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O trabalho de Campos, publicado em 1990, serviu como alerta para a fragilidade dos mecanismos de controle e a forma como a Administração Pública conduzia sua relação com os cidadãos. Há mais de vinte anos, a autora alertava para a necessidade de mudanças do padrão de tutela que caracterizava o relacionamento entre governo e sociedade, apresentando três possibilidades para que isto acontecesse: a) o despertar dos cidadãos brasileiros para exercer o controle político do governo; b) aparato governamental remodelado, descentralizado e transparente para os cidadãos; e c) troca de valores tradicionais por valores sociais emergentes.

Desde então, a aplicação do conceito da accountability na gestão pública brasileira tem seu escopo ampliado, principalmente após a implementação da Reforma Administrativa do Estado. Com o aumento da importância da cidadania, muitos cidadãos tornaram-se fiscais dos direitos difusos e coletivos e diversos estudos apontam os avanços deste conceito no Brasil (ABRUCIO, 2005, p. 8).

No entanto, ainda que mudanças sejam fomentadas com o intuito de acabar os desvios da Administração Pública (SANO, ABRUCIO, 2008, p. 65), por meio de tentativas de aumento da responsabilização governamental ou accountability (CLAD, 2000), tornar comum a aplicação deste conceito na realidade da gestão pública brasileira mostra-se um grande desafio. O caminho para que esta expressão se estabeleça no Brasil promete ser longo, pois o autoritarismo e o patrimonialismo, modelos conceituais de administração do Estado, presentes no Brasil desde a sua colonização, possuem grande capacidade de renovação e adaptação de forma que esta velha ordem permanece vigorando (PINHO, SACRAMENTO, 2009, p. 1365). Para contextualizar a utilização do tema, vale ressaltar que o uso dos recursos públicos e a prestação de contas sempre foram objeto de debate e preocupação, principalmente diante dos constantes desvios e da má aplicação dos recursos públicos, aliados a ausência de penalização dos responsáveis pela sua destinação. A consequência natural foi o fortalecimento dos controles, a indução da correta forma de utilizar os recursos públicos e a

necessidade de tornar transparentes as contas públicas, incentivando o controle social (PALUDO, 2010, p. 147).

Muitas delimitações são aplicadas ao termo em estudo, tanto ao objeto e sujeitos quanto aos meios e escopo, mas é comumente aceito que o controle e fiscalização dos agentes públicos fazem parte da accountability (CENEVIVA, 2006, p. 23-26). Assim, o termo pode ser compreendido como uma obrigação de prestar contas, compondo-se de um repertório de práticas de controle social e interinstitucional com possibilidade de sanção (LAVALLE, CASTELLO, 2008). Está relacionado à capacidade dos constituintes imporem sanções ou reconduzirem ao cargo seus governantes em decorrência do cumprimento ou não das suas missões, constatadas por meio da obrigação dos governantes prestarem contas para posterior veredicto popular (MIGUEL, 2005).

O conceito de accountability supõe uma parte que delega a responsabilidade e outra que é responsável por gerir os recursos. A partir daí, cria-se a obrigação de prestação de contas por parte de quem administra os recursos, através dos resultados obtidos e do uso correto desses recursos (PALUDO, 2010, p. 148).

Outro entendimento aponta para um mecanismo de responsabilização do agente (políticos) pelo principal (eleitores), os quais possuem instrumentos de sanção e incentivos (voto) de forma a garantir o controle público ininterrupto dos agentes, propiciando aos eleitores formas de influir na definição de metas coletivas (PRADO, 2008; MARIA, 2010).

Na visão de Souza (2006, p. 34), o tema responsabilização auxiliou na discussão da accountability no Brasil, no meio da década de 1990, quando Bresser Pereira:

[...] traduz accountability para a língua pátria como “responsabilização”. Sustenta que o modelo do new public management [administração pública gerencial] tem um papel na melhoria da governabilidade na medida em que procura aprofundar os mecanismos democráticos de accountability. Observa que o cidadão exerce influência sobre os resultados dessas atividades, aumentando a accountability, ou ‘a responsabilização da administração pública perante os cidadãos’.

O conceito de accountability, para ter sentido, deve englobar três aspectos: a) antecipação dos níveis específicos de desempenho; b) comando para decidir como os recursos serão utilizados, visando os resultados desejados; e c) avaliação para medir se os resultados foram obtidos (PRZEWORSKI, 1998, p. 80).

