• Nenhum resultado encontrado

O Saber Local

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 104-113)

CAPÍTULO 3 Percorrendo o Rio

3.6. Discussão dos Resultados

3.6.7. O Saber Local

Emergem dos relatos dos ribeirinhos um grande conhecimento em diversas áreas no que se relaciona ao meio, também, adquirido da própria vivência; e desse conhecimento uma grande consciência ambiental e a preocupação com a preservação do meio e, por conseguinte, dos recursos naturais.

Essa categoria ficou mais evidenciada em orações mentais, mas também encontrou expressão em orações materiais e relacionais.

Através de orações relacionais os atores sociais Ribeirinhos colocam contrários a determinadas práticas; em algumas, através de uma circunstância de razão é apresentada a justificativa para o posicionamento (exemplo 233).

232. ...mas beira de rio não é lugar de cana

233. Eu sou contra pescá com malha pequena porque atrapalha a reprodução dos peixe.

No exemplo abaixo, o processo relacional intensivo estar relaciona o portador (estado de Minas Gerais) ao atributo de carga semântica negativa estar secando; evidenciando o conhecimento do meio que possui o ator social.

233. Então Minas Gerais está abafada com o eucalipto, estão secando as

veredas, estão secando as nascentes...

Os processos mentais revelam a percepção dos moradores da beira do rio dos vários problemas ambientais existentes, bem como da razão que os provoca.

235. A plantação de cana esgota a terra; a gente sabe quando a terra já ta ficando esgotada.

236. A gente vê que as nascentes, os afluentes do rio São Francisco pouco a pouco estão sendo degradadas...

Através de processos materiais transformativos, de carga semântica negativa, são apresentadas várias situações de agressão e a explicação dos ribeirinhos de como elas ocorrem.

237. O desmatamento das matas ciliares que vai aumentando as margens do rio, porque as margens vão caindo pra dentro do rio, vai desbarrancando...

238. Se o rio perde o seu equilíbrio ambiental, é claro que o peixe também

fica escasso.

239. O eucalipto puxa toda a água da terra, onde ele tá, a terra resseca. Nesta última categoria apresentada, trago a observação do grande conhecimento que os ribeirinhos detêm sobre o meio ambiente, técnicas de produção, malefícios e benefícios de determinadas práticas.

Muito desse conhecimento pode ser relacionado à noção de cultura local ou popular.

De acordo com Castells,

... cultura popular são as relações que colocam a “cultura popular” em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável (CASTELLS, 2001: 257).

O conceito acima se coaduna com as representações apresentadas nos relatos dos ribeirinhos, principalmente no que se refere à visão dos mesmos sobre como se relacionar com o meio e dele extrair meios de subsistência, que se opõe diametralmente à visão do agronegócio e das carvoarias, por exemplo.

Comumente tem-se a ideia de uma discrepância ou de oposição entre o saber local e o científico. No entanto, abordagens da LA e das ciências sociais de conjunto têm deixado cada vez mais claro que não é bem nesse campo de oposição binária que deve ser colocado o conceito de ‘saber local’.

Destarte, a real distinção entre o saber local e o saber científico é o valor semântico que o adjetivo “local” agrega à expressão.

Como é possível observar nos exemplos apresentados nesta categoria, a preocupação com os efeitos de determinados ‘saberes ou práticas’, no âmbito das relações sociais, têm grande peso para as comunidades.

Ou seja, ganha destaque o contexto em que o saber existe e a forma como é aplicado. Dessa forma, se é nesse campo que se dá a distinção entre o saber local e o não local, é possível compreender porque o conhecimento técnico e científico constantemente vive contradições na sua relação com a sociedade.

Conclui-se que as coisas só têm sentido dentro de contextos reais, e aí residiria o conteúdo exato do termo ‘saber local’, tão bem refletido nas falas dos ribeirinhos, que trazem a todo o momento a preocupação em desenvolver formas produtivas (com procedimentos técnico-científicos modernos ou não) que preservem o meio ambiente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das principais constatações foi o peso que o coletivo tem para as comunidades da Bacia do São Francisco, o que ficou evidenciado logo no início da análise dos dados pela maior ocorrência de processos usados no coletivo.

