metropolitana do RS, para trabalhar no assim conhecido setor calçadista, que por várias décadas (80 e 90 do século passado) demandava e disponibilizava muita mão de obra e que oferecia boas condições financeiras. A escolha feita de comum acordo entre o casal implicou várias renúncias, tais como, residir longe dos familiares, morar em cidades maiores, mas, a decisão estava tomada e assim ocorreu a mudança de região geográfica.

Morando numa região do Rio Grande do Sul, município de Alecrim, onde predomina o minifúndio, ou seja, pequenas áreas rurais, onde a economia é baseada na agricultura familiar de subsistência, procuram estabelecer um voo maior, assim como Joana Maria definiu o êxodo familiar. Mesmo conhecendo bem o lugar e a maioria das pessoas/famílias que ali residiam, o casal tomou o firme propósito de estabelecer uma nova forma de viver, que foi o de se mudar para a zona urbana numa região metropolitana que constitui diversos municípios num grande aglomerado de pessoas.

Alecrim sempre foi um local/município de pequenas propriedades que tem na sua produção principal uma agricultura de subsistência, ou seja, função primeira e principal é o produzir para o consumo próprio e o que excede se troca ou vende para outras famílias. Dessa forma, a promessa de trabalho farto e ganho de um bom salário foi pesando na decisão de se mudar para a cidade de Novo Hamburgo. Entretanto, o choque cultural e a situação real evidenciaram outra realidade da que era sonhada. Desde o pagamento de aluguel a cada mês, e a necessidade de comprar o mais básico, fez com tomassem a decisão de retornar para a terra natal. Segundo o jovem casal, foram três anos de um grande aprendizado, onde retornam para sua terra podendo usufruir e dar valor aquele pequeno imóvel rural onde costumam usar a máxima: “aqui tudo o que se planta aqui, se colhe”, como uma expressão que procura

valorizar o pequeno espaço geográfico que o casal constituiu, o qual oferece muitas opções de produção, consumo e até mesmo de venda.

Entre o tempo da partida, ou seja, da saída, o casal se deparou que o contexto alterou e continua a alterar muito o modo de vida na zona/meio rural. Assim como Joana Maria e Leonor, muitos outros casais e mesmo famílias rumaram para lugares onde havia promessa de trabalho farto e um ganho financeiro melhor do qual estavam envolvidos naquele contexto. Uma das diferenças do casal é que eles mantiveram sua pequena propriedade, não venderam, ou nas palavras de Joana Maria é “a sorte é que não nos desfizemos da nossa área”, para pessoas (empresários) que tinham e ainda têm muito interesse em se apropriar de pequenos lotes rurais assim como fizeram com inúmeras famílias do município de Alecrim. A impressão que Joana Maria perpassa nas entrevistas e ao conhecer os arredores é que existe um interesse em se apropriar das terras chegando a ser quase uma apropriação meio ilegítima que tem como foco acumular áreas, lotes rurais para produção de gado e mesmo para o cultivo de monoculturas com destaque à soja. Outra situação é que, depois de várias décadas de silêncio, volta à região a pauta das grandes barragens no Rio Uruguai, onde nossa entrevistada é atingida de diversas formas. Uma primeira, porque sua área/lote seria em boa parte alagada, afetando sua produção e seu deslocamento para outras regiões do seu município. Por ser pescadora e tirar do Rio boa parte da sua sobrevivência, seria este outro modo de atingida pela grande obra Panambi que assombra sua região.

No entanto, com o passar dos anos, Joana foi se inteirando, com auxílio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e junto à Igreja Católica, de sua capacidade de resistência e de não aceitação dessa grande obra. Foi aí que teve contato do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens – MAB. Hoje Joana Maria se considera uma componente, inclusive liderança do MAB, a qual tem no seu íntimo uma profunda relação com o lugar em que vive. Mesmo já tendo se mudado para outra região por um breve período, decidiu de comum acordo com seu esposo Leonor, o qual ela tem como um companheiro para todas as horas, retornar para terra natal para criarem seus dois filhos e ter um sossego maior priorizando uma vida mais tranquila no sentido de qualidade efetiva de vivência humana. Segundo Joana Maria, a tarefa atual de liderar o movimento social, implica em se envolver em tarefas que demandam sair de casa por vários dias, o que necessita da compreensão e da ajuda e do cuidado do esposo Leonor.

