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Ao percorrer as margens, as beiradas do rio e dialogar com as inúmeras pessoas, algumas questões foram recorrentes e aparecendo à medida que se percebia as angústias dos maiores afetados na projeção da barragem. Constantemente e diante das incertezas, os ribeirinhos perguntavam: a barragem vai sair ou não? Mesmo na incerteza, o ideal de fundo é “isso vai depender de nós”, pela capacidade de organização, resistência que fizermos frente às imposições previstas e costumeiras quando uma obra de grande porte é decidida como importante e necessária.

O projeto de construção das grandes barragens erroneamente sempre é acompanhado pela justificativa da necessidade da produção de energia, de que a produção hidrelétrica é limpa e renovável e que a execução de obras no leito de grandes rios é o que representa menos impacto ambiental, social, cultural, entre outros. Contudo, a experiência de obras retratadas em pesquisas científicas e relatos, com destaque a Dirceu Benincá na obra “Energia e Cidadania: a luta dos atingidos por barragens” evidencia situações de profundos impactos socioambientais, que afetam profundamente os lugares nos quais os projetos de construção são executados.

A história de Alecrim, no que se refere às lutas pelas barragens, está dividida em dois períodos. O primeiro, no final da década de 1970 durante o regime militar, onde praticamente

todas as organizações da região, com destaque a sindicatos de trabalhadores rurais (STR), se colocaram contra as barragens, organizando grandes atividades de resistência. Já em meados de 2009, com a questão do PAC – Programa de Aceleramento do Crescimento, grandes obras tornam-se o carro chefe desse modelo desenvolvimentista. Há, nesse segundo momento histórico, uma dificuldade de encontrar organizações, entidades que fossem contrárias ou mesmo críticas a essa obra que prometia desenvolvimento e progresso para a região. O discurso de lideranças políticas acabou influenciando a população regional a aderir a esse discurso. Algumas lideranças políticas venderam uma imagem muito positiva nos meios de comunicação social que era a “salvação” da região aderir a essa grande obra. No meio disso, a população ficou indecisa e sem saber ao certo o que fazer.

Em meio a isso, as Igrejas, com destaque a uma parcela da Católica (destaque a Padres e lideranças ligadas as Pastorais Sociais) e da Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, junto com o Movimento dos Atingidos por Barragens, intensificaram o trabalho de base no sentido de trazer informações mais precisas do que poderia ser esse grande projeto de Panambi. As barragens binacionais no rio Uruguai atravessam décadas e diferentes contextos. Propostas originalmente nos anos de 1970, durante o boom das hidrelétricas no Brasil, chegaram a ser consideradas, pelos proponentes, como uma alternativa frente à geração de energia nuclear, fortemente pautada naquele momento do país. Ancoradas sob o discurso da geração de energia “limpa” e do “desenvolvimento” à região, tais barragens mantiveram-se em perspectiva, gerando especulações e intranquilidade a muita gente, em especial, às comunidades e famílias atingidas.

Em contraposição, várias organizações e movimentos sociais, ambientais e religiosos criticam tais projetos, por considerá-los geradores de grandes e irreparáveis impactos, e apresentam como alternativa energética a utilização das fontes eólica, solar e biomassa. A hidroeletricidade é considerada um grande negócio às empresas que nela investem. No Brasil, por conta de seu grande potencial e das facilidades concedidas, este negócio é bastante atrativo e, com a privatização do setor elétrico brasileiro na década de 1990, tornou- se ainda mais cobiçado e lucrativo ao mundo empresarial. Por conta disso, o controle dos potenciais hidrelétricos no país passa ser um foco de permanentes disputas. A bacia do rio Uruguai tem ainda grande potencial de geração hidroelétrica, o que atrai a atenção do setor. De acordo com Cervinski (2011, p. 17), “a região é considerada estratégica na geração de eletricidade e se torna um destes territórios brasileiros em disputa, que o capital internacional quer controlar”.