O termo pode ser visto como um indicador normativo de qualidade democrática, por possibilitar aos usuários um determinado nível de controle sobre os mandatários do poder público (MIGUEL, 2005; MARIA, 2010; SCHOMMER, MORAES, 2010).

Na democracia representativa, aquela em que os governantes são eleitos e devem seguir as aspirações dos eleitores, observa-se um nível de accountability maior do que na democracia delegativa, onde as promessas da campanha eleitoral não guardam semelhança com as ações de governo, portanto, sua qualidade se difere de acordo com o tipo de democracia. (O’DONNELL, 1991, p. 30).

Para O'Donnell (1991, p. 30), na democracia delegativa:

O presidente é a encarnação da nação, o principal fiador do interesse nacional, o qual cabe a ele definir. O que ele faz no governo não precisa guardar nenhuma semelhança com o que ele disse ou prometeu durante a campanha eleitoral — ele foi autorizado a governar como achar conveniente.

Na literatura recente vemos menção de três tipos de accountability: horizontal, vertical e societal (PALUDO, 2010, p. 149).

Um estudo importante para a compreensão conceitual dos tipos vertical e horizontal de accountability é o realizado por O'Donnell em 1991, para o qual, cada um dos tipos se dá de acordo com a posição dos atores que participam do processo . Para o autor (1991, p. 32):

Nas democracias consolidadas, a accountability opera não só, nem tanto, "verticalmente" em relação àqueles que elegeram o ocupante de um cargo público (exceto, retrospectivamente, na época das eleições), mas "horizontalmente", em relação a uma rede de poderes relativamente autônomos (isto é, outras instituições) que têm a capacidade de questionar, e eventualmente punir, maneitras "impróprias" de o ocupante do cargo em questão cumprir suas responsabilidades.

Do texto acima é possível extrair a distinção entre as duas dimensões. A primeira, accountability vertical, diz respeito ao controle eleitoral em relação aos eleitores e eleitos (O’DONNEL, 1991, p. 33). “O accountability vertical tem caráter político e pode ser considerado um mecanismo de soberania popular, incidindo sobre os atos dos políticos e demais agentes públicos. Os principais mecanismos/instrumentos são o voto e a ação popular” (PALUDO, 2010, p. 150). A viabilização desse tipo de accountability está atrelada a alguns fatores:

Para que a accountability se viabilize, torna-se necessário ocorrer uma avaliação retrospectiva, ou seja, os eleitores manipulam informações que possam estabelecer um padrão de evolução positiva ou negativa

das ações empreendidas pelo governante durante o mandato. Nessa perspectiva, se a situação do eleitor melhorar, o governante será reeleito; em sentido contrário, se a situação piorar, ocorrerá a troca do representante. O pressuposto fundamental nessa hipótese é que o eleitor possua todas as informações necessárias e tenha conhecimento e/ou capacidade para efetuar a avaliação. [...] aponta-se como problemática a assimetria de informações. Enquanto os eleitores não possuírem todas as informações (ou tiverem dificuldades para processá-las), os representantes sabem o que devem fazer para serem reeleitos. Em suma, o modelo de accountability vertical apresenta fragilidades quando as informações são incompletas (VIEIRA, 2005, p. 8).

A segunda dimensão, accountability horizontal, refere-se ao controle exercido pelos diversos poderes do Estado e outras instituições com capacidade de fiscalização e punição (O’DONNEL, 1991, p. 33). Tal conceito encontra-se intimamente ligado com a transparência das ações da gestão pública e pressupõe a existência de agentes que podem fiscalizá-las e puni-las (AMARAL, 2007).

Neste contexto, a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional que lhe sucedeu, constituíram explicitamente o princípio da fiscalização e controle dos atos do Poder Executivo dos quais se destacam:

a) controle orçamentário; b) poder de nomear, julgar, exonerar e afastar membros do Executivo; c) controle fiscal, financeiro e contábil; d) poder de solicitar informações ao Executivo; e) poderes investigativos; f) outros poderes exclusivos em sua relação com o Executivo (concessão e renovação de rádio e televisão; aprovar tratados e acordos internacionais; autorizar o presidente a declarar guerra; autorizar a ausência do presidente e vice-presidente, quando superior a 15 dias; aprovar e suspender estado de sítio; sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; aprovar iniciativas do Executivo referentes a atividades nucleares; autorizar referendo e convocar plebiscito; autorizar exploração e aproveitamento de recursos hídricos, a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas; aprovar alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares) (BARROS, 2008, p. 49-50).

