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CAPÍTULO 1 ANÁLISE CRIMINOLÓGICA ACERCA DAS VIOLAÇÕES NAS

1.1 A configuração atual da sociedade

1.1.1 O Risco

Ulrich Beck, teórico do risco, abre portas para uma modernização reflexiva, uma alteração da sociedade que visualize oportunidades de ampliação dos horizontes dessa configuração atual. Supondo que modernização reflexiva signifique que uma mudança da sociedade industrial ocorrida sub-repticiamente e sem planejamento no início de uma modernização normal, autônoma, e com uma ordem política e econômica inalterada e intacta implica a radicalização da modernidade, que vai invadir as premissas e os contornos da sociedade industrial e abrir caminhos para uma nova modernidade.12

11 LUZ, Yuri Corrêa da. Entre bens jurídicos e deveres normativos: um estudo sobre os fundamentos do direito

penal contemporâneo. São Paulo: IBCCRIM, 2013. p. 137.

12 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: ______.;

GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Ed. Unesp, 1997. p. 13.

Assim, qualquer um que conceba a modernização como um processo de inovação autônoma deve levar em conta até mesmo a obsolência da sociedade industrial. O outro lado dessa obsolência é o surgimento da sociedade do risco. Este conceito designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a fugir das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial. A partir disso, duas fases podem ser aqui distinguidas: a primeira, um estágio em que os efeitos e as auto-ameaças são sistematicamente produzidos, entretanto não se tornam questões públicas ou o centro dos conflitos políticos. Neste ponto, o autoconceito da sociedade industrial ainda predomina, tanto multiplicando como legitimando as ameaças produzidas por tomadas de decisão, como riscos residuais, a sociedade do risco residual. A segunda fase, em uma situação completamente diferente surge quando os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos públicos, tanto político como privados. Nesse caso, as instituições da sociedade industrial concebem-se como os produtores e legitimadores das ameaças que não conseguem controlar. O que acontece neste estágio é que alguns aspectos da sociedade industrial passam a ser socialmente e politicamente problemáticos. De um lado, a sociedade ainda toma decisões e realiza ações segundo o padrão da velha sociedade industrial, mas, por outro, as organizações de interesse, o sistema judicial e a política são obscurecidos por debates e conflitos que se originam do dinamismo da sociedade do risco.13

O risco faz parte da configuração atual da sociedade. A era industrial potencializou a criação de riscos que fugiram de seu controle próprio e passaram a ser pauta das mais importantes discussões globais. A questão da destruição do meio ambiente, da genética, da superprodução do lixo, a questão dos riscos decorrentes do fortalecimento do poder econômico das corporações, são apenas alguns exemplos do resultado da hipertrofia da sociedade industrial. Num processo de superação reflexiva, o controle desses riscos se torna pauta do dia, ainda mais com exemplos que cada vez mais se proliferam, como o caso da usina de Chernobyl. Na busca por produção de mais energia para movimentar o mecanismo da sociedade, ocorre um acidente de enormes proporções, onde seus efeitos se perpetuam no tempo e se perdem a ver no espaço, são incalculáveis, difusos. Esse é apenas um exemplo de uma nova preocupação que não existia na configuração anterior da sociedade e que demanda respostas também jurídicas.

13 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: ______.;

GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Ed. Unesp, 1997. p. 15-16.

Pois bem, a Criminologia, detectando a necessidade da intervenção penal nessa área, leva os dados empíricos para as valorações político criminais que, após avaliar através dos princípios essa necessidade de intervenção, transfere para a dogmática penal a estruturação da normatividade da política pública de cunho criminal. Com relação à sociedade do risco, o fenômeno da expansão do direito penal na área do meio ambiente, por exemplo, é demonstrativo de como essa configuração social está afetando o sistema.

Silva Sánchez infere que desde a enorme difusão da obra de Beck, é lugar comum caracterizar o modo social pós-industrial em que vivemos como “sociedade do risco”. Com efeito, a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem precedentes em toda a história humana. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e permanece tendo, repercussões diretas em uma melhora do bem-estar individual. Como também as têm a dinâmica dos fenômenos econômicos. Convém, entretanto, não ignorar suas consequências negativas. Entre elas, a que interessa ressaltar é a configuração do risco de procedência humana como fenômeno social estrutural. Isso se deve ao fato de que boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém precisamente de decisões que outros concidadãos adotam para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos, entre outros) que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações, por exemplo. Mas, também, porque a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva, transfere para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são notados pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais.14 Isso causa uma expansão do direito penal, que é chamado a atuar

em novas áreas que até então não eram por ele alcançadas.

