• Nenhum resultado encontrado

Memória das Estrelas sem Brilho. História e identidade na estética literária de José Leon Machado

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Memória das Estrelas sem Brilho. História e identidade na estética literária de José Leon Machado"

Copied!
131
0
0

Texto

(1)

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Memória das Estrelas sem Brilho. História e Identidade na

Estética Literária de José Leon Machado

Dissertação de Mestrado em Ciências da Cultura

Cristina Teixeira Pinto

Doutora Maria Luísa Castro Soares

(2)

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Memória das Estrelas sem Brilho. História e Identidade na

Estética Literária de José Leon Machado

Dissertação de Mestrado em Ciências da Cultura

Cristina Teixeira Pinto

Doutora Maria Luísa Castro Soares

(3)

Dissertação de Mestrado em Ciências da Cultura (2.º ciclo), apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, sob a orientação de Maria Luísa de Castro Soares.

(4)

IV

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor José Barbosa Machado, por me ter incutido o prazer pela redescoberta da História e da Cultura Portuguesas e por me ter apoiado na prossecução deste projeto, tendo-se demonstrado sempre disponível de uma forma pontual e exímia. À minha orientadora, Professora Luísa Castro Soares, por me ter sugerido o tema, incentivando-me para a realização deste projeto e por todo o empenho e profissionalismo evidenciados.

Aos meus colegas de curso da UTAD, nomeadamente, o António Menezes, a Assis Gaspar, a Carina Gonçalves, a Fátima Teixeira, a Liliane Baptista, o Orlando Vaz que me deram todo o apoio necessário para a finalização deste projeto, principalmente, à minha amiga Fátima por uma amizade que perdura há muitos anos.

Às minhas colegas de profissão, Graça Silva, Júlia Garcia e Laura Pereira que sempre evidenciaram um gosto peculiar pelo findar da minha tese.

Ao meu ex-professor e atualmente amigo, António Pereira, por me ter incentivado e apoiado nos momentos que eu mais precisava.

Aos meus amigos da escrita, Ernesto Ribeiro e Nuno Garcia, por todo o carinho e amizade manifestados e um agradecimento especial a Angélique Sauvaire.

À minha prima Teresa Sousa, mãe e irmãos por todo o seu apoio incondicional.

Por último, ao meu pai, o grande amor da minha vida que, apesar de ter partido há nove anos atrás, teria certamente apoiado a sua filha mais velha da qual sempre se orgulhou. A todos, o meu muito obrigada!

(5)

V

RESUMO

Memória das Estrelas sem Brilho, uma obra ficcional, escrita por José Leon

Machado, cuja 1.ª edição foi publicada no ano de 2008, é um romance histórico que aborda a I Grande Guerra Mundial e que relata a obstinada participação dos soldados portugueses nas Trincheiras, na Flandres (França), que o governo português enviara em 1917.

Esta obra, que aborda duas vertentes que lhe estão subjacentes (o amor e a guerra), consiste no relato histórico de um passado nacional que visa ‘‘reconstituir’’, com autenticidade e fidelidade a sociedade, os grupos sociais, as instituições, os costumes, os usos, os rituais e a mentalidade da época, criando ou explorando personagens fictícias e não só, bem como temas problemáticos de importância vital para a história portuguesa.

A escrita do autor é simples e concisa, e o uso sistemático de uma linguagem popular bem como as diversas influências literárias patentes nesta obra constituem a matéria-prima deste escritor contemporâneo.

Na sua estética de escrita, os conhecimentos históricos aprofundados exigiram, deste autor, um espírito histórico onde prevalece a sabedoria de harmonizar esteticamente factos e personagens de culturas e épocas diferentes, cronologicamente situados numa sintonia perfeita entre a literatura e a história.

Desta forma, Memória das Estrelas sem Brilho é uma obra onde o autor valoriza o nacional que se manifesta pelo retorno ao passado histórico e pela criação do herói nacional.

Este romance está escrito em forma de memórias, narradas na primeira pessoa, e procura imitar o tom de livros que alguns ex-combatentes escreveram logo após a guerra, tais como: Américo Olavo, Bento Esteves Roma, Horácio Assis Gonçalves, Pedro de Freitas, Manuel Costa Dias, João Pina de Morais, David Magno, Carlos de Ornelas, Eugénio Rodrigues Aresta, entre outros.

Palavras-chave: Romance Histórico, José Leon Machado, I Guerra Mundial,

(6)

VI

ABSTRACT

‘‘Memories of Stars without Shine’’, ‘‘Memória das Estrelas sem Brilho, is a fictional story, written by José Leon Machado, which the first edition was published on 2008. It’s an historical romance about the First World War, which describes the participation of Portuguese army in the trench, on Flanders France, which our government sent in 1917.

This book it’s an historical romance that reveals two sides (love and war), that is about an historical report a national past and seeks to reconstruct authenticity and fidelity of society, social groups, institutions, costumes, things they used to do, rites, and mentality of that time, create or explore fictional characters and also critical themes that have a big importance on Portuguese history.

The author writing is simple and precise as the use of popular Portuguese sayings and their influence on his writing that is the major aim of the writing from this author.

The author’s writings appearance reveals a deep understanding of Portuguese history, he tries to show how hormonally facts and characters culture are in different times chronically they are perfectly situated in literature and history.

Memória das Estrelas sem Brilho is a work were the author gives real and big

importance to what is national and that is showed by the return to the historical past and the creation of a national hero.

This romance is written by memories that were lived in the first person and tries to be similar as books written by ex-militaries after war, like: Américo Olavo, Bento Esteves Roma, Horácio Assis Gonçalves, Pedro de Freitas, Manuel Costa Dias, João Pina de Morais, David Magno, Carlos de Ornelas, Eugénio Rodrigues Aresta, and others.

(7)

ÍNDICE GERAL

AGRADECIMENTOS ... IV RESUMO ... V ABSTRACT ... VI ÍNDICE GERAL ... VII PREÂMBULO ... XI

1. INTRODUÇÃO ... 1

1.1. História e Literatura: uma união de facto ... 1

PARTE I ... 5

CAPÍTULO I - O ROMANCE HISTÓRICO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS 1. O ROMANCE HISTÓRICO ... 6

1.1. Dos primórdios à discussão atual do problema ... 6

1.2. Alexandre Herculano, o fundador em Portugal ... 14

1.3. Miguel Real: tipos de romance ... 15

1.3.1. Romance de reconstituição histórica ... 16

1.3.1.1. Romance de análise histórico-político-social ... 16

1.3.1.2. Romance histórico de empenhamento social e cultural ... 16

1.3.1.3. Romance histórico pícaro ... 16

1.3.1.4. Romance histórico psicológico ... 17

1.3.1.5. Romance histórico fundado no maravilhoso ... 17

1.3.2. Romance de construção histórica ... 17

1.3.3. Romance histórico de fundo epistemológico ... 17

1.3.4. Romance histórico subversor da própria história ... 17

PARTE II ... 19

CAPÍTULO II - JOSÉ LEON MACHADO: O AUTOR E O TEXTO NO SEU ENQUADRAMENTO HISTÓRICO 1. Breve Biobibliografia do autor José Leon Machado ... 20

(8)

3. Os envolvidos ... 25

4. O Corpo Expedicionário Português ... 27

4.1. Em direção ao desconhecido: Flandres ... 27

4.2. A rotina nas trincheiras ... 27

4.3. Os ‘‘trinchas’’ na terra do desconhecido ... 28

4.4. A rotina diária na zona de guerra ... 31

4.5. O fardamento ... 32 4.6. O Aboletamento ... 35 4.7. A saúde ... 35 4.8. Os tempos livres ... 36 4.9. A censura postal ... 37 4.10. A sexualidade ... 38 4.11. A religião ... 38

4.12. O CEP entregue ao Deus dará ... 39

4.13. Os portugueses aos olhos dos ingleses ... 40

PARTE III ... 41

CAPÍTULO III - MEMÓRIA DAS ESTRELAS SEM BRILHO: ANÁLISE DA OBRA E DOS SEUS ELEMENTOS PARATEXTUAIS E CULTURAIS 1. Memória das Estrelas sem Brilho: elementos paratextuais e edições ... 42