O lugar enquanto espaço de vinculação humana, de pertencimento, para Joana Maria tem uma relação muito forte. Tendo a oportunidade de residir na região metropolitana de

Porto Alegre, trabalhando no setor calçadista, não hesitou em retornar junto com sua família ao lugar com o qual ela estabelece um vínculo profundo. A resistência e a certeza de querer ficar no lugar estabelecido desde a sua infância criam a necessidade de Joana ter que lutar contra um grande projeto de barragens que ameaça sua região há várias décadas, mas que aumentou nesses últimos anos.

A ordem global é ‘desterritorializada’, no sentido de que separa o centro da ação e a sede da ação. Seu ‘espaço’, movediço e inconstante, é formado de pontos, cuja existência funcional é dependente de fatores externos. A ordem local, que ‘reterritorializa’, é a do espaço banal, espaço irredutível porque reúne numa mesma lógica interna todos os elementos: homens, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e formas geográficas. O cotidiano imediato, localmente vivido, traço de união de todos esses dados, e a garantia da comunicação. Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente. (SANTOS, 2012, p. 339).

Nas palavras de Joana Maria “aqui tudo o que você planta dá” se referindo a uma agricultura camponesa de subsistência com uma preocupação de plantar primeiro para alimentar o seu grupo familiar/comunitário. Com o auxílio de programas sociais, o movimento social com o qual está intimamente envolvida proporciona experiências dos agricultores/pescadores como de Joana aperfeiçoar a produção de alimentos. O objetivo dessa experiência é, além de fortalecer a organização dos camponeses, produzir alimentos saudáveis para a subsistência das famílias e geração de renda através da venda do excedente da produção. De acordo com Caldart (MAB, 2017), tecnólogo em agroecologia do MAB, a aplicação desta técnica evita o uso de insumos químicos, diversificando a produção e alcançando a sustentabilidade em pequenas propriedades rurais.

As famílias afirmam que continuaram investindo em suas propriedades e resistindo contra as barragens projetadas para o trecho internacional do Rio Uruguai. Queremos através da produção de alimentos mostrar que é possível contribuirmos para o desenvolvimento de nossa região sem barragens e melhorar a qualidade de vida das pessoas. (MAB, 2017, n.p.).

Joana Maria, enquanto cidadã, possui uma grande disposição de luta e persistência em querer continuar no lugar onde nasceu e cresceu, e hoje está como protagonista histórica e parte do processo de resistência. Mãe de família, pescadora, agricultora com auxílio do movimento social (que ela tem como uma grande família), Joana Maria se constitui aos poucos como uma liderança do movimento social, reconhecida não apenas por falas em diferentes lugares, mas por atitudes e gestos, encorajando outras pessoas a lhe ajudá-la na tarefa de multiplicar os/as resistentes. Assim, a força do lugar trabalhada por Santos (2012) se fortalece à medida que a presença dos pobres aumenta e enriquece a diversidade sócio espacial, que tanto se manifesta pela produção de materialidade em bairros, comunidades e sítios contrastantes, como pelas formas de trabalho e de vida.

Outra forma de pensar o lugar é se articular em torno das diferentes formas de vinculação enquanto uma relação cultural.

De que cultura estaremos falando? Da cultura de massas, que se alimenta das coisas, ou da cultura profunda, cultura popular, que se nutre dos homens? A cultura de massa, denominada cultura por ser hegemônica, é, frequentemente, um emoliente da consciência. O momento da consciência aparece, quando os indivíduos e os grupos se desfazem de um sistema de costumes, reconhecendo-os como um jogo ou uma limitação. (SANTOS, 2012, p. 326).

Para Santos (2012), a cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação. A cultura popular tem raízes na terra onde vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, por meio da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo. “Ter consciência pelo lugar se surperpõe à consciência no lugar. A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um aceno positivo, que vem do seu papel na produção da nova história” (SANTOS, 2012, p. 330).