Da mesma forma observa Gérson Pereira dos Santos15, entre a sociedade industrial

moderna, que potencializa, inclusive, os nomeados “riscos residuais”, e a sociedade (pós) moderna de riscos se sente a urgente necessidade de redeterminar os standards precedentes em matéria de responsabilidade, segurança, educação, controle, distribuição e limitação dos danos acaso provocados em face de “novos” perigos. Desenvolvem-se processos e estruturas que ultrapassam, de maneira constante, territórios e fronteiras, onde avultam corporações transnacionais. Esse é o caminho preocupante para o “sistema mundial”.

14 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-

industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 35-36.

15 SANTOS, Gérson Pereira dos. A modernidade, a pós-modernidade e o processo de globalização à luz do

pensamento criminológico. In: MACIEL, Adhemar Ferreira; SERRANO GÓMEZ, Alfonso; MADLENER, Silma Marlice (Org.). Estudos de direito penal, processual e criminologia em homenagem ao Prof. Dr. Kurt Madlener. Brasília, DF: Conselho de Justiça Federal: Centro de Estudos Judiciários, 2014. p. 176.

Sobre essa “sociedade do risco” disserta Figueiredo Dias que a ideia de que se esse topos se não inclui na problemática mais vasta da pós-modernidade, por vezes não mesmo com ela se confunde. Parece hoje indiscutível que a ideia da sociedade do risco suscita ao direito penal problemas novos e incontornáveis. As implicações dessa ideia com a matéria penal põem em evidência uma transformação radical da sociedade em que já vivemos, mas que seguramente se acentuará exponencialmente num futuro próximo. Tal ideia anuncia o crepúsculo de uma sociedade industrial em que os riscos para a existência, individual e comunitária, ou provinham de acontecimentos naturais ou provinham de ações humanas próximas e definidas, para contenção das quais era bastante o catálogo puramente individualista dos bens jurídicos penalmente “tutelados” e, dessa forma, o paradigma de um direito penal liberal e antropocêntrico. A ideia da sociedade do risco proclama o fim dessa sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente tecnológica, massificada e global. Em uma tal configuração, a ação humana, as mais das vezes anônima, revela-se suscetível de produzir riscos também globais ou tendendo para tal, suscetíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como consequência, pura e simplesmente, a extinção da própria vida humana no planeta.16

Apenas de maneira ilustrativa, Beck17, referindo-se a como o trabalho humano se

altera com essa nova configuração, escreve que a flexibilização temporal e contratual do trabalho assalariado tem sido reivindicada e modernizada por muitos, mas em resumo rompe as velhas linhas limítrofes existentes entre o trabalho e o não trabalho.

Ou seja, a nova configuração social comporta a sociedade do risco. Tal, como se viu, caracteriza-se pela constatação de que os paradigmas da modernidade estão sendo rompidos e que uma nova ordem mundial está sendo consolidada. O avanço da técnica, as alterações nos padrões de consumo, a crise ecológica, o reconhecimento de que o homem é realmente capaz de acabar com o próprio homem e com todo o planeta são algumas das características e conclusões sobre essa nova era. Os riscos são globalizados, eles detém procedência humana e são incalculáveis. O tempo de duração e de produção dos efeitos decorrentes do risco são imprevisíveis, atingindo a todos. Outro fator importante vinculado a ele é que a percepção dos riscos se dá de maneira absurda, de modo que a objetividade do risco nem sempre é

16 DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”. In: REYNA

ALFARO, Luis Miguel. (Coord.). Nuevas tendências del derecho penal económico y de la empresa. Madrid: Ara, 2005. p. 131-132.

17 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: ______.;

GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Ed. Unesp, 1997. p. 14.

proporcional à sua percepção. E isso traz, obviamente, alterações no mundo jurídico também. Reconhecendo o direito como sistema social parcial admite-se que as irritações advindas dessas alterações no sistema social realmente gera a necessidade de mudanças nos outros demais sistemas parciais, o que incluí o direito.