2. Sua temática histórica: Primeira obra de uma trilogia ... 44

3. A personagem ... 45

3.1. Luís Vasques: ‘‘O Infeliz’’ ... 45

4. Brasão da Família Vaz e Brasão da Família Vasques: ... 47

5. O anel de brasão ... 48

6. Os Lusíadas: Luís Vaz de Camões ... 49

7. As cunhas em Portugal ... 50

8. A vida académica coimbrense ... 51

9. A sexualidade/moralidade vigente... 51

10. Vasques e Rato: uma amizade sem igual... 53

(9)

12. Vasques e Rato: uma verosimilhança com a obra de Miguel de Cervantes Dom

Quixote de La Mancha ... 57

14. O perfil físico e psicológico das mulheres retratadas por Vasques ... 58

PARTE IV ... 60

CAPÍTULO IV - ASPETOS IDENTITÁRIOS DO PORTUGAL DE INÍCIOS DO SÉC.XX NA OBRA Memória das Estrelas sem Brilho ... 60

1. Portugal e o retrato do país ... 61

2. A liberdade de imprensa ... 61

3. Alferes: a nova realidade de Vasques ... 64

4. Preparação para a Grande Guerra: tempo e espaço ... 65

5. A situação política do país ... 67

6. Os ideais de Vasques ... 72

7. Os criticados por Vasques ... 72

8. Salazar no poder ... 75

9. Ícones representativos da sociedade ... 77

9.1. A moeda de 4 centavos ... 77

9.1.1.2. O selo e a Deusa Ceres ... 79

10. A medalha do Sagrado Coração de Jesus/Senhora das Candeias ... 79

11. Linguagem popular ... 80

PARTE V ... 82

CAPÍTULO V - INTERTEXTUALIDADES 1. A Vendedora de Cupidos: II Trilogia ... 83

2. O Mutilado de João Grave ... 84

3. A Filha do Capitão de José Rodrigues dos Santos ... 85

4. Raul Brandão em Memória das Estrelas sem Brilho ... 87

5. Eça de Queirós: A Ilustre Casa de Ramires ... 90

5.1. O Realismo ... 92

5.2. Eça de Queirós: Os Maias ... 96

(10)

Conclusão ... 99 Referências Bibliográficas ... 102 BIBLIOGRAFIA DIGITAL ... 109 APÊNDICE ... 110 ANEXOS ANEXO I ... 116 ANEXO II ... 117 ANEXO III ... 118 ANEXO IV ... 119 ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 – Capa do livro ... 43

Figura 2 – Brasão da família Vaz ... 48

Figura 3 – Brasão da família Vasques ... 48

Figuras 4 e 5 – A moeda de 4 centavos ... 77

(11)

PREÂMBULO

O interesse pela literatura e pela história levou-nos a optar por uma obra que primasse por esta conciliação.

O romance em análise é um romance histórico de cruzamentos: cruza-se a história com a literatura, o verosímil com o inverosímil e o passado com o presente. Desta forma, a nossa escolha recaiu sobre a obra Memória das Estrelas sem Brilho do escritor José Leon Machado, um escritor que se enquadra na nova geração literária portuguesa: a da literatura contemporânea.

Com este trabalho, não só queremos dar o nosso contributo para a divulgação do autor, que merece ter, pela qualidade da sua obra já aliás reconhecida por alguns críticos como Milton Azevedo, um lugar de destaque no panorama literário português, como também, verificar, através do estudo da obra referida, como evoca e problematiza, um escritor pós-moderno, o passado histórico.

Para o estudo da narrativa, enquanto fenómeno literário, optamos por métodos qualitativos. A ideia é analisar e descobrir a obra. Por outras palavras, pretendemos levar a cabo uma leitura da obra que nos permita interpretá-la, compreendê-la e descrevê-la. Essencialmente, será adotado um percurso hipotético-dedutivo. Embora não esquecendo que diversas dimensões se entrecruzam no fenómeno literário (o emissor ou escritor; o recetor ou público; a mensagem ou texto; o modelo estético-social e cultural), optamos, essencialmente, por uma abordagem imanente, centrada no texto, sendo este encarado como um todo, um universo ficcional, cujos mecanismos possibilitam a emergência de sentidos. Deste modo, recorremos ao método hermenêutico para fazer “falar” o texto.

A análise que faremos ultrapassará o que está explicitado e incidirá também no não-dito, pois a interpretação é o discernimento de um sentido oculto num sentido aparente. É nossa intenção, ainda, ter em consideração o new criticism, cujos conceitos metodológicos permitirão a articulação entre conteúdo e forma. Por fim, para as terminologias indispensáveis ao estudo da narrativa, recorremos a obras de narratologia e estilística.

Com esta dissertação, pretende-se conhecer e divulgar a estética literária deste escritor contemporâneo, de modo a que a sociedade atual reconheça esta nova geração de escritores que se têm evidenciado na escrita de romances históricos: uma nova geração detentora de um estilo literário próprio e que pretende que o leitor (embora não

(12)

tendo vivido naquela época) perceba alguns dos acontecimentos em que Portugal se viu forçado a intervir.

Numa primeira parte, abordamos o romance histórico como género literário, uma estética que remonta aos nossos antepassados ancestrais, referenciando o seu fundador, Alexandre Herculano e Walter Scott, o seu criador.

Numa segunda parte, fazemos o enquadramento histórico da obra Memória das

Estrelas sem Brilho, uma vez que o romance aborda o fim da monarquia, a implantação

da República e o Estado Novo.

Na terceira parte, focamos a história e identidade na estética literária de José Leon Machado, especialmente, no romance Memória das Estrelas sem Brilho, uma obra que recorda a participação de um passado nacional e que permite - ao autor- lançar um olhar reflexivo e crítico sobre a contemporaneidade.

Como todo o texto é indissociável de um contexto, numa quarte parte, realçamos os aspetos culturais e identitários do Portugal de inícios do séc. XX na obra Memória

(13)

1

1. INTRODUÇÃO

1.1.

História e Literatura: uma união de facto

Na obra Memória das Estrelas sem Brilho, cruza-se a história com a literatura, sendo que esta relação remonta à mitologia dos gregos.

Segundo o mito, Zeus e Mnemósine, o pai dos deuses e a deusa da memória, tiveram nove filhas, as nove musas das artes. De entre elas, Calíope, a musa da literatura e Clio, a deusa da história. Sendo assim, seguindo a explicação mitológica, verificamos que a relação entre estas duas artes é estreita e que o diálogo entre elas é uma constante.

No início dos tempos, História e Literatura nasceram como ser único e indistinto. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de consciência do homem de sua existência social, as duas disciplinas diferenciaram-se, singularizaram-se e especializaram-se. Espécie de gémeos idênticos, literatura e história lutaram para se separar e andar independentemente.

O processo de autonomização entre a história e a literatura aprofundou-se na Idade Média, tendo-se verificado, no séc. XIX, uma tentativa de aproximação.

A diferenciação entre literatura e história avançou qualitativamente após 1789. A Revolução fortaleceu a consciência de que era possível aprender racionalmente o devir histórico – ‘‘experiência vivida pelas massas’’-, gerando ‘‘a historiografia científica e o romance histórico’’ (Lukacs 1965: 21). Nesses anos, literatura e história dispunham-se a explicar essencialmente o passado.

Lukacs lembrava que a luta pela construção de uma explicação historiográfica e científica de 1789 favoreceu a ausência de um grande romance histórico sobre aquele acontecimento, ao passo que a revolução burguesa, na Inglaterra, foi amplamente retratada na ficção. (Lukacs 1965: 81).

Na antiguidade, Aristóteles lembrava que a literatura produzia um passado possível e não real, já que o ‘‘poeta, diferentemente do historiador, não representa factos ou situações particulares’’ mas apenas ‘‘cria um mundo coerente em que os acontecimentos são representados na sua universalidade, segundo a lei da probabilidade ou da necessidade.’’ (Silva 1990: 90)

Na defesa da autonomização radical da literatura lembrou-se que ela se objetiva na construção de uma totalidade artística, tendo como único paradigma o belo, e que a história, ao contrário, impõe-se através da confrontação do explicado (teoria) com o analisado (objeto), já que constitui análise concreta de situação concreta.