Dentre os principais mecanismos da accountability horizontal, pode-se destacar: “a atuação do Ministério Público, os Tribunais de Contas, as Controladorias Gerais e agências fiscalizadoras, as ouvidorias públicas e o partidos políticos” (PALUDO, 2010, p. 149-150).

O terceiro tipo é a accountability societal. Na vistão de Paludo (2010, p. 150), este tipo de accountability “[...] não está ligado ao cidadão e ao voto, mas às diversas entidades sociais como associações, sindicatos, ONGs, mídia, dentre outros, que investigam e denunciam abusos cometidos, e cobram responsabilização”.

“(...) um mecanismo não eleitoral, que emprega ferramentas institucionais e não institucionais (ações legais, participação em instâncias de monitoramento, denúncias na mídia, etc.), que se baseia na ação de múltiplas associações de cidadãos, movimentos, ou mídia, objetivando expor erros e falhas do governo, trazer novas questões para a agenda pública ou influenciar decisões políticas a serem implementadas pelos órgãos públicos”.

Na visão de Paludo (2010, p. 150), a accountability societal:

É uma espécie de controle social realizado pela sociedade civil, que procura alcançar também os burocratas gestores, e não somente políticos ou governos. Características dessas entidades são a grande diferença (assimetria) de recursos, e a ausência de mandato legal para o exercício de accountability.

Vieira (2005, p. 619) ao analisar o trabalho que Carneiro e Costa publicaram em 2001 explica que para estes pesquisadores a “originalidade” da accountability societal advém do fato de que “[...] não há uma satisfação imediata ou um interesse material em disputa”. Prossegue, relatando que o mecanismo “só poderia ser formulado na perspectiva da busca dos direitos da legalização, bem como possibilitaria o surgimento de novos atores nas instâncias de decisão e de mediação nas relações Estado versus sociedade”.

Este tipo de accountability ganhou ainda mais importância com a possibilidade da utilização das novas Tecnologias da Informação (TIs) pelos governos eletrônicos como forma de fomentar a accountability societal (PRADO, 2008; RAUPP, PINHO, 2011).

Para Vieira (2005, p. 619):

O pressuposto nessa perspectiva é que a ampla difusão de informações fortalece a democracia. Embora não haja uma conexão imediata entre o emprego das TIs, via “governo eletrônico”, e a accountability societal, é adequado admitir que a ampla difusão de informação favorece os atores sociais, coletivos, ou não, na movimentação para buscar transparência, responsabilização e prestação de contas. Ou seja, mesmo que seja um mecanismo de acesso restrito, no caso exclusivamente brasileiro, aqueles com condições de uso da rede de computadores podem manipular informações preciosas (principalmente na execução orçamentária) na montagem de estratégias para ações reivindicatórias. Cabe ressaltar ainda que mesmo a difusão do “governo eletrônico” não significa que a informação estará disponível, pois haverá sempre a condicionante da disposição do gestor (eleito, ou não) em ofertar informação relevante e credível.

Independente da forma que se queira atribuir a accountability (vertical, horizontal ou societal) é condição necessária, embora não suficiente, para sua ocorrência, que as informações sobre a atuação governamental estejam disponíveis aos cidadãos, legisladores, governo e aos próprios gestores públicos, para que todos verifiquem se: (1) os recursos do governo são empregados de forma apropriada e os gastos efetuados de acordo com as leis e

regulamentos, (2) ocorre a condução correta dos programas e projetos governamentais de acordo com seus objetivos e efeitos desejados, e (3) os serviços governamentais estão seguindo o princípio da eficiência (GAO, 2003, p. 54).

Vale ressaltar que a ocorrência de participação, vigilância e, consequentemente, accountability só será possível se existirem cidadãos bem informados, que desfrutem de ambientes democráticos nos quais as informações estejam acessíveis por meio de mecanismos institucionais que promovam a publicidade e a transparência das informações públicas (CHRISTENSEN, LAEGREID, 2002, p. 47).

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