• Nenhum resultado encontrado

EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS POUCO ESCOLARIZADOS

2. O reconhecimento de adquiridos experienciais

Em Portugal, a partir de 2000, a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA) lançou um conjunto de iniciativas inovadoras dirigidas a adultos pouco escolarizados, nomeadamente os cursos EFA de dupla certificação (escolar e profissional) e a rede de centros de RVCC. Originalmente, estas práticas emergentes são caracterizadas pela inovação: o reconhecimento e

validação de competências, a ênfase dada ao acompanhamento dos adultos, a aposta em percursos individualizados e “à medida” de cada pessoa (Cavaco, 2009, p. 593). A mesma autora refere que recentemente surgiu um conjunto de correntes teóricas no campo das ciências sociais que contribuíram para criar as condições favoráveis ao desenvolvimento de políticas e práticas de

reconhecimento de adquiridos experienciais (…): o movimento da educação permanente, a corrente da abordagem biográfica e a valorização da educação não formal (Cavaco, 2009, p. 597).

No entanto, as primeiras práticas de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais remontam aos anos 50 do século passado e localizam-se nos Estados Unidos da América e no Canadá. Trata-se de práticas de inspiração humanista, que visavam o desenvolvimento e a valorização pessoal do indivíduo. A partir dos anos 90 ganharam destaque e projeção social quando se adotou o processo de reconhecimento de adquiridos como domínio estratégico nas políticas ativas de emprego e de gestão de recursos humanos.

Subjacente às práticas de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, encontra-se o conceito de adquiridos experienciais, o qual destrona a importância da educação formal e, na linha de pensamento de Ivan Illich, põe em causa a hegemonia da educação formal institucionalizada. Na perspetiva deste teorizador austríaco,

a educação de adultos é uma alternativa aos próprios processos de institucionalização, mercadorização e peritocracia. A educação de adultos é, assim, sinónimo de aprendizagem, em oposição à educação formal. Na educação de adultos, o conhecimento é criado pelas pessoas, não para as pessoas (…) (Finger e Asún, 2003, p.23).

Segundo Cavaco (2009), no nosso país, as práticas de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências estão enquadradas em políticas de educação e formação orientadas para a gestão de recursos humanos numa lógica de competitividade económica, porém fundamentam-se em metodologias de valorização da experiência da pessoa. Logo, gera-se tensão na organização e funcionamento do dispositivo entre a metodologia, fortemente inspirada no Humanismo, e as políticas públicas, de inspiração pragmática e centradas na gestão de recursos humanos. É exatamente o facto de o dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências ser marcado por duas

filiações que se opõem, a filiação humanista e a filiação pragmática (p. 758), que constitui um dos

elementos que contribuem para a complexidade do processo. Assim, terão as equipas o difícil papel

de gerir as tensões presentes no dispositivo e de tentar assegurar algum equilíbrio entre as diferentes perspetivas que o influenciam (p. 759), de modo a garantir a valorização e a credibilidade social do dispositivo (p. 770). Apesar das tensões presentes no dispositivo, algumas das quais decorrentes de

filiações opostas, é incontestável que a filosofia da educação de John Dewey, principal teorizador do pragmatismo americano, constitui um importantíssimo contributo para se compreender as capacidades específicas de aprendizagem da espécie humana. De entre elas, destaca-se a capacidade humana de plasticidade que consiste na dupla capacidade de, primeiro, aprender com a experiência (com os

erros) e, em segundo lugar, construir sobre esta aprendizagem, e, ao fazê-lo, aumentar a própria capacidade de aprendizagem (Finger e Asún, 2003, p. 36-37). Assim, elaborando sobre esta

capacidade humana, Dewey explorou a sua teoria da aprendizagem experiencial (a essência do dispositivo RVAE), segundo a qual não há limites para a aprendizagem (Finger e Asún, 2003, p.37). Neste sentido, cada nova experiência pela qual o adulto passa é fonte de aprendizagem e, ao construir sobre ela, aumenta a sua própria capacidade de aprendizagem. Segundo Dewey, a aprendizagem decorre sempre de experiências educativas, porque são refletidas, e aprende-se com a ação.