(14)

2

A negação da função da história, de explicar essencialmente os fenómenos e sua redução a uma mera narrativa em prosa construída pelo arbítrio do narrador debruçado sobre os dados objetivos, reduz a disciplina a uma espécie de ficção de tema histórico e vocação naturalista.

Também é uma ilusão a inexorável determinação da historiografia pelos documentos. O historiador não é fantoche dos dados, sobre os quais aplica, como cirurgião hábil, o bisturi técnico-metodológico. É alta a autonomia - consciente e inconsciente - do historiador na escolha e tratamento da documentação. A sua independência cresce quando transita da pesquisa à produção do texto biográfico. A busca da verdade factual centrada na pesquisa de fontes documentais, que é objeto do historiador, não é condição necessária para o autor do romance histórico.

A narrativa ficcional em prosa que almeja ‘‘a reprodução artística fiel de uma dada era histórica concreta’’ (Lukacs 1965:17) é palco privilegiado para a discussão dos fios de Ariadne que ligam história e literatura entre si e com o real. Entre as íntimas variadas interpretações da história e da literatura, destaca-se a vocação da narrativa em prosa de tema histórico, de descrever, sintetizar, explicar e apreender as singularidades essenciais do passado.

Quando, nos seus romances, o escritor opta por usar a história pode, à maneira de Saramago, tomar dois caminhos: o de um certo respeito pelos factos conhecidos ou documentados ou, ao invés, o da prevalência da ficção, cabendo à história o papel de pretexto para o texto ficcionado.

Vejamos o seguinte excerto:

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos da história: uma discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma ficção que se quer intocável; a outra, ousada, levá-lo-á a entreter dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista irreconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância da narradora (…) (Saramago 1998:56)

Tradicionalmente, o historiador viu o romance histórico como leitura impertinente de um passado possível de ser desvelado apenas através dos instrumentos da historiografia e jamais com a fantasia arbitrária do ficcionista. O romance histórico seria uma ficção do passado, incapaz de se aproximar de suas irregularidades profundas:

(15)

3

É tal a força da solidariedade das épocas que os laços da inteligibilidade entre elas se tecem verdadeiramente nos dois sentidos. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais fácil esforçarmo-nos por compreender o passado se nada sabemos do presente. (Bloch 1981:42)

Na mesma linha, E. Carr afirma: ‘‘O passado é inteligível para nós unicamente à luz do presente; e só podemos compreender completamente o presente à luz do passado’’. (Carr 1961: 46) Na verdade, o romance histórico cria um mundo ficcional global que é o percebido como o real recriado. Heine afirmava que os ‘‘romances de Walter Scott reproduzem muitas vezes o espírito de história inglesa mais fielmente do que Hume’’ (Lukacs 1965:59). A verosimilhança da ficção suplanta a própria narrativa da realidade histórica.

A história e a literatura devem registar não a aparência, mas a essência dos fenómenos. Lukacs lembrava, referindo-se à arte em geral que:

As formações estéticas são reflexos da realidade objetiva, e sem valor, sua significação, sua verdade descansam na capacidade que tenham de captar corretamente a realidade, reproduzi-la e evocar nos recetores a imagem da realidade que permanece nelas mesmas. (Lukacs 1982:41).

É, no entanto, nos diferentes usos da história como força definidora, considerando que esta pode desempenhar vários papéis na estrutura dos romances – ser razão, motivo, origem, pretexto, matéria ou cenário, entrando de modos diversos tematicamente na literatura, como afirma Harry Show (Show 1985:22) que se podem encontrar critérios de análise e de diferenciação para o estudo do romance histórico.

É função da história penetrar a essencialidade dos fenómenos e definir e descrever, teoricamente, o comportamento tendencial das categorias sociais dominantes. A literatura realiza o mesmo processo através da transfiguração essencial da realidade, servindo-se para tal de personagens que recriem, na singularidade de suas ações, as tendências gerais de uma classe de indivíduos.

No romance histórico, o autor e o narrador são obrigados a animar os protagonistas ficcionais – seres aparentemente individuais e singulares – de tal modo que vivam, amem e odeiem em conformidade com as tendências reais do passado, a fim de que se elevem ao status de personagens singulares e universais.

A produção de um romance histórico exige que o ficcionista realize investigação sistemática sobre a época que abordará. O facto desse estudo ser mediado pela sua sensibilidade e instinto artísticos não dilui o facto de que o artista, nesse momento da

(16)

4

produção, realiza, consciente ou inconscientemente, o trabalho do historiador, isto é, o desvelamento essencial do passado.

O romance histórico de conteúdo nacional tem a virtude de unir ficção e vida, permitindo um olhar sobre o passado sociocultural e identitário.

É na autoridade do saber e discurso da história conjugados com a liberdade do romancista que o autor fundamenta a própria voz, entrando no texto com um ‘‘eu’’ que se sobrepõe ao narrador para comentar, julgar, fazer digressões que, na maior parte das vezes, pertencem ao campo da política e do funcionamento da sociedade.

O autor seleciona, nos documentos, nas memórias, nos relatos, nos acontecimentos e ideias, conscientes e inconscientes sobre o passado, o material sobre o qual construirá os seus enredos, protagonistas e paisagens.

(17)

5

PARTE I

CAPÍTULO I

O ROMANCE HISTÓRICO:

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

(18)

6

1. O ROMANCE HISTÓRICO

1.1. Dos primórdios à discussão atual do problema

Nos últimos anos, tem-se verificado um grande aumento na publicação de romances que trazem factos e personagens históricas para o centro de suas ações. Nos romances, podemos ver a forma como os nossos escritores remontam ao passado e dialogam com a sua própria história. Contudo, o romance afasta-se da vida real para nos emergir num mundo fictício.

O romance é pois, antes de mais, uma narrativa. O romancista coloca-se entre o leitor e a realidade que lhe quer mostrar e interpreta-a para ele. Este faz a narrativa de uma história, isto é, uma sequência de acontecimentos encadeados no tempo, desde um início até um fim.

O romancista compõe a história para produzir um certo efeito no leitor, para reter a sua atenção, comovê-lo e provocar a sua reflexão. Sendo assim, organiza a matéria-prima da sua história para lhe dar uma forma artística.

Quanto às suas origens, o romance histórico surge no início do século XIX e caracteriza-se por ser uma narrativa literária ou artística sobre factos históricos reais ou inventados a partir de categorias estéticas. Deste modo, a escrita de um romance histórico exige do autor contemporâneo um espírito metódico sobre um passado que não vivenciou, na busca incessante de conhecimentos históricos que deseja relatar.

O escritor Walter Scott (1771-1832) é considerado o criador do clássico romance histórico em Inglaterra por escrever romances de enredo medieval como a obra Ivanhoe (1819). Em Portugal, quem introduziu o romance histórico foi Alexandre Herculano (1810-1877), que tinha Walter Scott como modelo.

O paradoxo do estatuto do romance histórico reside na ambiguidade de ser uma narrativa simultaneamente verdadeira e falsa (ficção). Se, de facto, o romance histórico envolve, pela sua natureza, um quantum de conhecimento e, possivelmente, de didatismo, o seu quid, porém, é eminente e estético.1

O romance histórico é uma das mais ricas tradições da ficção portuguesa. Contemporaneamente, este género foi objeto de conhecida reabilitação por escritores e por críticos literários. Traçar um panorama evolutivo desde o romance histórico

1In http://www.pedroalmeidavieira.com

(19)

7

romântico até à ficção mais recente foi o objeto de estudo de Fátima Marinho com o seu livro Romance Histórico em Portugal (Marinho 1999) que nos serviu de referência.

Para o estudo do romance histórico é necessário considerar a teoria do nacionalismo romântico, as várias vertentes em que se define e se manifesta e as escolhas pelas quais os escritores optam por afirmar, questionar, recuperar literariamente o que consideram ser nacional.

É durante o romantismo - finais do século XVIII, início do século XIX- que surge o romance histórico, cedo se celebrizando com obras como Ivanhoe, de Walter Scott, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano ou Guerra e Paz de Leon Tolstói.

