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CAPÍTULO V INTERTEXTUALIDADES

5. Eça de Queirós: A Ilustre Casa de Ramires

5.1. O Realismo

Eça de Queirós foi considerado o maior romancista português de todo o século XIX. Eça de Queirós, na 4.ª Conferência do Casino Lisbonense afirma que ‘‘O Realismo é uma reação contra o Romantismo. O Romantismo era a apoteose do sentimento, a anatomia do caráter, a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.’’21

O Realismo foi uma estética literária da segunda metade do séc. XIX, considerada como um movimento de reação aos ideais românticos. Foi uma corrente literária preocupada com a realidade, buscando reproduzi-la através do objetivismo.

A questão Coimbrã definiu a crise cultural que introduziu o Realismo em Portugal. Para Eça, o Realismo era, na verdade, uma clara oposição ao romantismo e apresenta-se como uma doutrina filosófica e uma corrente estética e literária que procura a conformação com a realidade. As suas características estão intimamente ligadas ao momento histórico, refletindo as novas descobertas científicas, as evoluções tecnológicas e as ideias sociais, políticas e económicas da época.

O Realismo preocupa-se com a verdade dos factos, a realidade concreta, a explicação lógica dos comportamentos. Procura ver a realidade de forma objetiva e surge como reação ao idealismo e ao subjetivismo emocional românticos. Como movimento da arte e da literatura, procura representar o mundo exterior de uma forma fidedigna, sem interferência de reflexões intelectuais nem preconceitos, e voltada para a análise das condições políticas, económicas e sociais.

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Em Memória das Estrelas sem Brilho, o autor centraliza-se na obra A Ilustre

Casa de Ramires de Eça de Queirós:

Se tínhamos realmente que lutar, lutássemos em África, onde os nossos territórios e as populações eram diretamente atacadas pelas forças alemãs. A defesa da pátria era aí e não na Flandres, como tanto proclamava o governo e as chefias militares, seus porta-vozes nas casernas. (Machado 2012: 43).

E, mais adiante na obra, retoma o mesmo subtexto queirosiano: ‘‘ Na minha juventude andei à procura desse antepassado e, à maneira do herói da Ilustre Casa de

Ramires, tentei a redação de um relato histórico. Não pretendo falar aqui do meu

antepassado…’’ (Machado 2012:354).

Na batalha de La Lys, o exército português sofreu o pior desastre da sua história de Alcácer Quibir. Só não houve D. Sebastião a desaparecer. Ou talvez os que desapareceram, e que as famílias ainda aguardam nas manhãs de nevoeiro, sejam, cada um deles, o D. Sebastião. (Machado 2012:367)

A ironia de Leon Machado é evocadora, em assunto semelhante – o sebastianismo – à ironia queirosiana: ‘‘Na Serra ou na Cidade cada um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia é uma forma de sebastianismo. Eu, todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro, espreito, a ver se chega o meu.’’ (Queirós s/d: 211).

Recordemos que na obra A Ilustre Casa de Ramires, no I Capítulo, Gonçalo, o representante de uma raça que, como Portugal, degenerou, é estimulado pelo patriota José Lúcio Castanheiro a escrever uma novela histórica que revele Portugal, que ressuscite tradições e antigos varões, uma vez que ‘‘a pena agora, como a espada outrora, edifica reinos.’’ (Queirós 2004: 29). Luís Vasques, no dia do seu casamento, fica a saber um pouco mais dos seus antepassados, averiguando que um parente seu, seu trisavô, era Gonçalo:

… o meu pai foi-me dizendo que não era a primeira vez que o sangue godo da nossa família se misturava pelos votos sagrados do matrimónio com o sangue plebeu. Já em 1754, reinava el-rei D. João I e governava o Marquês de Pombal, D. Gonçalo Vasques, seu trisavô, se casara com uma senhora muito prendada em dote e beleza, filha de um retroseiro do Porto. (Machado 2012:402)

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Gonçalo, transformado pela intervenção dos seus ancestrais, decide-se pela ação e parte para África. A partida de Gonçalo para o continente africano, no Paquete

Portugal, com o intuito de explorar uma concessão agrícola e o seu regresso vitorioso à

nação portuguesa apresentam-se como símbolos da pátria, remetem-nos ao destino colonizador de Portugal e, desse modo, efetivam o intuito de reatar ativamente a tradição. ‘‘E lançaria então um brado à Nação, que a despertasse, lhe arrastasse as energias para essa África portentosa, onde cumpria, como glória suprema e suprema riqueza, edificar de costa a costa um Portugal maior!’’ (Queirós 2004: 134).

Esta obra permite entrever o messianismo literário, uma vez que através dela, Eça de Queirós nos apresenta a aventura sebastianista em Alcácer Quibir, onde dois antepassados de Gonçalo ‘‘encontram morte soberba’’, e um outro, chamado Paulo Ramires, morreu voluntariamente depois da morte do rei. É precisamente este ascendente da família Ramires, o último a aparecer no desfile dos ‘‘fantasmas Ramires’’ que viveram entre a Revolução de 1383 e a aventura desastrosa em África, em 1580, e que fazem a entrega das armas a Gonçalo:

Em Alcácer Quibir, onde dois Ramires sempre ao lado de El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pajem do guião, nem leso nem ferido, mas não querendo mais vida pois que El-Rei não vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha de armas, e gritando: - Vai-te, alma, que já tardas, servir a de teu senhor!, entra na chusma mourisca e para sempre desaparece. (Machado 2012: 23)

Na lógica do mesmo contexto, mais adiante na obra, reitera-se o tema: ‘‘E quem me contou que D. Sebastião morreu em Alcácer Quibir?... São os factos. É a história’’ (Machado 2012: 104). Estamos perante um messianismo bem patente na obra Memória

das Estrelas sem Brilho:

Na Batalha de La Lys, o exército português sofreu o pior desastre da sua história desde Alcácer Quibir. Só não houve D. Sebastião a desaparecer. Ou talvez os que desapareceram, e que as famílias ainda aguardam nas manhãs de nevoeiro, sejam, cada um deles, o D. Sebastião (Machado 2012: 367).