A resistência à construção dessas barragens binacionais em diferentes períodos é protagonizada por organizações e segmentos sociais, ambientais e religiosos que lutam há décadas, como é o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Sob o argumento que o rio Uruguai já deu sua “cota de sacrifício”, crescem os movimentos em torno da defesa de um rio livre de barramentos no trecho que resta na fronteira entre Brasil e Argentina. Esse trecho do rio livre de barramentos justifica-se, dentre outras razões, pelo fato de estar localizado numa região de mata atlântica, bioma seriamente ameaçado no sul do país e importantíssimo à conservação da biodiversidade; pelo fato dos lagos das hidrelétricas também diminuírem a oxigenação das águas do rio, ao deixá-las mais lentas, podendo comprometer a reprodução natural de determinadas espécies, dentre elas o dourado como o peixe símbolo do rio Uruguai. Outra justificativa é a necessidade de preservação do Salto Yucumã que já sofre com o “efeito cascata” das barragens a montante, que fazem, por vezes, com que o mesmo permaneça submerso. Apesar dos significativos impactos previstos no projeto de Panambi no município de Alecrim, existem poucos estudos de ordem social e ambiental sobre esses projetos e questão, o que reforça a importância e a necessidade de refletir sobre esses empreendimentos econômicos.

Criado nacionalmente em 1991, o MAB originou-se de diferentes experiências de luta em distintos espaços territoriais. No sul do país, no início desse movimento, os atingidos por barragens se organizaram em duas frentes: uma em torno da usina de Itaipu, no rio Paraná, e a outra, nas hidrelétricas projetadas na bacia hidrográfica do rio Uruguai (FOSCHIERA, 2009). Desta última frente, surge a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB), organização pioneira específica dos atingidos por barragens, atuante inicialmente na região do Alto Uruguai, na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que posteriormente inspira comissões semelhantes em outras regiões. Entre 1979 e 1986 a CRAB evoluiu para a organização de cinco regionais: R1 – Itá e Machadinho; R2 – Itapiranga e Iraí; R3 – Lages e Vacaria; R4 – Chapecó e Chapecozinho e R5 – Garabi e Roncador. Em torno desta última, desenvolveu-se a organização da resistência às barragens binacionais na fronteira entre Brasil e Argentina nas décadas de 1980-90, onde está inserido o antigo projeto de Roncador hoje projeto chamado Panambi, no município de Alecrim.

O remodelado projeto de Roncador, agora Panambi, modifica a trajetória histórica de Alecrim. Em 2009/10 retoma-se a discussão e a proposta de concretização de um projeto “esquecido” ou “engavetado” por um período histórico. O discurso de progresso e desenvolvimento se confronta aos núcleos/focos de resistência que surgem como necessidade

de defesa e questionamentos de tais projetos em lugares nos quais muito provavelmente se acreditava que seria pacífica a implementação do grande projeto Panambi. O modo das empresas entrarem na região com atitudes autoritárias fez que os questionamentos começassem a surgir: Como serão as indenizações? Até onde irá o alagado? Com quem vamos negociar? Pra onde vamos ir?

As opções políticas, que incrementaram a diminuição do Estado com a privatização de setores estratégicos, reforçaram a implementação de grandes obras hidrelétricas em regiões específicas. E evidenciaram as prioridades energéticas. O modelo adotado em boa medida acaba beneficiando os mais poderosos. Na óptica do MAB (BENINCÁ, 2011), quem lucra com as barragens são as empreiteiras nacionais e estrangeiras, junto com os bancos e as indústrias fabricantes de equipamentos, muitas vezes negando, omitindo ou dissimulando os impactos que provocam. A concentração do capital nas mãos de um grupo de grandes empresas privadas que são antagônicas aos interesses do povo está na raiz e no escopo desse modelo.

O modelo energético combatido pelo MAB produz esgotamento dos recursos naturais; acentua as desigualdades entre ricos e pobres, entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; acirra os conflitos entre o poder dominante e as classes desfavorecidas; estimula o embate entre a ordem e desordem. (BENINCÁ, 2011, p. 43).

Ao refletir sobre a implementação do modelo energético, nos deparamos com os diferentes objetivos evidenciados no processo dos possíveis impactos e mesmo os riscos que são gerados. Por um lado, existe um modelo arquitetado que responde aos interesses do capital e, por outro lado, a contestação do modelo vigente e a luta por instauração de alternativas à produção energética.