O Romantismo defendia o primado do sentimento sobre a razão e a liberdade criadora contra as regras. Em Portugal, houve três gerações românticas. Na primeira, sobressaem autores como Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877); na segunda geração, destacam-se autores como António Feliciano de Castilho (1800-1875) e, na terceira, são dignos de relevo Antero de Quental (1842-1871), Camilo Castelo Branco (1825-1891) e Eça de Queirós (1845-1900).

O romantismo, sendo um movimento complexo, deu origem a diversas correntes estéticas, umas contrárias, outras atualizadoras e reformadoras dos princípios românticos, como o Ultrarromantismo, o Realismo, o Naturalismo, o Impressionismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, o Decadentismo, o Neogarrettismo, entre outros.

Depois dos anos 60 do século XX, começa a falar-se em Pós-Modernismo, movimento que, apesar de muitas polémicas, se aceita de um modo geral como sendo aquele que designa as diversas e inconciliáveis expressões estéticas e culturais da atualidade. Os autores deixam de estar ligados a uma estética em particular, criando uma poética personalizada e única. (Machado 2009: 90-91)

O romance histórico possui um fim em si mesmo - o prazer estético da escrita e da leitura, adicionado ao conhecimento da história. Como sugere Harry Show, logo nas primeiras páginas de The Forms of Historical Fiction (Show 1983), o romance histórico pode, a nível do processo narrativo, não se afastar muito dos outros tipos de ficção, sendo a soma de determinado número de ingredientes que lhe conferem características inequivocamente distintivas. Trata-se de um género híbrido (Vanoosthuyse 1996), na medida em que é próprio da sua essência a conjugação da ficcionalidade inerente ao romance, e de uma certa verdade, apanágio do discurso da história.

(20)

8

revelador de, pelo menos, um tempo a que poderíamos chamar tempo da escrita ou da produção do texto. Contudo, tal definição, por mais verdadeira que possa ser, não serve para o que se designa de romance histórico no quadro dos estudos literários. Nesse âmbito, o romance histórico corresponde àquelas experiências que têm por objetivo explícito a intenção de promover uma apropriação de factos históricos definidores de uma fase da história de determinada comunidade humana.

Apesar de logo no século XIX terem aparecido estudos sobre o romance histórico, a verdade é que, só em 1937, aparece o primeiro grande ensaio sobre o género em causa, nomeadamente, a obra de George Lukacs, Le Roman Historique.

George Lukacs considera que, antes de Scott, os romances que se ocupavam de épocas diferentes das dos seus autores se limitavam a uma escolha puramente exterior de temas e de ambientes, sem nenhuma espécie de consciência dos grandes movimentos histórico-sociais. Ainda segundo Lukacs, a obra de Scott seria a grande continuadora do romance social realista do século XVIII, trazendo como inovação a pintura de costumes e de acontecimentos, o caráter dramático da ação e a importância do diálogo. Condições sociopolíticas como a Revolução Francesa, a ascensão e queda de Napoleão ou as convulsões do início do século XIX, contribuíram, de acordo com o mesmo estudioso, para o género romanesco próprio e que se afasta radicalmente de obras do século anterior. (Lukacs 1965: 17)

Martin Kuester apresenta também uma série de definições para o romance histórico, concluindo que a presença de uma consciência histórica numa situação historicamente condicionada se revela fundamental: ‘‘What makes a historical novel historical is the active presence of a concept of history as a shaping force – acting not only upon the characters in the novel but on the author and readers outside it.’’ (Kuester 1992:15).

A ideia de que um bom romance histórico ensinava mais do que um livro de história preside a grande parte do nosso século XIX e princípio do século XX, chegando Herculano a afirmar que Walter Scott ou Alfred de Vigny ensinaram mais do que os historiadores.

Segundo o autor de Le Roman Historique, Georges Lukacs, a partir de 1848 as mudanças político-sociais acarretaram modificações na conceção do romance histórico, tornando-o mais subjetivo e um protesto contra a trivialidade sórdida da época capitalista.

(21)

9

No romance histórico não existem, na verdade, limites epistemológicos, apenas a sabedoria (e o talento) de harmonizar esteticamente factos e personagens de culturas e épocas diferentes.

O crítico literário David Roberts, na ‘‘Introdução’’ à obra The Modern German

Historical, afirma que o romance histórico se caracteriza pela consciencialização da

diferença temporal entre o processo presente da representação e a realidade pretérita representada, que é atualizada pela poética da ficção, abarcando a definição também os binómios facto/ficção e passado/presente (Roberts 1991:3).

Outro ensaísta, McEwan refere que todo o romance é ficção, ou seja, apesar de os acontecimentos históricos fazerem parte da intriga, esta é fruto da imaginação criativa do romancista, concluindo: ‘‘The history and the fiction cannot be judged apart, and this sort of writing will never satisfy purists’’ (MCEwan 1987: 25; 184).

Por sua vez, Manzoni considera que a verdade factual é incompatível com a ficção (Manzoni 1984: 72-74), afirmando que a história nos apresenta acontecimentos que apenas são conhecidos do exterior (Manzoni 1984: 23), pois as palavras, o pensamento e os sentimentos humanos permanecem em silêncio, tornando-se, portanto, domínio da poética. De acordo com Lascelles (1980: 113-135), a ‘‘História fictícia’’, ou seja, a (re) criação de um acontecimento histórico que nunca aconteceu, descreve ‘‘aquilo que poderia ter sido’’. Mais complementar do que divergente, Cowart (1989:6) define o romance histórico com base na proeminência do passado e na consciência histórica manifestada através da ação e das personagens, enquanto para Lascelles (1980: 20) e Block (1970:3), a inter-relação entre ficção e história demonstra o poder de incentivo dos romancistas, uma vez que os factos históricos podem ser posteriormente investigados pelo leitor. Maria Alzira Seixo resume, em nossa opinião, estas relações a partir de quatro perspetivas de trabalho, a saber:

1) Através da história literária (captação do sentido evolutivo dos modos de escrever, ler, ensinar e difundir a literatura);

2) Através da interdisciplinaridade que convoca o conhecimento da história e da literatura, entendendo os estudos literários como interação do espaço das ciências da linguagem e dos estudos de estética com o das ciências históricas, ou seja, o estudo do relacionamento entre a poética (cenas de fabulação) e a historicidade (cenas de convocação histórica);

(22)

10

3) Através do estudo da história em geral entendida como memória de um passado humano coletivo possível de ser reconstituída e alterada verbalmente e, portanto, tema ou motivo de textualização literária;

4) Através da aceção da história como movimento acional de um texto, como intrincado de problemas e atuações, como intriga ou efabulação, pois contar uma história é remeter para situações idênticas que se reportam a um mundo ‘‘real’’ (circunstancial) e ao imaginário da memória comum (Seixo 2004: 231-241).

José Saramago descreve as opções do romancista que ora escolhe os caminhos da história como a reprodução o mais fiel possível dos factos conhecidos, ora entretece alguns dados históricos no tecido predominantemente ficcional (Saramago 1990: 17-20).

A abordagem literária do romance histórico, e sobretudo do passado enquanto elemento referencial do mesmo, tem como ponto de partida a ficcionalidade do texto e o conceito de ‘‘mundos possíveis’’ que, segundo David Herman, designa uma categoria mais abrangente do que a expressão ‘‘mundos ficcionais’’ (Herman 1992:22).

Na verdade, o romance histórico, ao efabular mundos possíveis, evoca e representa, premeditadamente, universos ficcionais (Reis 12-1992:145) com referentes extratextuais explícitos, afirmando Roland Barthes que o próprio discurso histórico, à semelhança do romance realista, não produz realidades, mas sim ‘‘o efeito do real’’ (Barthes 1968: 84-89), na tentativa de esbater ou aproximar as realidades entre realidade e ficção.

