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CAPÍTULO 3 ANÁLISE DOGMÁTICA ACERCA DAS VIOLAÇÕES NAS

3.1 Abordagem dogmática das violações envolvendo as relações de trabalho

3.1.4 Posições de garantia

Para Silva Sánchez, se há uma instituição a qual o desenvolvimento do Direito penal econômico está prestando um impulso decisivo, é a doutrina das posições de garantia. Isso, primeiramente, pela consolidação da doutrina das posições de garantia de cunho institucional no âmbito da criminalidade nas empresas, como se pode notar de modo significativo na administração desleal tanto quanto nas “estafas intraempresariales”. Não cabe descartar que isso ocorre desde uma conformação cultural de vínculos institucionais entre a empresa e seus administradores, por um lado, e outros terceiros (competidores, fornecedores, clientes, credores, o corpo social, o Estado). Ideia em voga como a responsabilidade social corporativa, a responsabilidade de governança, parecem apontar para esse sentido que, a confirmar, deveria ser objeto da correspondente construção dogmática. Em segundo lugar, e sobre o todo, o impulso do Direito penal econômico se nota no âmbito da criminalidade empresarial e, consequentemente, das posições de garantia de base organizativa. Aqui tem-se evidenciado a necessidade de uma teoria mais distinta das posições de garantia. Isso, não apenas mediante a diferenciação entre autoria e participação, mas também por intermédio de específicas diferenciações adicionais dos conteúdos do dever e das consequências de sua infração. A incipiente discussão acerca das características da posição de garantia do compliance office, se é que ela existe, constitui um ótimo exemplo desse impulso. Mas já antes existia uma discussão, que apenas tem progredido, sobre a posição de garantia do advogado, tanto interno quanto externo, da empresa. Pois bem, a doutrina atualmente se encontra já perante o desafio de diferenciar a posição de garantidor da empresa, da do empresário ou sócio, da posição dos

59 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 2. ed. São Paulo: Método, 2002.

administradores, da dos diretores setoriais e sobre o todo na reconstrução de suas interações.60 Tiedmann coloca que para o Direito penal, encontra-se no centro da problemática a questão da existência e do alcance de uma responsabilidade do chefe do negócio, ou seja, de um dever a título de garantidor do titular ou diretor do negócio para impedir delitos de seus empregados e trabalhadores (e, também delitos contra seus empregados e trabalhadores). Como exemplo, tem-se o caso do titular do negócio que sabe que seus empregados inserem dados publicitários enganosos em anúncios e que enganam, nos negócios de venda, sobre propriedades essenciais da mercadoria. Trata-se aqui da questão que deve ser mais esclarecida sobre as posições de garantia.61

Terradillos Basoco aponta que deve-se ter presente que, dada a complexa organização de funções e obrigações próprias da empresa, a afirmação da responsabilidade penal dos subordinados não exclui, necessariamente, a do empresário ou de seus representantes, já que sobre ele, e sua qualidade de chefe da empresa, recaí um dever de controle e de vigilância sobre a correta observância das prescrições ditadas pelo ordenamento. Uma melhor delimitação dos respectivos círculos de obrigações, derivados da transferência de funções aconselha distinguir entre delegação ou encargo de funções e encargo de execução. O encargo de execução não exonera o delegante, de forma que é possível afirmar sua responsabilidade penal a título de culpa em eleição, de culpa em vigilância ou através do esquema de comissão por omissão. Quando o que se delega é a função, se produz uma substituição do sujeito responsável penalmente. A eficácia e a operatividade da transferência de funções acaba, não obstante, subordinada, entre outros requisitos, a existência material de autonomia suficiente por parte do destinatário das funções que cujo exercício é lhe transferido, entendendo por autonomia não apenas a concedida pela delegação, mas também a possível dentro do marco normativo laboral. De outro modo entraria em conflito com o princípio da não derrogação da lei penal, que não tolera que a determinação do destinatário da lei penal seja confiada à vontade privada. A delegação de funções, em suas formas mais amplas, coloca o delegado em situação muito próxima a de empregador aparente, sujeito que, apesar de não ser em direito, atua de fato como tal. É quem, aparentemente, recebe e retribui o trabalho. A segurança jurídica exige que quem cria a aparência verossímil resulta obrigado frente aos que, de boa-fé, aceitam tal aparência como realidade. A relação entre esse empresário aparente e quem realmente o é, seja pessoa física ou jurídica, aplica seus efeitos entre os interessados, mas não

