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2.2 MEU DIÁLOGO COM PAUL RICOEUR: HERMENÊUTICA, NARRATIVA

2.2.2. HERMENÊUTICA DO RECONHECIMENTO

2.2.2.2 O RECONHECIMENTO DE SI

Longo é o caminho para o homem que ―age e sofre‖ até o conhecimento daquilo que ele é em verdade, um homem de realizações. (PAUL RICOEUR)

Inicio este tópico com as palavras de Paul Ricoeur (2006), quando propõe traduzir a saga humana marcada pelas contradições, ambiguidades, em busca de novos caminhos para suas realizações. Esse homem age no mundo e com o mundo, por isso mesmo transforma e é transformado pela ação. Trata-se nesse percurso de Ricoeur, fazer a trajetória interpretativa da ação humana em direção ao reconhecimento de si. Tal reconhecimento é visto como um pequeno milagre da memória, já que reconhecer implica comemorar a vinda da lembrança como um acontecimento e responsabilidade do ato. Para tanto, Ricoeur (2006) recorre à ética a partir dos clássicos gregos com a finalidade de realçar o reconhecimento do homem que age e sofre, e que é também um homem capaz de realizações. Os feitos dos heróis gregos na mensagem deixada por Homero traduzem a ideia de responsabilidade na ação, justiça e motivação do indivíduo na busca premente de realizar atos dignos de admiração e de ser respeitado. Assim foi a saga magistral de Ulisses ao narrar seu retorno à Ítaca, cujo herói, faz-se reconhecer a fim de recuperar seu domínio ameaçado. Nessa epopeia, o que interessa a Ricoeur (2006) é destacar como o protagonista da obra de Homero passa pela situação de se

reconhecer como responsável, como também, de ser reconhecido por outrem. O segundo exemplo trata-se da tragédia grega de Édipo em Colona, escrita por Sófocles, cujo reconhecimento dramático do protagonista é revestido de significação de um desmentido no nível do reconhecimento da responsabilidade quando tem que avaliar seus próprios atos na condição de retrospecção. Édipo em Colona refuta a culpabilidade antiga ao afirmar que tudo que fez foi contra a sua vontade porque os deuses conduziram suas ações. Foi o agir ‗a contragosto‘. O reconhecimento da responsabilidade nessa situação se reveste de desculpa. A mensagem dessa tragédia grega é a do homem sofredor que reconhece a si mesmo agindo. Por último, ao continuar com o fundo grego do agir e seu agente, Ricoeur apresenta Aristóteles em torno da Ética, assim, no prelúdio da Ética a Nicômaco, bem supremo da ação humana, faz relação com a felicidade e a virtude da moral. A tarefa do homem é viver uma vida completa tomando as virtudes como determinante da aspiração à felicidade. O que é considerado nesse projeto filosófico de Aristóteles é a doutrina do phronesis, ligada à sabedoria prática, traduzida como prudência. Com Ricoeur (2006), essa doutrina da ação moral ocupa o signo de reconhecimento da responsabilidade do homem que atua

sob a ação sensata e é nessa ação que o seu autor se reconhece responsável. No plano da consciência reflexiva de si mesmo, Ricoeur (2006) propõe uma

fenomenologia do homem capaz, lançado ao desafio de se refletir sobre a capacidade do reconhecimento de si. Em ―Si mesmo como o outro‖ ele adota o vocábulo ‗atestação‘ para registrar o modo epistêmico ligado ao registro das capacidades que se vincula ao ‗creio que posso‘ como forma de se reconhecer sem gerar a dúvida, mas a suspeita. Ricoeur levanta a seguinte tese:

Minha tese nesse plano é a de que existe um parentesco semântico estreito entre a atestação e o reconhecimento de si, na linha de ‗reconhecimento e responsabilidade‘ atribuído aos agentes da ação pelos gregos, de Homero a Sófocles a Aristóteles: ao reconhecer ter cometido um determinado ato, os agentes atestavam implicitamente que eram capazes de cometê-lo. A grande diferença dos antigos e nós é que levamos ao estágio reflexivo a junção entre atestação e o reconhecimento no sentido de ‗considerar verdadeiro‘ (RICOEUR, 2006, p. 107-8).