De acordo com Dolêzel, e sempre em relação a uma semântica especificamente literária:

1) O romancista goza de uma liberdade superior à do historiador para se mover em mundos possíveis;

2) Um mundo possível onde figuras históricas interagem com personagens ficcionais não é um mundo histórico;

3) Os mundos ficcionais - constructos literários - e históricos não são habitados por pessoas reais, mas sim pelos seus possíveis correspondentes, que podem ser alterados ao serem transpostos para a ficção;

4) Os mundos ficcional e histórico são incompletos e os ‘‘vazios’’ uma característica da sua macroestrutura, enquanto as escolhas e modificações do romancista

(23)

11

são determinadas por fatores estéticos e semânticos (Dolêzel 1988:482-493; Idem, 1999:256-258; Eco 1997:101-115; Dominguez 1997:11-40; Oboe 1997:9-16).

O romance histórico tem sido associado pela crítica ao romance regional (Kelly 1998:1083), cuja ação tem lugar num ambiente social e ecológico específico intensamente caracterizado, subgénero que, tal como o denominado romance de espaço, focaliza a sua atenção no modus vivendi e na paisagem natural e humanizada de uma determinada região, bem como nas diversas comunidades que ocupam o texto de forma predominante (Snell 1988:1).

O narrador do romance histórico, frequentemente heterodiegético e omnisciente, afirma-se, por vezes, como um historiador/investigador e também, até certo ponto, biógrafo que guia o leitor através da história e dos arquivos, utilizando, nos romances tradicionais, o pretérito perfeito ao rentabilizar a distanciação com o passado histórico através de apartes, comentários e descrições possíveis apenas algum tempo depois do tempo da ação.

O romance histórico, enquanto subgénero híbrido, acarreta, desde a publicação de Scott, problemáticas específicas ao nível da sua receção e classificação num estudo sobre a estética da receção e o romance histórico. Stein (1981:213-231) revê a teoria iseriana da resposta estética, ou seja, do leitor perante os acontecimentos históricos e as estratégias narrativas de Scott, afirmando que a ‘‘moldura’’ do romance histórico confere ao leitor a capacidade e a obrigação de julgar as ilusões e as escolhas das personagens, constituindo os conhecimentos históricos uma importante parte do processo, pois o leitor sabe, muitas vezes, o que aconteceu na ação histórica ‘‘real’’.

As expectativas do leitor, baseadas na história ‘‘real’’, poderão, assim, levá-lo a criticar o ‘‘desvio’’ do romance em relação à mesma, relegando para segundo plano o estatuto predominantemente ficcional ou os exercícios de paródia e/ou de questionamento quer da história quer da ficção histórica existente no texto, como acontece sobretudo nos romances históricos modernistas e pós-modernos.

O leitor pode, após a leitura de uma dada obra, verificar a (maior ou menor) historicidade dos factos representados, preocupação presente nos escritos teóricos dos romancistas Bulwer-Lyton e Wilkie Collins, não sendo a historicidade absoluta um requisito essencial do subgénero (Ovel 1995: 18-24).

A ficção histórica confere ao autor/narrador liberdade total para se (re) apropriar dos factos que ficcionaliza ao construir um mundo ‘‘possível’’, pois como refere Lukacs

(24)

12

(Lukacs 1965: 43-44): ‘‘il n’importe donc pas dans le roman Historique de répéter le récit des grands événements historiques, mais de réssusciter poétiquement les êtres humains qui ont figuré dans ces événements’’ (apud Swinden 1984: 12).

Não é possível imputar ao romance histórico o dever ou sequer a pretensão de ser ‘‘pura’’ historiografia, procurando uma reconstrução fiel da realidade dos episódios históricos. Daí que, como já vimos, Dolêzel (1999: 247-276) distinga ficcionalização e narrativização, ou seja, a criação de mundos possíveis e a narrativização de acontecimentos e factos históricos verificáveis que se incorporam no tecido do texto como microenredos.

Também Iser, ao estudar a receção dos romances de Scott, conclui que a história se relaciona com a estética e a imaginação, transformando-se a ‘‘realidade factual’’ em ‘‘cenas imaginadas’’ (Iser 1974: 92-93).

O romance histórico não exige ou sugere uma análise a partir exclusivamente da realidade histórica que a ficção toma como referência extratextual, mas sim um estudo da forma como os elementos históricos, enquanto estratégias narrativas, se encontram ao serviço da construção da própria narrativa.

Se, por um lado, os elementos históricos não se sobrepõem à dimensão ficcional do romance histórico, por outro, analisar a obra sem recorrer à contextualização histórica seria uma tarefa lacunar. Muita da riqueza e do significado da obra se perderiam, uma vez que a essência do subgénero reside na hibridez que surge da fusão premeditada da história com a ficção.

Na senda de Scott, Dumas e Hugo, entre outros (Nemésio 1978: 286; Nemésio 1936), Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Rebelo da Silva, cada um a seu modo, são os primeiros a desenvolver, a partir do original e das traduções de André Joaquim Ramalho e Sousa (1790-1860), o romance histórico em Portugal (André Joaquim Ramalho e Sousa: 14-16, 86), espelhando o subgénero as realidades literária e histórico-social portuguesas.

Os autores em questão são seguidores da estética romântica, marcada pelo interesse relativamente ao passado histórico nacional (Nogueira 1972), pelo didatismo e pelos ensinamentos (históricos) associados ao subgénero (Pires 1979) e que surgem através de paralelismos estabelecidos através do binómio passado/presente.

O atraso das primeiras tentativas portuguesas de romance histórico em relação ao resto da Europa é justificado por Chaves, recorrendo a duas causas convergentes: ‘‘O atraso da vida social e política no Portugal de então; o quase completo alheamento do

(25)

13

movimento cultural e artístico europeu em que se vivia no país e do qual o português só tomava consciência quando emigrava’’ (Chaves 1979: 6).

O início do fenómeno, a prática do subgénero encontra-se intimamente relacionada com a imprensa periódica portuguesa, destacando-se oito periódicos/folhetins, nos quais, entre 1837 e 1867, publicaram autores como Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Cunha Rivara, Rebelo da Silva, Fernando Luís Mouzinho de Albuquerque, Oliveira Marreca e Soares Franco Júnior, a saber: Revista

Literária do Porto; O Panorama; Ilustração; Cosmorama Literária; Revista Universal Lisbonense; Revista Popular; Jornal do Comércio e Época.2 [vide cronologias do

romance histórico português no 1.º e 2.º romantismos (1837-1867), de Chaves, 1979: 69-84, e Marinho, 1999: 309-319].

O romance histórico é, desde cedo, utilizado para chamar a atenção relativamente aos problemas do momento da escrita, como se verifica na obra de Herculano, Garrett e Rebelo da Silva.

Já em 1890, Manuel Pinheiro Chagas na obra A Joia do Vice-rei (Chagas s.d:5) afirma que o romance histórico Scottiano ou dumasiano está ultrapassado, pois a ideia de encarar a história como pano de fundo do texto (sendo as cenas fruto da criação literária do autor) apresenta inconvenientes ao fundir ‘‘a mentira com a verdade’’, uma vez que o Portugal do final do séc. XIX anseia por ‘‘exatidão’’, acentuando-se a problemática da realidade ou fidedignidade histórica versus ficção. Esta temática é recorrente no âmbito da receção do romance histórico, como se verifica com o caso de

Equador, uma obra ficcional criticada pelas suas inexatidões históricas (Guedes 2004:

188).

A descrição de espaços históricos públicos e privados, da arquitetura, da cor local/regional, o cariz (pseudo) etnográfico de diversas narrativas, a toponímia, as manifestações populares e as personagens históricas associadas a determinados locais e/ou acontecimentos assumem-se, obviamente, como características do romance histórico português através de obras como A Quinta da Virtude de Mário Cláudio (Cláudio 1990).

A intriga do romance histórico é construção inventiva do autor com base em alguns acontecimentos verídicos, atuando a história como ‘‘fonte de energia dramática’’ (Marinho 1999:26), uma das especificidades atribuídas ao subgénero em questão, já que

2Sobre as cronologias do romance histórico português no 1.º e 2.ºromantismos (1837-1867), são elucidativas as obras

(26)

14

o tempo histórico, enquanto categoria da narrativa, deverá ser predominante e tão relevante como a ação privada (também esta histórica) em que as personagens se movem.