60 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, ano 20, n. 99, p. 345-347, nov./dez. 2012.

pode prejudicar o produtor contratado. Isso obriga a declarar criminalmente responsável a quem vêm realizando atos de significado inequívoco que autorizam a considerar a quem com eles contratam que é o titular da empresa, se bem, que nos delitos especiais, essa responsabilidade não poderá ser a título de autor.62

Assim, fazem-se oferecidas à discussão propostas como a de Montaner Fernández, que distingue entre o processo de alocação de âmbitos de competência, próprio das relações entre administradores e diretores; o de delegação de competências ou funções em sentido estrito, entre os níveis da direção; e o de delegação ou encargo da execução de uma função, próprio da relação entre diretores e empregados sem autonomia decisória. Já Silva Sánchez prefere estabelecer dentro da empresa os âmbitos de vigência do princípio da separação estrita de esferas, o princípio da confiança e o da desconfiança. Isso conduz, respectivamente, a individualização de relações aonde se nega a existência de toda posição de garantia, outras em que existe uma posição de garantia limitada à neutralização do próprio aporte prévio ou o evitar do resultado lesivo produzido na esfera de organização do outro, uma vez atingido determinado estado de conhecimento sobre a atuação ilícita deste último; e outras em que existe uma posição de garantia de vigilância em sentido estrito, o que implica um dever prévio de adquirir conhecimento sobre eventuais condutas ilícitas de terceiros, estabelecendo a tal efeito os sistemas de controle correspondentes.63

Como se observa, a questão envolvendo a posição de garantia se tornou um dos itens mais interessantes e particulares na análise do Direito penal econômico envolvendo as relações de trabalho. A complexidade deste campo particular é demonstrada na pluralidade de possibilidades de classificação que as posições de garantia oferecem, já que os esquemas de organização de gestão das empresas são extremamente plurais e variados. E dada a complexidade que se percebe na contemporaneidade a qual chegou os esquemas de gestão das empresas, nada mais esperado que, na tentativa de se regulamentar as posições de garantia, se chegue a uma complexidade tão grande quanto. O que importa assinalar nesse dado momento é que essa ponderação torna-se imprescindível para que ocorra a imputação dos reais responsáveis pelas condutas dentro de uma empresa. É necessário que se faça a diferenciação entre os tipos de delegação para que se estabeleçam limites objetivamente verificáveis de divisão do trabalho dentro da organização empresarial, possibilitando que haja a delegação de funções e de execuções, mas que elas realmente possam ser analisadas valorativamente com o

62 TERRADILLOS BASOCO, Juan Maria. Direito penal do trabalho. Revista Penal, Madrid, n. 1, p. 79, 1998. 63 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências

objetivo de se verificar a consciência da ilicitude de certos atos a partir da posição assumida pelos responsáveis dentro do esquema.

Quanto ao concurso por parte de quem confere o encargo, é problemático configurar à sua custa uma obrigação que tenha a natureza e os conteúdos da obrigação jurídica de impedir o resultado. As obrigações de garantia poderiam dar lugar à responsabilidade em comissão por omissão, efeito de que careceria a simples obrigação de vigilância. Maior complexidade adquire a temática suscitada pelos delitos de subjetividade restringida. Nestes casos, há de se distinguir, antes de tudo, a que as obrigações se dirijam apenas ao empresário ou a determinados responsáveis da pessoa coletiva ou a seus colaboradores. Isso porque, como se sabe, a experiência concreta ensina que com frequência a obrigação dirigida ao empresário é assumida por este ou por determinados responsáveis, mediante a prestação de colaboradores. No direito penal do trabalho, o primeiro destinatário da norma é o empresário, enquanto que o exercício de sua atividade o coloca em posição de garantidor direto, inclusive exclusivamente em algumas ocasiões, da salvaguarda dos direitos e interesses daqueles sujeitos que formam parte da estrutura empresarial, o que obriga a uma prévia delimitação do que por empresário, se pode entender.64