De acordo com Cavaco (2002), a formação experiencial é um conceito multidimensional (p.31), que suscita diversas definições. Assim, na opinião de Josso:

A formação experiencial designa a atividade consciente de um sujeito que efectua uma aprendizagem imprevista ou voluntária em termos de competências existenciais (somáticas, afectivas e de consciência), instrumentais ou pragmáticas, explicativas ou compreensivas na ocasião de um acontecimento, de uma situação, de uma atividade que coloca o aprendente em interação consigo próprio, os outros, o meio natural ou as coisas que o rodeiam (Cavaco, 2002, p.31)

Para Roelens (1991), a formação experiencial é a descoberta progressiva por um sujeito (individual ou

coletivo) da sua capacidade de pensar e de produzir a realidade a partir de cada experiência, capitalizando, de um modo singular, as potencialidades heurísticas das situações onde se inscreve a sua identidade (cit. in Cavaco, 2002, p.31-32).

No perspetiva de Pineau (1989), a formação experiencial é uma formação por contacto directo mas

Seja qual for o entendimento, está sempre subjacente à noção de formação experiencial o papel activo

que o sujeito assume, a sua capacidade de experimentar e de refletir sobre as situações e acontecimentos que ocorrem no seu dia-a-dia (Cavaco, 2002, p.32).

No ponto de vista de Cavaco (2009), o dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, apesar de inovador e assente na revalorização epistemológica da aprendizagem experiencial dos adultos, apresenta fragilidades, mas também potencialidades. A rapidez da certificação (que pode conduzir ao risco de transmitir uma imagem de facilitismo e, por conseguinte, ao desprestígio social do trabalho realizado) é, muitas vezes, apontada como uma das fragilidades do dispositivo. Todavia, as potencialidades sobrepõem-se: a captação de novos públicos que não aderiram ao ensino recorrente e à formação profissional; a adequação do processo ao perfil e expectativas do candidato; a especificidade da metodologia usada; a maior predisposição dos adultos para frequentar formação formal após a certificação (ou a validação parcial).

A verdade é que o conjunto de dificuldades que este dispositivo encerra decorre, em certa medida, da própria natureza complexa do processo, que se verifica, de acordo com Cavaco (2009), nos seguintes elementos: a dificuldade de compreender a lógica do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências; a dificuldade de rememorar, selecionar e explicitar experiências de vida para, a partir daí, identificar competências; o conceito complexo de experiência, o seu valor individual e social; a compreensão da especificidade dos processos de aprendizagem experiencial; a dificuldade de enunciar e explicitar a ação; a dificuldade de criar distanciamento face ao vivido a fim de reconhecer competências adquiridas experiencialmente.

No entanto, a complexidade do dispositivo de RVCC não se verifica apenas nas dificuldades sentidas pelo adulto em processo. A mesma complexidade é percecionada pela equipa: o conceito complexo e dinâmico de experiência; a dificuldade de avaliar competências, sobretudo se tal for feito através da experiência de vida do indivíduo, que se traduz num discurso sobre a ação; a natureza dos referenciais de competências-chave, demasiado centrados em conteúdos escolares; os riscos da avaliação de adquiridos experienciais, tendo por referência elementos difíceis de identificar e provar

(percurso de vida, experiências) e pouco consistentes/questionáveis (referenciais de competências)

(Cavaco, 2009, p. 766); a repercussão da avaliação na identidade do adulto.

A própria metodologia utilizada reflete a complexidade do dispositivo, particularmente as experiências de vida e as competências. Trata-se de uma metodologia híbrida, segundo Cavaco (2009), que se

inspira na História de Vida e no Balanço de Competências – práticas adaptadas às finalidades e ao funcionamento do dispositivo de RVCC. Esta metodologia encerra em si mesma reconhecidas vantagens. A abordagem experiencial, através das histórias de vida, permite a identificação do percurso de vida de cada adulto, o significado que este lhe atribui e a identificação das aprendizagens que efetuou. As histórias de vida permitem compreender como os indivíduos percebem as situações,

quais as respostas que dão face aos acontecimentos da sua vida, como gerem as relações interpessoais e intergrupais, sobre que representações e valores constroem as suas relações com o mundo (Delory-Monberger, 2000, cit in Cavaco, 2002, p. 42). O balanço de competências permite,

então, a identificação das competências do adulto e a elaboração do seu projeto formativo.