O sentido de pertencimento e do orgulho da origem é outra característica forte dos moradores das comunidades tradicionais que, antes de se definirem pessoalmente, se definem como membro de uma comunidade. As orações relacionais, segundas mais frequentes, constroem essa significação ligando os personagens a Identificadores que denominam classe ou grupo. E o sentimento de pertencimento caminha junto com o enraizamento, posto que o primeiro deriva do segundo.

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir. O ser - humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro (Bosi, 2004: 175 apud Weil, 1996: 347)

Dentro do aspecto do enraizamento surgem questões como a manutenção das tradições religiosas e demais manifestações culturais e a luta pela posse da terra, como garantia da preservação da comunidade, do existir coletivo (indígena, quilombola etc) (Figura 12, página 108).

O valor dado ao trabalho, evidenciado nos processos materiais, mais frequentes no corpus, a relação de atrito com elementos da modernidade, que muitas vezes ameaçam a existência do grupo, a nostalgia de um período em que as condições de existência eram mais favoráveis, o valor dado ao saber tradicional, o relato das atividades cotidianas e de subsistência prática, são elementos fundamentais que denotam os valores e a visão de mundo das pessoas entrevistadas. Lembrando que os processos relacionais acompanhados de Atributos e Identificadores positivos aparecem na maior parte das vezes no tempo passado e não no presente.

Questões como a violência no campo e a pauperização também são aspectos importantes identificados nos relatos. Cabendo destacar que, pelas análises dos participantes, verifica-se que os elementos causadores da violência são sempre externos à comunidade, movidos por interesses econômicos (agroindústria, latifundio, especulação de terra, etc).

Figura 12 – A fé que fortalece e dá esperança. Diante das dificuldades que se impõe ao ribeirinho, o apego ao espiritual faz-se presente em todas as comunidades ao longo do São

Francisco. Região de Bom Jesus da Lapa – BA. (Foto João Zinclar)

Surpreendeu-me o aspecto de não conformação presente nos discursos, que se apresenta no relato das lutas por melhores condições, mas também na busca de apoio e parcerias para o desenvolvimento de atividades produtivas. Bem como a consciência ecológica e a preocupação em desenvolver atividades produtivas não agressivas ao meio, encontrada de forma contundente na análise dos processos mentais.

Ficou bastante evidente a apropriação de um determinado espaço, vai muito além da apropriação material e se dá a partir do momento em que a comunidade ou o representa para si e para os outros.

Perpassando todas as categorias, o lócus de vivência, o território, é o responsável pela mediação entre os atores sociais. Estes, em uma relação dialética, e em certos momentos contraditória, constroem e reconstroem, em um movimento constante, formas de se relacionarem com o meio e com os novos tipos de organização produtiva e social.

Verificou-se também que a atual estrutura de produção, com a introdução de novas técnicas, tem sido responsável, em grande medida, pela pauperização das comunidades, quando não pela sua desterritorialização. Isso leva a disritmias sociais que irrompem muitas vezes em situações de extrema violência, em que se opõem interesses totalmente distintos e poderes absolutamente desiguais. Processos materiais fortes como expulsar, derrubar, sofrer, resistir trazem essas representações para o discurso dos Ribeirinhos.

Por outro lado, a desterritorialização do lugar onde foram concebidos os valores afetivos e simbólicos, provoca uma lacuna que não é passível de ser preenchida. Esse sentimento de vazio também faz com que as comunidades se mobilizem em defesa de sua terra, seu lugar, seu lócus de vivência.

Creio que os objetivos da pesquisa foram atingidos. Penso que as contribuições de áreas como geografia política, sociologia e antropologia, dialogando com a LSF (teoria basilar do trabalho), tornaram possível uma interpretação bastante fecunda dos dados.

Porém é necessário que eu destaque que a utilização da LSF possibilitou uma apreensão das representações ideacionais dos Ribeirinhos com muito mais assertividade. Além de possibilitar uma análise que parte das estruturas linguísticas do discurso, a LSF baseia-se em uma concepção da natureza da linguagem como interação, voltada para a dimensão paradigmática da linguagem, que considera a linguagem como uma semiótica social, com ênfase na produção de sentidos localizada na cultura e na história.