1.2. Alexandre Herculano, o fundador em Portugal

O interesse pelo passado nacional é um dado inquestionável de toda a estética romântica. No início do século XIX, começa a surgir uma preocupação em estabelecer a cientificidade da história, uma disciplina que tinha vivido muito da confusão entre lenda e realidade.

A história apaixonou muitos intelectuais românticos, designadamente, Alexandre Herculano que percorreu o país à procura de documentos que esclarecessem a vida medieval portuguesa. E não é menos verdade que uma certa efabulação com base histórica - nomeadamente a criação de universos simultaneamente fictícios e referenciais - foi uma constante de um período específico do romantismo europeu e português.

A liberdade, inerente a toda a criação literária, não está ausente do romance histórico. O romancista sabe que só poderá construir o seu passado se aceitar o desafio da dialética entre o verdadeiro e o verosímil, ou entre o que ele realmente viu documentado e o que imaginariamente afirmou ter visto.

Tornou-se quase obrigatório para os autores românticos retomar o velho tópico da veracidade, afirmando que os seus textos não são mais do que simples reposições de manuscritos encontrados no fundo de conventos ou bibliotecas.

O romancista prefere, frequentemente, construir a diegese com heróis inventados, relegando, para segundo plano, as personagens referenciais que obrigam, de certa forma, a uma menor liberdade de efabulação.

Os romances de Scott tratam, em geral, de importantes acontecimentos sociais, que constituem um fundo histórico verdadeiro onde se movimentam personagens fictícias em cenas imaginárias.

O herói scottiano possui, como diz Lukacs, um caráter moderado (Lukacs 1977:33) e nunca se deixa envolver por uma paixão que lhe retire a capacidade de discernimento ou de atuação:

(27)

15

Le ‘héros’ de Scott est toujours un gentleman anglais plus ou moins mediocre, moyen. Il possède généralement un certain degree, jamais eminent, de sagesse pratique, une certaine fermeté et une certaine bien science morale, qui va même jusqu’à l’aptitude au sacrifice de soi, mais ne devient jamais une passion impétueuse, n’est jamais un dévouement enthousiaste à une grande cause’’(Lukacs 1977:33).

Harry Show, em The Forms of Historical Fiction (Show 1985), apresenta uma tipologia de romance histórico que ajuda a marcar as diferenças fundamentais entre Scott e Herculano. Em Herculano romancista, a história é usada ‘‘to intensify a fictional story’s imaginative force’’ (Show 1985:82), onde a personagem ‘‘function not as a symbol of historical process, but as the focus for our timeless hopes and fears’’ (Show 1985:97).

As personagens constituem, na verdade, um domínio privilegiado no estudo do romance histórico, uma vez que uma parte delas tem uma existência histórica definida, limitando, de certa forma, a liberdade do narrador.

1.3. Miguel Real: tipos de romance

O Romance Histórico em Portugal, desde a publicação de Memorial do

Convento, de José Saramago, em 1982, sofreu uma evolução marcante. Do ponto de

vista da história das mentalidades, o Romance Histórico tem contribuído - após a perda do império em 1975 e a aceleradíssima entrada na Comunidade Europeia a partir de 1986 - não só para harmonizar os portugueses consigo próprios como, igualmente, para reabilitar o passado histórico português ao olhar virgem das novas gerações.

Miguel Real, escritor e ensaísta, divide o Romance Histórico em quatro conjuntos diferentes, que consideramos oportuno enunciar: são eles o romance de reconstituição histórica, o romance de construção histórica, o romance histórico de fundo epistemológico e o romance histórico subversor da própria história. O romance de reconstituição histórica é por ele subdividido em cinco tipologias, nomeadamente o romance de análise histórico-político-social, o romance histórico de empenhamento social e cultural, o romance histórico pícaro, o romance histórico psicológico e o romance histórico fundado no maravilhoso.

(28)

16

1.3.1. Romance de reconstituição histórica

Trata-se de um romance que visa ‘‘reconstituir’’ com autenticidade e fidelidade a sociedade, os grupos sociais, as instituições, os costumes, os usos, os rituais e a mentalidade da época abordada no romance, criando ou explorando personagens e temas problemáticos de importância vital para a história portuguesa (guerras e/ou batalhas, revoluções político-sociais, conquistas em África, …). Segundo a perspetiva e a classificação do crítico e ensaísta, este tipo de romance pode subdividir-se em:

1.3.1.1. Romance de análise histórico-político-social

É um romance que evidencia fielmente o passado segundo a atual interpretação dos documentos, integrando-se, nesta vertente, a maioria dos atuais praticantes do romance histórico, tendo Fernando Campos como patriarca e mestre nesta arte, desde A

Casa do Pó (1986), Richard Zimler, Júlia Nery, Mário de Carvalho, Seomara da Veiga

Ferreira, Luís Rosa, Carlos Ademar, João Paulo Oliveira e Costa, Deana Barroqueira, José Manuel Saraiva, Domingos Amaral, Rosa Lobato Faria, Sérgio Luís de Carvalho e Pedro Almeida Vieira. Os dois últimos autores destacam-se por se evidenciarem como os novos rostos do romance histórico português no séc. XXI.

1.3.1.2. Romance histórico de empenhamento social e cultural

Trata-se de um romance que valoriza, por um lado, os atributos ético-políticos do autor, evidenciando, no passado, a difícil luta pela conquista de direitos sociais e individuais.3 Por outro lado, é um romance que evidencia a complexidade de constantes da cultura e da identidade portuguesas, como o mito amoroso de Pedro e Inês, o sebastianismo e a saudade. 4

1.3.1.3. Romance histórico pícaro

Pode definir-se como um romance resgatador de uma tradição castelhana e portuguesa, que remonta a Fernão Mendes Pinto, tendo em Mário de Carvalho e J. Palma-Ferreira (D. Gibão) os seus últimos cultores no século XX, assumindo-se Paulo Moreiras, com D. Fuas Bragatela, como o seu novo cultor no século XXI.

3

(Por exemplo, José Jorge Letria descreve a vida de Bocage e a existência da corte portuguesa de D. João I no Brasil).

4

(António Cândido Franco e os seus romances sobre estes temas, bem como as suas narrativas sobre a vida e a obra de Teixeira de Pascoaes).

(29)

17

1.3.1.4. Romance histórico psicológico

Trata-se de um romance que visa a complexidade psíquica das personagens e a reação comportamental destas face ao inter-relacionamento social (espanto, pânico, dor psíquica, tristeza, alegria, abatimento, amargura, sentimentos amorosos, ódio, …) compõem o quadro integrador da ação das personagens, como poderemos constatar na obra As Fogueiras da Inquisição (2008), de Ana Cristina Silva.

1.3.1.5. Romance histórico fundado no maravilhoso

É um romance que assenta na leitura da história num ponto de vista assombroso, de que é exemplo o romance Lillias Frazer (2001), de Hélia Correia.

1.3.2. Romance de construção histórica

O romance de construção histórica coloca o espaço social e o tempo tematizados na narrativa que, devido à escassez de documentos e testemunhos, força o autor não a uma reconstituição fiel mas a uma reconstrução plausível, evidenciando mais as possibilidades e menos as certezas históricas. Disso são exemplos as obras de João Aguiar A Voz dos Deuses, A Hora de Sertório e Uma Deusa na Bruma.

1.3.3. Romance histórico de fundo epistemológico

Trata-se de um romance que visa a problematização das certezas históricas garantidas pelos historiadores e correntes nos manuais da especialidade, explorando novas possibilidades hermenêuticas e postulando novos quadros interpretativos. Maria João Martins e Joaquim Fernandes são alguns dos autores deste tipo de romance.

1.3.4. Romance histórico subversor da própria história

É um romance que assenta numa conceção nova de tempo e na conceção da ficção como iluminação da história, sobrevalorizando a humanidade. José Saramago, nas obras História do Cerco de Lisboa e O Evangelho Segundo Jesus Cristo e António Lobo Antunes, com a obra As Naus, praticam o romance histórico subversor da própria história.

(30)

18

Com base nesta fundamentação teórica sobre o romance histórico como modalidade genológica, analisaremos, na segunda parte deste trabalho, o romance histórico de José Leon Machado, tendo em conta a obra e o homem (autor textual e empírico).