De qualquer forma, importa para o presente estudo a possibilidade de se distribuir responsabilidades àqueles que não executam certos atos, mas os comandam de modo que, se antes a estrutura jurídica apenas conseguia responsabilizar esse agente que, cumprindo ordens, dava causa naturalística ao delito se consiga também deter potencial dogmático para trazer para o local da responsabilidade, não o que obedece, mas o que comanda. Importa também a viabilidade de análise da autorresponsabilidade que os próprios funcionários possuem.

O princípio de autorresponsabilidade constitui um critério de limitação da responsabilidade de terceiros por atos que organiza (segundo uma postura mais clássica, domina) o próprio sujeito autorresponsável. Uma observação superficial parece colocar em relevo que o principio da autorresponsabilidade detém uma eficácia diminuta no âmbito do direito penal da empresa. Isso se sucede, em ocasiões, na hora de conformar o empresário em posições de garantia de proteção dos trabalhadores frente a riscos assumidos responsavelmente por eles. Segundo a doutrina dominante que subscreve essa posição, trata- se de proteger o trabalhador frente a suas próprias imprudências. É duvidoso como se pode ter gerado esta posição de garantidor, uma possibilidade é entender que o seu surgimento sucede ao tempo de uma época de risco permitido laboral, própria do industrialismo burguês. Assim,

a perspectiva socializante havia tomado como base a apreciação de uma desproteção essencial do trabalhador, derivada de uma pretendida situação de coação intrínseca à relação de trabalho. Essa desproteção é a que havia gerado de fato o surgimento do Direito do Trabalho, desde dentro do Direito Privado, com seu princípio interpretação pro operario. A ideia é, em última instância, que todo trabalhador se encontra em uma situação de necessidade. A transferência dessa ideia genérica, que considera-se correta em termos de mera aproximação do fenômeno, ao âmbito de imputação de responsabilidade penal em um caso concreto resulta precariamente fundamentada. Uma hipótese alternativa é a de que a posição de garantia do empresário pode ter a ver com a constatada existência de vieses cognitivos nos trabalhadores, derivados por regra geral de sua habituação ao risco, com a consequente desvaloração deste. Tais vieses cognitivos determinariam uma afetação da racionalidade que levaria à existência de uma diminuição da autorresponsabilidade; pois esta requer racionalidade.65

Segue o autor afirmando que a diminuição da racionalidade do trabalhador, eventualmente devida a esse déficit cognitivo ou atalhos heurísticos, é que deveria ser neutralizada pelo empresário mediante as correspondentes técnicas de formação e informação, também de intervenção psicológica. A posição de garantidor do empresário surgiria então da organização de um entorno em que surgem déficits cognitivos em seus subordinados. E, o dever de atuar consistiria em sua neutralização. O não cumprimento de tal dever geraria a responsabilidade. Um âmbito distinto é o que se refere à posição de garantia de vigilância dos administradores e diretores sobre seus subordinados que podem gerar riscos para terceiros. Novamente trata-se aqui de uma estranha posição de garantia sobre sujeitos autorresponsáveis, cuja fundamentação tem gerado dúvidas e discussões. Um possível fundamento é a ideia de que a empresa constitui em si um risco especial. Mas, precisamente, o que deveria se esclarecer é o porquê que a empresa pode ver-se como um risco especial. Uma explicação possível é a que toma em consideração é a potencialidade criminógena de certas dinâmicas de grupo. A essas se somariam outras razões próprias da organização empresarial: por um lado, os já reiteradamente déficits cognitivos e atalhos heurísticos; por outro, já no plano volitivo, o anonimato, concepções errôneas acerca da lealdade e da solidariedade etc. Tudo isso determinaria que os subordinados, supostamente autorresponsáveis, poderiam ir mostrando carências relevantes enquanto a percepção e o seguinte controle de riscos. A neutralização dessas carências estruturais seria precisamente o objeto da posição de garantia. Certamente, todos os estudos sobre os delitos de empresa coincidem em atribuir especial