Contudo, e independentemente da complexidade do dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, há que considerar a especificidade do modo como os adultos pouco escolarizados se formam, o que, por vezes, pode constituir um obstáculo à realização de um processo de reconhecimento e validação de competências:

Os adultos pouco escolarizados possuem saberes que resultam, na maioria das vezes, de processos de formação experiencial. Trata-se de saberes contextualizados que nem sempre são passíveis de explicitação e de objetivação, situação que dificulta ou impossibilita o seu reconhecimento e o reconhecimento das pessoas que os detêm (Cavaco, 2009, p. 729).

3. O educador de adultos e a promoção de percursos de qualificação

O dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências implica, de facto, saberes multidimensionais, apreendidos através da aprendizagem experiencial, que, segundo Pires (2007), contempla uma perspetiva holística do sujeito, a qual considera a globalidade do processo de desenvolvimento da pessoa, na sua relação com o meio, com os outros e consigo própria. Daí a importância estratégica do acompanhamento do adulto pouco escolarizado, por parte do educador de adultos que, neste caso, se traduz na função que cada elemento da equipa técnico-pedagógica desempenha, não só ao longo de todo o processo de RVCC, mas também após o mesmo. Com efeito, e concordando com Cavaco (2009), a forma como se efetua o acompanhamento repercute-se,

sem este acompanhamento, o processo de RVCC limitar-se-ia a um procedimento administrativo e é graças a este acompanhamento que o RVCC se pode transformar, ou não, num processo formativo

para os adultos envolvidos (p. 771). A realização do processo pode (e deve) constituir uma experiência

formativa para o adulto, o que implica um rigoroso processo de reflexão sobre o seu percurso de vida

e os seus adquiridos experienciais, e o acompanhamento por parte de técnicos, conscientes das potencialidades e dificuldades do processo (p. 756). Pires (2007) reforça a necessidade deste

acompanhamento individual: numa perspetiva de formação de adultos, defendemos que o processo de

validação deve ser sempre suportado num processo de orientação e acompanhamento individual, antes, durante a após a validação (p. 14).

Este acompanhamento é tanto mais necessário quanto a referida complexidade inerente ao processo e a dimensão formativa implicada no mesmo requerem:

(…) experiência e aprendizagem não são sinónimos; não são as experiências que são reconhecidas e validadas, mas sim as aprendizagens e as competências que resultam de um processo de aprendizagem experiencial (…) a experiência é a base e a condição para a aprendizagem, e, para que seja formadora, ela tem de ser refletida, reconstruída, conscientizada (Pires, 2007, p. 10).

Segundo Cavaco (2009), o resultado do processo de RVCC transcende a certificação e os efeitos que esta pode ter na vida dos adultos certificados. O processo pode ter efeitos formativos muito importantes na vida dos adultos. Tudo depende de um conjunto de fatores, quer relacionados com os adultos (a compreensão do processo, a mobilização e implicação do adulto, a capacidade de construir um discurso sobre o vivido), quer relativos à organização e funcionamento do dispositivo (o tipo de acompanhamento efetuado no CNO, a organização e funcionamento das sessões de reconhecimento, as metodologias, instrumentos e estratégias utilizadas).

Efetivamente, o reconhecimento pessoal (“por si” e/ou “para si”) inscreve-se numa lógica formativa, de

autoavaliação, de tomada de consciência e apropriação pessoal dos saberes (Pires, 2007, p. 12). A

mesma autora entende que um dos pressupostos que estão na base do processo de RVCC considera que as aprendizagens detidas (explicitadas em termos de competências) devem ser vistas como ponto de partida e, em articulação com as aprendizagens posteriores, numa perspetiva de recomposição.

De acordo com Cavaco (2009), e tendo por base um estudo realizado em CRVCC, constata-se (…)

que o processo realizado despoleta [nos adultos] o interesse pela formação formal, o que é, sem dúvida, um resultado muito relevante (p. 779).

Documentos relacionados