(31)

19

PARTE II

CAPÍTULO II

JOSÉ LEON MACHADO:

O AUTOR E O TEXTO NO SEU

ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

(32)

20

1. Breve Biobibliografia do autor José Leon Machado

Sem enveredarmos por uma perspetiva biografista, urge, contudo, um enfoque sobre o autor empírico, indissociável do autor textual e do texto produzido.

Pseudónimo de José Barbosa Machado, Leon Machado é um escritor da pós-modernidade. Além de ensaísta e crítico literário, é também escritor, tendo múltiplas obras publicadas em diferentes modalidades genológicas. Destacam-se, neste âmbito literário, romances, contos e novelas, poesia e teatro, diários, crónicas, coletâneas e literatura infantil (cf. Anexo 2).

Nas suas diversas criações literárias, retrata a questão das origens, passando pelo fim do mundo rural, até à perda da memória cultural da sociedade moderna.

Trata-se de um escritor que revela um gosto peculiar por autores portugueses como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Virgílio Ferreira e por autores anglo-saxónicos (David Lodge, Paul Auster, Philip Roth, Salinger, Steinbeck). Além destes, merece ainda destaque Umberto Eco, isto para citarmos apenas alguns.

Leon Machado possui, como referências literárias, alguns romancistas portugueses dos séculos XIX e XX e alguns poetas, como Camões, Fernando Pessoa e Alexandre O'Neil.5

Os seus conhecimentos sobre astronomia refletem-se em algumas das suas obras, pois trata-se de um autor que revela um fascínio pela existência de centenas de exoplanetas que se encontram muito perto do sistema solar e que já foram confirmados, não excluindo a hipótese de não estarmos sós no universo.

Usa, como ferramenta linguística, uma escrita abrangente a todos os leitores, não dirigida a um tipo específico de leitor erudito, afastando-se, em larga medida, da escrita de grande parte dos autores portugueses atuais, que considera, segundo uma entrevista recente, ‘‘na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.’’6

A escrita do autor afasta-se destas tendências e tem um pendor clássico, dentro da tradição de Eça de Queirós e Vergílio Ferreira, sem (porém) cair na imitação fácil. No entanto, caracteriza-se por ser um escritor pós-moderno, pois escreve ‘‘à sua maneira’’, tentando fugir às regras. Segundo palavras do autor: o estilo é objetivo,

5

In http://dmagia.blogspot.pt/2010/10/entrevista-jose-leon-machado.html

6

(33)

21

sintético e de pendor clássico: ‘‘Como corrente estética, sem dúvida, integro-me no mar que é o pós-modernismo.’’7

Tem colaborado em jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária e a par do seu trabalho de investigação e de ensino, tem-se dedicado à escrita criativa, especialmente à ficção.

A obra que nos propomos abordar é um romance histórico marcado pelo hibridismo genológico característico da pós-modernidade. Para a escrita do romance,

Memória das Estrelas sem Brilho, o escritor inspirou-se em alguns filmes,

nomeadamente, no filme ‘‘Um longo domingo de noivado’’, cuja estreia foi a 27 de janeiro de 2005. Trata-se de um filme que retrata a busca incessante de Mathilde que procura o seu noivo Manech desaparecido nas trincheiras, durante a I Guerra Mundial. Ela acredita que ele está vivo e tudo aponta o contrário e é essa esperança que faz com que ela não desista dessa busca, aparentemente, interminável. O seu último romance publicado intitula-se Vórtice.

2. Enquadramento histórico da obra Memória das Estrelas sem Brilho

A ignorância estrangeira sobre a atuação do Corpo Expedicionário Português (CEP), nome dado à organização militar enviada para o setor português, em França, foi flagrante.

Portugal participou na denominada Grande Guerra (I Guerra Mundial), de 1914-1918, em duas frentes militares: a europeia e a africana. Cerca de 55 000 homens partiram de Alcântara para a Flandres onde lutaram mais de dois anos, entrincheirados, por metros ou quilómetros de terreno, em nome (julgavam eles) da liberdade, da justiça e do direito. Entretanto, o ano de 2008 comemorou os noventa anos da Batalha de La Lys, a 9 de abril de 1918.

O Corpo Expedicionário Português partiu em janeiro de 1917, a maior parte dos soldados sem saber o porquê desta ida para terras estranhas da Flandres. E por lá permaneceram até 1919, vivendo a guerra internacional, a guerra da república portuguesa e a guerra privada de cada um e dos grupos de camaradas em que se inseriram.

Desde agosto de 1914, o partido de Afonso Costa, os Democráticos ou ‘‘Afonsistas’’, dissidente do Partido Republicano Português e conotado com a política

7

(34)

22

de esquerda, viu a intervenção militar portuguesa, no palco europeu, como a solução para diversos problemas com que se confrontava, enquanto Partido Republicano de Poder.

Ao nível externo, pretendia-se o adiamento do problema das colónias cobiçadas por ingleses e alemães, ao lutar ao lado dos presumíveis futuros vencedores. Pretendia-se ainda a consolidação do jovem regime republicano na esfera internacional, a harmonização das relações luso-britânicas, em pé de igualdade, ao lutar junto dos ingleses tal como a distinção ou contraste de Portugal face à posição neutral e germanófila de Espanha, ao recusar a neutralidade num contexto anglófilo.

Ao nível interno, desejava-se atenuar ou adiar os conflitos político-sociais existentes na sociedade portuguesa, reforçar o Partido Democrático e criar uma identidade própria no seio da jovem república, ao mobilizar a sociedade num esforço comum – a guerra.

Os opositores aos objetivos ‘‘guerristas’’ de Afonso Costa, os republicanos, os monárquicos, os clericais e alguns setores do exército, preferiam a concentração de esforços militares portugueses nas colónias ao envio de tropas para França, para uma guerra na qual não vislumbravam qualquer benefício. (Marques 2008: 18)

Entretanto, Portugal não possuía os recursos suficientes para a guerra, tendo em conta que as fábricas nacionais não produziam armamento e munições suficientes e, por isso, não resolviam a lacuna portuguesa e a importação de artigos ingleses. A redução dos Cursos da Escola de Guerra e o aumento das turmas da Escola Preparatória de Oficiais Militares não permitia formar muitos e bons oficiais, em tempo útil.

As rivalidades políticas entre Estados Europeus estavam bem presentes. A Alemanha, cada vez mais industrializada, fazia concorrência à Inglaterra. Em 1870, a França perdera os territórios da Alsácia e da Lorena para a Alemanha e queria, a todo o custo, recuperá-los.

Os aliados (Inglaterra e França) preferiam ver em Portugal um potencial colaboracionista, mero fornecedor de equipamento militar. Desde setembro de 1914, o governo francês pedia, com o consentimento britânico, peças de artilharia portuguesas para reequipar o exército francês.

Esse papel secundário foi de imediato recusado pelos apoiantes da República que rapidamente aproveitaram a oportunidade para impor o envio de tropas portuguesas a acompanhar o equipamento militar e, desta forma, forçar uma entrada no palco de uma guerra europeia. (Marques 2008:19)

(35)

23

A apresentação de uma contraproposta portuguesa de envio de uma Divisão de tropas portuguesas de apoio às peças de artilharia, a enviar para França, saldou-se na entrega do Memoradum inglês ao ministro português, em Londres, convidando o nosso país a intervir no teatro de operações europeu, a 10 de outubro de 1914, e na consequente aprovação da proposta do Presidente do Ministério, Bernardino Machado, no Congresso, autorizando o Governo a intervir na guerra quando e onde lhe parecesse mais conveniente, a 23 de novembro de 1914. Sendo assim, a neutralidade portuguesa não era declarada e a beligerância era legitimada num contexto europeu e anglófilo. (Marques 2008:20)

O governo democrático conseguiu desenvolver um processo longo mas determinante de negociações diplomáticas e militares, entre gabinetes portugueses, ingleses e franceses, de forma a Portugal entrar na Guerra Europeia contra a vontade de Inglaterra.