A ideia aí é de aproximar duas palavras pertencentes a famílias lexicais diferentes (atestação pertencente ao testemunho que ramifica a várias acepções), com vistas chamar ‗reconhecimento-atestação‘ e a partir do verbo ‗eu posso‘ numa

hermenêutica de si, considerando o valor reflexivo ao si mesmo. Um aspecto importante dessa tese remete a sentido de reconhecimento-atestação na direção das capacidades atribuídas ao uso da palavra: ‗eu posso falar‘, ‗eu posso dizer‘. O reconhecimento de si pela capacidade de poder dizer realça o ser como potência e ato, conferindo à noção do agir humano como homem capaz que si reconhece em suas capacidades. O discurso e os atos da fala são caminhos para originar a ontologia do homem capaz, e a linguagem tem papel preponderante nessa arquitetura, pois é por ela que o homem se constitui ao dialogar com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

Por outro lado, dizer ‗eu posso‘, também diz respeito ao sujeito que se declarara agindo no ambiente físico e social: ‗eu fiz isso‘. A ação alinhada ao acontecimento se faz intencionalmente pelo sujeito, e a razão primária de uma ação é a sua causa. Esse uso inclina explicar a ação de forma causal sobre um fundo de ontologia do acontecimento. Desse modo, a razão da primeira ação é então ―sua causa‖. O sentido da ação atribuído ao lado declarativo e descritivo remete ao sentido da intenção. Ou seja, o sentido de intenção atribuído a uma pessoa é denominado ‗adscrição‘ como parte da ação intencional.

O termo ‗adscrição‘ salienta o caráter específico de atribuição quando esta diz respeito ao vínculo entre a ação e o agente, do qual se diz também que ele a possui, que ela é ‗sua‘, que ele se ‗apropria dela‘. Adscrição visa, no vocábulo que ainda é o da pragmática do discurso, à capacidade de o próprio agente designar a si mesmo como aquele que faz ou que fez. Ela faz a ligação do quê e do como ao quem.‖ (RICOEUR, 2006, p.113. Grifos do autor).

Essa ligação hegemônica da ação e sua causalidade atingem o nível da compreensão pela narrativa na regra da configuração. No tocante a ação que envolve diversas pessoas, cabe delimitar a parte da ação de cada pessoa, só que isso se torna difícil pela complexidade da interação. Sendo assim, fica ao encargo do sujeito que age admitir o poder de agir que ele se sente capaz.

A fenomenologia do homem capaz se insere na problemática da identidade pessoal ligada ao ato de narrar sob a formar reflexiva do ‗narrar-se‘. Fiz uma breve exposição acima sobre o projeto de Ricoeur acerca da narrativa quando ele apresenta a tríplice mimese. No tocante ao reconhecimento de si, uma fenomenologia do homem capaz suscita o ‗narrar-se‘ como caminho para o homem exercitar sua imaginação ao criar suas próprias expectativas em torno dos modelos de configuração oferecidas pelas

intrigas. O homem diante da obra que lê, é personagem pela ação narrativa e ao se apropriar criticamente, aprende a narrar a si mesmo de outro modo. Para esse ‗outro modo‘, Ricoeur (2006) propõe o termo ‗identidade narrativa‘. Ele caracteriza identidade como permanência no tempo (mesmidade), ao contrário da identidade enquanto diversa e variável no tempo (ipseidade), indo ao encontro da tese da identidade narrativa. A dialética entre mesmidade e ipseidade culmina com a teoria da promessa.

O reconhecimento de si recorre à memória e a promessa. A memória vai ao passado e a promessa ao futuro, mas pensadas conjuntamente no presente para o reconhecimento de si. O homem capaz pode lembrar e pode prometer, o problema radica na ênfase que se possa dar ao poder de lembrar e sustentar a promessa. Outro ponto levantado por Ricoeur se refere à memória e a promessa serem dialeticamente opostas a mesmidade e a ipseidade em torno da identidade pessoal. Enquanto a memória dá ênfase a mesmidade, com a ispeidade a promessa prevalece. Ambos sofrem traços de sentido, seja pelo esquecimento oriundo da memória, seja pela traição da promessa.

O reconhecimento no plano da memória evoca os traços do passado. Bergson tem entrada substancial com seu tema, ‗reconhecimento das imagens‘, no momento que Ricoeur (2006) suscita os questionamentos: ‗o que me lembro?‘ ‗como lembro?‘, ‗quem se lembra?‘. O homem capaz se desvia pelo exterior para o retorno sobre si mesmo. Os dois conceitos: reconhecimento e sobrevivência configuram a obra de Bergson ―Matéria e memória‖, especificamente nos capítulos ―Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro‖ e ―Da sobrevivência das imagens. A memória do espírito‖.

Assim como Ricoeur, dialogo com Bergson (1999) para entender o trabalho da memória no ato de lembrar, a fim de voltar para Ricoeur e ter mais clareza sobre essa dinâmica para o reconhecimento de si. No que tange ao reconhecimento das imagens, Bergson diz que o corpo como seus dispositivos motores pode armazenar a ação do passado. O passado sobrevive pelos mecanismos motores que é transformado em lembranças independentes. A princípio, o reconhecimento de um objeto presente se faz por representação. Nesse sentido, as imagens invocadas do passado mediante os mecanismos cerebrais, elaboram séries de representações passadas, que por sua vez, são enviadas para o presente fazendo ponto de ligação com o real, ou seja, com a ação. Por conseguinte, a memória, passada por diversas tensões, em virtude de acontecimentos, transforma as imagens em lembranças. Desse modo, segundo Bergson, o reconhecimento consiste numa ação e não numa representação.