65 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências

relevância à estrutura organizativa que é inerente a tal entidade. Essa dimensão de organização tem se tomado incluída como fundamento da responsabilidade penal das empresas mesmas (culpabilidade por defeito de organização) ou, em todo caso, da imposição de consequências jurídico-penais àquelas (organização defeituosa como estado de coisas perigoso para os “bens jurídicos”). Ao analisar a responsabilidade individual de seus integrantes, a atuação no marco de uma organização se considera muitas vezes como um elemento de agravamento, reflexo de um maior conteúdo de injusto, seja pelo correspondente incremento do risco para o “bem jurídico”, seja pela especial virtualidade de negação do Direito que isso detém.66

A atuação no âmbito das estruturas organizadas das empresas também afeta a autorresponsabilidade dos agentes, dando lugar ao surgimento de posições de garantia de terceiros. Se isso é assim, a referida afetação da autorresponsabilidade deveria contemplar-se assim mesmo como um fator de diminuição da pena. Mutatis mutandis, acontece aqui algo próximo ao que se aprecia no âmbito da macrocriminalidade, se de uma pluralidade de elementos que determinam que a representação da realidade, no sentido da responsabilidade, assim como os freios inibitórios ou a representação das normas, experimentem uma diminuição que, eventualmente, poderia levar até a seu desaparecimento. Na conformação de uma atitude criminógena de grupo concorrem vários aspectos cuja origem é diversa, mas que, somados um ao outro, podem dar lugar a uma importante diminuição da responsabilidade. Em primeiro lugar, já se fez alusão à existência de numerosas distorções cognitivas: déficits de emulação, adaptação, confirmação, etc. Em segundo lugar, existem distorções motivacionais: a circunstância aonde o subordinado considera que atua pelo bem da empresa, isto é, com uma motivação altruísta e não egoísta, o que diminui sua inibição ao atuar. Em terceiro lugar, sucede que o subordinado atua no marco de uma estrutura hierárquica, com um responsável superior, o que, a menos no caso de perfeito conhecimento da situação e da norma, produz certa desatenção acerca da responsabilidade: produz-se uma desviação da responsabilidade moral “vinda de cima”, como colocou de relevo o experimento de Milgram67. Em quarto

lugar, a atuação no marco de um coletivo cede lugar a que o sistema de normas de Direito penal entre em colisão com outros sistemas de normas próprios do grupo, o que provoca que o sujeito forme um código sintético próprio. E por sua vez, na necessidade de adaptação ao

66 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, ano 20, n. 99, p. 354, nov./dez. 2012.

67 Tal experimento, levado à cabo em 1974 pelo psicólogo Stanley Milgram, da Universidade de Yale, colocou

em relevo que 85% das pessoas, quando se encontram em um contexto de obediência, tendem a fazer o que se ordena, pois se gera um desprendimento da responsabilidade a partir daquele de quem parte as ordens.

meio, a solidariedade com o meio ou inclusive a rotina que deriva da fungibilidade da própria posição, contribuem para a referida diminuição do sentido da responsabilidade. Em último lugar, deve aludir-se a outros aspectos: a distância, no tempo e espaço, que existe entre a atuação do sujeito e a afetação de uma vítima determinada. Seja como for, o certo é que a atuação no grupo se vê submetida a importantes mecanismos de neutralização do significado da conduta delitiva. Seja qual for a medida da atenuação de pena que isso pode gerar, tal segue sendo uma questão aberta. Em todo caso, há de se colocar em relevo que a análise doutrinária do papel do princípio de autorresponsabilidade no Direito penal econômico- empresarial ainda precisa melhor concluído.68

De qualquer maneira, é decisivo o reconhecimento do princípio, não incontestado, segundo o qual o sujeito delegante resta comumente investido, através da presença de uma delegação válida e eficaz, de uma obrigação de vigilância a partir de uma correta observância da função transferida.69 Tal princípio nortearia toda a construção dogmática do

estabelecimento de responsabilidade na questão envolvendo as posições de garantia dentro de uma estrutura organizada empresarial.