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CAPÍTULO V INTERTEXTUALIDADES

4. Raul Brandão em Memória das Estrelas sem Brilho

O existencialismo, como conceção filosófica, orientou a produção literária de escritores de grande projeção no séc. XX, como é o caso, em Portugal, de Virgílio Ferreira. Na França, esta vertente literária teve particular importância através de escritores e filósofos de prestígio como Sartre, Merleau-Ponty, Camus e outros.

O existencialismo centra toda a sua reflexão sobre a existência humana considerada em seu aspeto particular, individual e concreta. A origem da filosofia

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existencial está no advento do Cristianismo porque ele traz como permissa a ideia de um Deus pessoal, responsável pela existência das coisas, do homem e de todo o universo, o absoluto. Para o existencialismo, o privilégio do homem é o caráter consciente ou existencial.

No momento em que Raul Brandão se mantinha ocupado com a escrita de

Húmus , diversos fatores contribuíram para compor um quadro histórico desolador.

Assistia-se ao estilhaçamento das formas de pensar; presenciava-se à carnificina gerada pela Primeira Guerra Mundial, diluíam-se as esperanças e instalava-se a incerteza diante do futuro. As bases das crenças mais genuínas e singelas ruíam, deixando desnudo o homem e sentia-se o vazio de Deus. Muitos valores cristãos eram negados, o sentido da vida era arrebatado e instalava-se o desespero.

É reagindo contra a visão mecanicista do universo e contra a frieza organicista do cientificismo que Húmus se impõe como obra de profundo valor existencial, instaurando uma breve reflexão acerca do ser, do mundo, do cosmos e de Deus.

Nesta obra, Raul Brandão questiona o sentido da vida e da morte: ‘‘E agora a morte não existe, Deus não existe, a vida eterna não existe.’’ (Brandão 1986: 111); ‘‘Preciso de um Deus que me atenda e me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer.’’ (Brandão 1986: 112), ‘‘É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios.’’(Brandão 1986: 191).

A relação entre a guerra e a dialética da vida e da morte em Húmus é evidente. Escrita em 1916 e publicada em 1917 que, por acaso, coincide com a ida dos nossos soldados portugueses para a Guerra das Trincheiras, na Flandres, esta obra retrata toda a tensão da guerra em andamento, embora Raul Brandão não tenha participado nela.

No último capítulo de Húmus, ‘‘Vêm aí os desgraçados’’, Raul Brandão faz uma leitura da guerra, na qual não falta grande dose de ironia e uma crítica violenta: ‘ ‘‘Por toda a parte desesperos, lágrimas inúteis, urros de besta, saciados, por toda a parte sangue, álcool, clarões e incêndio. O homem regressa à conversa e aniquila a inteligência, a dor e a dúvida… (Brandão 1986:187).

A guerra nulifica o ser enquanto pessoa, seja porque varre o homem do seu espaço e do seu tempo, seja porque o reduz à categoria de animal aluado. Ela destrói sonhos, esperanças e perspetivas de realizações. O seu maior poder destrutivo,

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porém, relaciona-se ao próprio conceito de morte.

A relação entre a guerra e a dialética da vida e da morte em Húmus é evidente. A obra retrata toda a tensão da guerra em andamento. Ela destrói sonhos e esperanças. Em Húmus, a consciência da morte, aliada à indiferença de Deus, torna a vida absoluta. Para Luís Vasques ‘‘viver é sofrer’’. Ele lê muitos dos retóricos que retratam o pessimismo e daí a influência de Schopenhauer estar presente na sua ótica perante a realidade envolvente:

Talvez eu na minha juventude tivesse lido demasiado autores mórbidos e pessimistas. Ou talvez fosse o meu modo de ser, já de si melancólico, exacerbado pela experiência da guerra, essa destruidora de corpos e almas. (Machado 2012: 432)

Recorda, por várias vezes, o espólio de bronze que recebera, onde dizia:‘‘ Mit

Got fur koinig und Vaterland’’, ou seja, ‘‘Com Deus, para o rei e pela pátria.’’

(Machado 2012:13) ‘‘Estamos aqui todos à espera da morte!’’ (Machado 2012:14). Esta afirmação revela a consciência do homem como ser para a morte.

Em Húmus, a consciência da morte, aliada à indiferença de Deus, torna a vida absurda:

Na realidade, morrer é absurdo. Nunca me capacitei a sério que tivesse que morrer. Morrer é estúpido. Não compreendo a morte e, por mais que desvio o olhar, prendo- me sempre a essa hora extrema … o fim lógico da vida é não morrer, é viver sempre. Até onde? Até Deus. (Brandão 1986: 37- 41).

Existe uma filosofia existencial que confere pleno sentido à vida, ao estar aqui, ao estar no mundo e ao ser para a morte, porque o ser, na obra, é concebido exatamente como o existencialismo o concebe. O homem não é apenas um animal, mas existe, e existente pensa no mundo e o interpreta em toda a sua totalidade.

A filosofia existencial de Húmus assume lugar justamente no ponto de tensão entre o existencialismo ateu e o existencialismo cristão, ou seja, na dúvida da existência do Ente Supremo: ‘‘Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe.’’ (Machado 2012: 24).

Logo no primeiro capítulo desta obra, Vasques, na sua poltrona, lê Húmus de Raul Brandão: ‘‘Só a insignificância nos permite viver.’’ (Machado 2010: 13) ‘‘O amor, pensei, criava homens; a guerra, dor e morte’’ (Machado 2012: 299). Embora Vasques diga que o livro o deprima, ele continua a lê-lo.

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reflexivo e filosófico ao abordar Húmus de Raul Brandão. A guerra atormenta a mente e o espírito da personagem principal, os sonhos perturbam-no, para além de pôr em causa a existência de Deus. Vejamos as citações que o ilustram: ‘‘Voltaram- me os pesadelos sobre a guerra…’’ (Machado 2012:11), Há um sonho que se repete e que me deixa um sabor a sangue na boca.’’ (Machado 2012: 22) ‘‘De que me serviria dizer-lhe que não acreditava em milagres e muito menos em aparições? (Machado 2012: 98). ‘‘A Igreja Católica soube bem render o que os três pequenos pastores semearam em 1917, se é que foram eles os agricultores.’’ (Machado 2012: 296) As inquietações espirituais da personagem principal e a questão metafísica da existência de Deus são, de facto, um aspeto a não descurar no romance. Vejamos o seguinte excerto ilustrativo:

Não sei se Cristo ressuscitou ou não, nem isso é uma coisa que me preocupe. Para mim, o único Cristo verdadeiro é o das Trincheiras, de pés e braços estropiados, já sem cruz, atado ao tronco de um choupo ferido por um morteiro. Um soneto de Régio que fala na cruz de um Deus vencido enquanto ao longe as turbas bravas levantavam ao ar fumo e alarido é a descrição perfeita do meu Cristo.’’ (Machado 2012: 424).

Luís Vasques tinha uma visão ingénua, pois tratava-se de um indivíduo que só via o que estava dentro da sociedade e não lobrigava para o seu exterior, refugiando-se nos livros, constituindo estes um meio condutor para a tentativa da compreensão da realidade. Em A morte do palhaço e O mistério da árvore, podemos ver esta verosimilhança: ‘‘O drama de K. Maurício foi este – ter vivido tudo e nunca ter vivido; ter conhecido a vida através dos livros e não saber dar um passo na vida. Habituar-se a sonhar e ter medo de viver.’’ (Brandão 1916: 10).

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