Os impactos do “dilúvio planejado” (BENINCÁ, 2011) quase nunca são devidamente mensurados e reparados. Eles acabam afetando milhares de famílias, pois “no Brasil se estima em um milhão o número de atingidos por barragens e outros 850 mil ameaçados de perderem suas terras e ambientes de vida com os novos empreendimentos (p. 45). Isso produz quadros dramáticos de injustiça socioambiental. Os impactos acabam sendo os mais diferentes possíveis, como prejuízos nos meios de subsistência de milhões de pessoas, com destaque à pesca. O deslocamento forçado e o não reconhecimento dos cadastrados como atingidos acabam sendo um problema de grande relevância, uma vez que os moradores locais, mesmo residindo às margens do rio, não são possuidores de títulos de posse do imóvel. Membro da coordenação nacional do MAB, Marco Antonio Trieveiler reflete acerca dessa realidade em virtude das empresas utilizarem um conceito patrimonialista que considera o atingido apenas

aquele/a que é possuidor de título/documentação. “São excluídos, por exemplo, os sem-terra, a professora da escola que fechou, o freteiro do leite que ficou sem a frota, o pequeno comércio que se inviabilizou etc.” O direito à indenização por ser atingido acaba sendo uma luta desigual que, imposta pelo modelo vigente, estabelece mecanismos de exclusão, uma violência sistêmica sobre os indivíduos, entregando-os, por vezes, à própria sorte na reparação das perdas do seu local.

No caso específico da nossa questão das barragens, a histórica luta e resistência da população, que vive às margens do Rio Uruguai, (re)começa em 2008, quando novamente volta à pauta regional (Fronteira Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e Região Missões) um drama antigo, que tem sua origem nos planos de grandes projetos hidroelétricos. Especificamente, trata-se dos projetos binacionais de construção das hidrelétricas de Garabi em Garruchos e Panambi em Alecrim, ambas no Rio Grande do Sul. Para Marco Antônio Trieveiler, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (OLIVEIRA, 2015), trata-se de antigo sonho do capital financeiro concretizar as duas hidrelétricas que foram idealizadas no período da ditadura militar.

É importante dizer que essas barragens (Garabi e Panambi) são sonhos antigos do capital. Esses projetos já tentaram sair do papel no final da década de 70, início de 80, mas foram derrotados pela população. Na época, houve uma organização por parte dos atingidos que impediu a construção das barragens. Atualmente, os atingidos buscam repetir a conquista do passado, apesar dos interesses econômicos e políticos serem maiores. Propostas pelas empresas estatais de energia, a brasileira Eletrobrás e a argentina Ebisa, as hidrelétricas estão orçadas em 5 bilhões de dólares, ou algo em torno de 13 bilhões de reais, que será financiado em grande parte pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). É um recurso que interessa às construtoras e as fornecedoras de turbinas, afirmou Marco Antônio. (OLIVEIRA, 2015, n.p.).

A retomada de projetos antigos e não consolidados na sua origem remonta à necessidade de ampliar a reflexão no conjunto de fatores de risco envolvidos na consolidação de uma grande obra. O pensar remete à sociedade de risco numa perspectiva de destacar as resistências possíveis num contexto complexo, considerando os seus processos sociais. Por um lado, com as profundas alterações do nosso ecossistema, necessitamos entender os riscos que se agravam no decorrer da história. Riscos estão relacionados ao futuro e por isso têm a ver com antecipação, com destruições que, por vezes, ainda não ocorreram, mas que são iminentes e que, por vezes, são reais hoje.

O núcleo da consciência do risco não está no presente, e sim no futuro. Na sociedade de risco, o passado deixa de ter força determinante em relação ao presente. Em seu lugar, entra o futuro todavia inexistente, construído e fictício como “causa” da vivência e da atuação presente. (BECK, 2010, p. 40).

Por outro lado, existem os processos mais complexos e diferentes que acabam entrando como amplos fenômenos sociais. Nesse sentido, evidenciamos as mais diferentes formas de resistência em projetos do grande capital, que se apresentam como hegemônicos e únicos e, por vezes, até imprescindíveis. Assim, acreditamos ser oportuno adentrar numa reflexão específica de uma luta histórica advinda de várias décadas, especificamente num grande projeto, que se coloca como o grande alavancador do desenvolvimento regional com grandes obras de barragens num rio que ainda dispõe de um leito capaz de produzir energia para o interesse de grandes corporações empresariais. Dessa forma, é bem cabível um questionamento: As obras são de interesse para quem? Podendo afetar milhares de pessoas com sua história de vida enraizada no entorno desses possíveis grandes empreendimentos, é necessário perguntar se realmente não há outras formas de produzir energia? Existe a necessidade de reconhecer as diferentes formas de resistência, nos diferentes espaços alternativos em torno da qual o ser humano acaba por poder coletivizar as suas inúmeras resistências.