Ricoeur (2006) retoma o conceito de antigo de anmnesis ou de reminiscencia, para dizer que Bergson, ao colocar pela primeira vez sua análise de reconhecimento das imagens como esforço intelectual, refere-se às lembranças concebidas pela ação laboriosa pertencente ao vasto conjunto dos fenômenos psíquicos que passam pela tensão e pelo relaxamento. A memória é tensionada na travessia para a consciência e o trabalho de rememoração é guiado pelo que Bergson (1999) chama de ‗esquema dinâmico‘:

Façamos um breve resumo do que procede: Distinguimos três termos, a lembrança pura, a lembrança-imagem e a percepção, dos quais nenhum se produz, na realidade isoladamente. A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a completam, interpretando-a, a lembrança-imagem, por sua vez, participa da ‗lembrança pura‘ que ela começa materializar, e da percepção na qual tende a se encarnar: considerada desse último ponto de vista, ela poderia ser definida como uma percepção nascente. Enfim, a lembrança pura, certamente independente de direito, não se manifesta naturalmente a não ser na imagem colorida e viva que a revela (BERGSON, 1999, p.156).

Importante perceber que o esforço da memória é criar um esquema concentrado para fazer uma aproximação em torno das imagens possuidoras de elementos distintos uma das outras, lembranças que se aportam entre percepções atreladas em preconcepções. Aqui Ricoeur (2006) chama do pequeno milagre do enigma da memória: a representação presente de uma coisa ausente, pensando em fortalecer argumentos tendo como base o pensamento de Bergson:

O que é, para mim, o momento presente: É próprio do tempo decorrer; o tempo decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro (...). Onde portanto se situa essa duração? Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e que o chamo de ―meu presente‖, estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro (BERGSON,1999, p. 160-161).

Com isso, o enigma da temporalidade efetivamente corresponde a uma aporética quando ressalta que a nossa lembrança continua em estado virtual; dispomo-nos assim apenas a recebê-la adotando a atitude apropriada. Pouco a pouco aparece como que uma

nebulosidade que se condensasse; de virtual e ela (a lembrança) passa ao estado atual. Ricoeur (2006) acrescenta dizendo que graças ao acontecimento é que se faz o reconhecimento pelo ato mnemônico. A mneme-memoria designa a simples presença de uma imagem do passado concluído, no espírito e este é um momento passivo. Por outro lado, a atividade da reminiscência-lembrança é ativa. E como se reconhece a sobrevivência da lembrança? O filósofo responde:

Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. E reencontrá-la é presumi-la como principalmente disponível se não acessível. Cabe, pois, à experiência do reconhecimento remetê-la a um estado de latência da lembrança da impressão primária cuja imagem teve de se constituir ao mesmo tempo que a afecção originária: pois como um presente qualquer se tornaria passado se ele não tivesse constituído como passado ao mesmo tempo em que era presente? Esse é o paradoxo mais profundo da memória. O passado é ‗contemporâneo‘ do que ele foi. A sobrevivência, assim, não é percebida por nós; nós a pressupomos e acreditamos nela: esse é o sentido de latência e da inconsciência das lembranças conservadas no passado (RICOEUR, 2006, p. 137-138).

Para tal argumento, entra Aristóteles quando ele diz que ‗a memória é passado‘. Remeto essa idéia também à Freud quando este fala que no passado repousa nossos afetos, e por sua vez a Bergson (1999, p 120) quando ele fala: ―nossas lembranças, enquanto passadas, são pesos mortos que arrastamos conosco e dos quais gostaríamos de nos fingir desvencilhados‖. A recordação é a maneira de evocar a memória. A metáfora dos ―vastos palácios da memória‖ remete a espacialidade de um lugar íntimo, onde todas as coisas estão ali depositadas. Nela contém lembranças de paixões, noções abstratas, como também, a memória do si mesmo experimentando e agindo. Ricoeur (2006) por fim diz que é nessa memória que fazemos o reconhecimento das imagens e o reconhecimento de si mesmo.

A memória com a promessa remonta a problemática do reconhecimento de si. A primeira é voltada para o passado, é retrospectiva e a segunda é prospectiva, voltada para o futuro. Oposição e complementaridade amplificam o tempo ao se fazer o reconhecimento de si numa história de vida que é narrada.