Na trajetória pessoal de Gonçalo nós encontramos uma interpretação corajosa da alma portuguesa contemporânea de Eça de Queirós. Inicialmente, a cobardia deste fidalgo, sua fraqueza de ânimo, suas aspirações de um futuro glorioso, suas crises de consciência, tudo é Portugal indeciso diante de seu presente e futuro. O destino de Gonçalo traduz muito daquilo que Eça de Queirós (na fase final de sua produção

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literária) acreditava ser o caminho mais viável para o país: a retomada das tradições e do ilustre passado português materializados na veia expansionista e colonialista da nação, outrora, um dos maiores impérios do mundo.

É notório, em Memória das Estrelas sem Brilho, a corrente filosófica de Schopenhauer. Tal como sucedeu com Gonçalo Ramires, Luís Vasques é herdeiro de uma crise de vontade que está presente na sociedade do tempo em que vive. Em Schopenhauer não é a vontade que se submete à razão mas sim o contrário. A vontade é a essência íntima de todas as coisas, é uma força ou impulso cego, uma aspiração perpétua sem princípio nem fim. A vontade é infinita, absoluta, totalmente livre porque independente de qualquer coisa ela é a causa, e absolutamente livre porque não tem nada que se lhe oponha. A vontade em si mesma é livre. Tudo o que compõe a natureza, incluindo o homem, está submetido a uma necessidade absoluta. Cada homem julga-se livre em cada uma das suas ações particulares. Somente, a posteriori, por experiência e reflexão, é que ele reconhece a necessidade absoluta da sua ação.

Na Ilustre Casa de Ramires, Gonçalo Ramires procura um trajeto ascensional de recuperação da vontade, pela convivência com os seus heroicos antepassados, sendo proposto um modelo de salvação nacional pela aposta nas colónias portuguesas de além-mar.

Desenvolvem-se duas histórias, uma, a de Gonçalo Ramires, ambientada no tempo presente, e outra, a dos seus antepassados ilustres, referentes ao passado histórico de Portugal. Estas duas histórias estabelecem o confronto entre Gonçalo - Portugal Contemporâneo, representante decadente de uma raça heroica e o Gonçalo - Portugal Ancestral dos heróis medievais, que leva à transformação daquela personagem.

Em Memória das Estrelas sem Brilho, Luís Vasques constatou que a participação dos soldados portugueses na Guerra das Trincheiras foi inútil. A valentia do povo português não foi reconhecida: ‘‘… a nossa companhia deu exemplo de honra e de empenho, independentemente da opinião que a maior parte dos que a constituíam tivesse acerca da participação de Portugal naquela guerra’’ (Machado 2012: 55).Na mesma linha ideológica, mais adiante na obra sublinha: ‘‘Havia quem dissesse mal dos portugueses, que eram uns incompetentes, que nunca deveriam ter ido para a guerra, pois não estavam preparados. (…) Eram tão bons e tão corajosos como quaisquer outros’’ (Machado 2012: 414) Portugal, sendo o país menos mecanizado, continuava pobre, na miséria: ‘‘Na altura, não devia haver no país mais de cinco mil carros, o que

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fazia com que Portugal fosse o país menos mecanizado da Europa. (Machado 2012: 100).

Embora Vasques não tenha escrito uma novela, mas um memorial, relatando a intervenção de Portugal na Primeira Grande Guerra, o romance tem um desfecho interessante, pois surge-lhe o bisneto de Joaquim Domingues, estudante na Faculdade de Letras, que procede à recolha de informações para atingir o seu objetivo.

Durante algum tempo, hesitei em publicar estas páginas. Por um lado, entendia que não me assistia o direito de o fazer, pelo facto de o seu autor não me ter dado autorização expressa para isso. Por outro, porque as páginas contêm referências que de algum modo poderiam desagradar aos descendentes das pessoas que nelas são referidas. Demorei cerca de dois anos a copiar o manuscrito para o computador.’ (Machado 2012: 444).

Gonçalo em A Ilustre Casa de Ramires vingara-se do valentão Nacejas, demonstrando, desta maneira, toda a sua valentia e sendo merecedor do nome que recaía sobre os seus ombros: ‘‘Gonçalo galgou sobre ele, noutro arremesso, com outra fulgurante chicotada, que o apanhou pela boca, lhe rasgou a boca, decerto lhe despedaçou os dentes, o atirou, urrando, para o chão ‘’(Queirós 2004: 235).

Em Memória das Estrelas sem Brilho, antes de partir para a guerra, seu pai tinha-lhe dado um anel de brasão: ‘‘Esse anel foi a minha salvação numa zaragata onde me vi envolvido numa casa de fados e com ele parti uns quantos dentes a um rufa alfacinha que me queria esventrar à navalhada.’’ (Machado 2012: 61).

Eis aqui a representação da nobreza ao serviço de um comportamento e um ideal pouco nobres.

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