Lisboa recebeu o mês de março de 1916 num clima de grande tensão. Multiplicavam-se os boatos sobre a iminente entrada de Portugal na Guerra das Trincheiras europeia. O Diário de Notícias e O Século foram os dois jornais responsáveis por esta divulgação. A 9 de março de 1916, o ministro alemão entregou, em Lisboa, uma declaração de guerra ao ministro de negócios estrangeiro português. (Marques 2008: 21)

Tancos foi o local escolhido para a concentração da Divisão de Instrução, e abril de 1916 foi a data marcada para o início da instrução.

Apesar das limitações que encerrava o Campo de Instrução, o cenário de Tancos, propagandeado pela imprensa, nomeadamente na Ilustração Portuguesa e no Diário de

Notícias, tal como em conferências e tertúlias realizadas nos teatros e cafés de Lisboa,

tinha tido a sua comparticipação para este desfecho e o Estado-Maior, em Tancos, rejubilava e celebrava com Norton de Matos.

Em Lisboa, foi lançado o boato de que as unidades se recusariam a embarcar (Marques 2008: I). Então, Norton de Matos incumbiu o general Tamagnini, a 27 de dezembro de 1916, de visitar as unidades constitutivas do primeiro contingente a embarcar para França.

De forma a obrigar a Inglaterra a mudar de ideias, o governo português ameaçou reter, no país, o corpo de artilharia pesada e os construtores de caminhos-de-ferro, unidades criadas de raiz por sugestão inglesa devido à necessidade urgente destes serviços para a campanha europeia. Desta forma, a mobilização, em meados de 1916, de

(36)

24

uma divisão de instrução foi reforçada com mais 10 000 militares. No ano seguinte, tendo em conta os interesses políticos, o corpo expedicionário de uma divisão, sem comando autónomo, foi elevado a corpo de exército de duas divisões, com comando autónomo, com cerca de 55 000 efetivos. A mobilização cresceu desmesuradamente, sem igual instrução, e obrigou a criar uma força militar de características originais na história do país.

Brest seria o porto de desembarque para milhares de militares, de diferentes nacionalidades. Nas águas do porto, porém, abundavam os destroyers, os contratorpedeiros e os cruzadores-couraçados (navios de guerra usados no decorrer da I Guerra Mundial), de grandes dimensões e desconhecidos para muitos recém-chegados.

O embarque em navios estrangeiros, sob bandeira inglesa, e a despedida da terra natal para ir combater em terras francesas, de má memória devido às invasões napoleónicas do século anterior, fez com que o capitão David Magno escrevesse o seguinte:

[embarcamos num] navio monstro, negro, onde li ‘Bohemiam - D - que nos fez vir à ideia o horror de tudo aquilo, se um submarino nos metesse no fundo, desde o sair da barra. A seguir ergui a vista para os mastros; procurei mas não avistei a nossa querida bandeira, pela qual nos íamos bater ou morrer. […] Quando me vi à sombra da bandeira britânica, […] caiu-me o coração aos pés e senti-me um escravo… da liberdade! […] Abandonados de quaisquer saudações, os nossos soldados lá embarcaram equipados, de saca de roupa na mão, como um rebanho atraz de outro rebanho, […] atenuada a sua tristeza apenas pelo gosar antecipado da passagem atravez de um paiz maravilhoso ou ideal. Iam bater-se por tanta coisa que alguns lhe disseram que, eles, submissos e ignorantes, em geral, quasi não sabiam pelo quê. Havia-se decretado ódio à Alemanha mas… maiores agravos tínhamos dessa mesma França que estávamos sinceramente amando, apesar de em 3 anos napoleónicos ter feito derramar torrentes de sangue e lágrimas.’’ (Magno 1921: 24-25)

Recorde-se, neste contexto, a ‘‘Guerra das Laranjas’’ em que Napoleão, ao invadir Portugal, queria atingir diretamente os interesses comerciais da Inglaterra.

Portugal não tomava partido entre a Inglaterra e a França, para tentar um equilíbrio que pusesse a salvo a sua soberania e os seus interesses.

Napoleão queria um apoio nítido e declarado de Portugal. Como não conseguiu qualquer ajuda dos portugueses, assinou o Tratado de Fontainebleau com Espanha, no qual se decidia a invasão de Portugal e a sua conquista. Deste modo, o território português ficaria repartido em três reinos: Lusitânia Setentrional, Algarve e Centro de Portugal. Esta foi uma guerra peninsular que durou entre 1807 e 1814 (período também conhecido como o das invasões francesas de Portugal).

(37)

25

3. Os envolvidos

Tamagnini foi o General escolhido para comandar a Divisão de Instrução mobilizada em Tancos e o CEP, como também para apoiar os Aliados na guerra contra a Alemanha. Percorreu o país, acompanhado de um grupo de militares (nomeadamente o Coronel Gomes da Costa), com a missão de vigiar e controlar as três marchas das unidades para o cais de embarque, de forma a realizar-se o sonho ‘‘guerrista’’ do Governo Democrático. O General Tamagnini procurou restringir a liberalidade das Juntas Médicas em conceder licenças aos expedicionários, nomeadamente aos oficiais, ao exigir a sujeição da Junta Médica, superior a 30 dias, à sua confirmação enquanto Comandante Geral (só aprovada mediante uma declaração médica sobre o estado de saúde do enfermo a licenciar) e a sujeição do enfermo a uma Inspeção Médica para atestar o agravamento da falta de saúde, quando a Junta Médica desejasse prolongar a licença por períodos de 60 a 90 dias. Bernardino Machado, Afonso Costa, Norton de Matos, entre outros, figuraram na I Grande Guerra. Norton de Matos foi considerado um dos chefes supremos da Formiga-Branca, que não se sentiu saciado com os 80 contos que da Inglaterra recebera para fazer o 14 de maio. Venderam os nossos soldados como ‘‘carneiros’’. Foram sem fatos, sem munições, sem botas e sem armas para provar ao mundo inteiro que não havia cobardes no exército português. Algumas armas como a metralhadora ligeira Lewis, os morteiros e as granadas de mão e de espingarda, eram desconhecidas da instrução em Portugal. Para além destas armas, os nossos soldados tiveram que lidar com outras inovações durante a I Guerra Mundial, nomeadamente: gás de cloro; máscaras de gás; arame farpado; canhões de grande alcance; zepelins; aviões e submarinos.

A terra de ninguém era apelidada, oportunamente, Avenida Afonso Costa como meio de os militares exteriorizarem a ira pelo facto de terem sido obrigados a sujeitarem-se a um espaço de horror, personalizando no Primeiro-ministro todo o ressentimento que sentiam.

No decorrer desta impiedosa e sangrenta guerra, existiram dois jornais de trincheiras de autoria portuguesa e de curta duração, O Jornal Caserna e O Luso, sendo este último posterior ao armistício.

Com o objetivo de impedir a transmissão de informações consideradas valiosas para o inimigo e de informações que abalassem a moral da população em Portugal, as

Imagem

Figura 1: Capa do livro 9
Figura 6: O selo e a Deusa Ceres 18

Referências

Documentos relacionados

A industrialização nas cidades grandes, os avanços tecnológicos e os investimentos da infraestrutura dessas cidades são alguns dos motivos para o crescimento da

Jorge Género Interação/Cenário/Photopoint Classificação Etária Todas as idades Preço Gratuito.. Dois espaços de Educação ambiental, com animação, sobre a importância

histórico-culturais da leitura, os usos sociais da escrita e o lugar do leitor como agente principal da construção do literário são determinantes – ao lado de outros fatores que

Nessa passagem, a perspectiva da voz narrativa está desvinculada da perspectiva da personagem Bia e a presença da autora é sugerida sem os subterfúgios

O presidente da província, também era conhecido como Conselheiro Saraiva, foi o grande responsável pela transferência da capital do Piauí de Oeiras para Teresina.. 87 José

A complexidade de um autor como Régio não autoriza nem le- gitima explicações fáceis para a sua produção. Mas ao analisarmos a obra de Régio, e movidos por esta

fazendo a legislação se antecipar ao fato social, inspirou a outorga da dinâmica disciplinar diferenciada da relação de trabalho, antes que os trabalhadores se

Maria das Graças Fonseca Andrade - DELL Mariângela Borba Santos - DELL Ricardo Martins Valle - DELL Rita de Cássia Mendes Pereira - DH Valdira Meira - DELL.