Acredito que as possibilidades de investigação do corpus não foram esgotadas nesse trabalho e que ainda há muito a ser analisado, principalmente no que se refere a estudos de linguagem e contexto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

CAMERON, D. et al Researching language: issues of power and method. London, England: Routledge, 1992, [capítulo de Introdução]

CASTELLS, MANUEL. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Ed. Humanitas, 2001

CELANI, M. A. A. e MAGALHÃES, M. C. C. 2002. “Representações de professores de inglês como língua estrangeira sobre suas identidades profissionais: Uma proposta de reconstrução”. In: MOITA LOPES, L. P. e BASTOS, L. C. (orgs.)

Identidades: Recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras.

COSTA, Rogério Haesbaert. Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão. In: CASTRO, Iná Elias de et al. Geografia: Conceitos e Temas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 165-205.

CHIZZOTTI, A. Metodologia do Ensino Superior: o ensino com pesquisa. In: S. CASTANHO e M. E. CASTANHO (Orgs) Temas e Textos em Metodologia do Ensino

Superior. São Paulo, Papirus, 2001.

DERRIDA, J. Margins of Philosophy. Brighton: Harvester, 1982.

EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. London: Printer, 1994. FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992. FAIRCLOUGH, N. 1995. Media Discourse. London: Edward Arnold.

FOWLER, R. Language in the News. London: Routledge, 1991.

FRANCO, LEILA MARIA O MST na Folha de S. Paulo e no Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Analise das práticas discursivas. Dissertação Mestrado. PUC/SP, São Paulo, 2003.

GIDDENS, A. Central problems in sociological theory. Berkeley: University of California Press, 1979.

HALLIDAY, M. A. K An Introduction to Functional Grammar. 1a.edição. (LOCAL): Edward Arnold, 1985.

- An Introduction to Functional Grammar. 2a edição. (LOCAL): Edward Arnold, 1994. HALLIDAY, M. A. K e HASAN, R. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (LOCAL): Oxford University Press, 1989.

HALLIDAY AND MATTTHIESSEN An introduction To Functional Grammar. (LOCAL): Hodder Arnold, 2004.

HEBERLE, V. M. A Representação das Experiências Femininas em Editoriais de Revistas para Mulheres. (LOCAL): Discurso y Sociedad 1(3), 1999.

HUGHES, J. A Filosofia da Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

J. L. MEURER, ADAIR BONINI, DÉSIRÉEMOTTA-ROTH (orgs;2005), Gêneros:

teorias, métodos, debates. (LOCAL): Parábola Editora, 2005.

KUMARAVADIVELU, B. 2006. A lingüística aplicada na era da globalização. In: Moita Lopes L. P. (org.) Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial.

LIMA –LOPES, R. E. Estudos de transitividade em língua portuguesa: o perfil do gênero cartas de vendas. Dissertação Mestrado. PUC/SP, São Paulo, 2001.

MASON, J. Qualitative Researching. London, England: SAGE Publications, 1998. MARTINS, IZABELLA SANTOS Construção e Representação de Realidades no discurso de falantes com esquizofrenia: uma abordagem sistêmico- funcional. Tese de Doutorado – PUC/SP, São Paulo, 2008.

MATTHIESSEN, C. M.I. M The System of Transitivity: An exploratory test based profile. Functions of Language. (LOCAL): Editora, 1999.

MILLER, R. Donna (2004). Exploring Functional Grammar. E- book.

MEURRR, J. L. Integrando os Estudos de Gêneros Textuais e Contexto de Cultura. In M. Karwoi, B. Gay Deczka, K. S. Brito. Gêneros Textuais, Reflexões e Ensino. 2006/2011. Editora Parábola.

MOITA LOPES, L. P. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A., (LOCAL), v,10 (2), 1994, p.p.329-338.

MOITA LOPES, L.P. 2003. A nova ordem mundial, os parâmetros curriculares nacionais e o ensino de inglês no Brasil: a base intelectual para uma ação política. In: Bárbara, L. e Guerra Ramos, R.C. (orgs.) Reflexão e ações no ensino-

aprendizagem de línguas. Mercado de Letras.

MOITA LOPES, L.P. 2006. Falta homem até para homem. In: Heberle, V. M., Ostermann A.C., Figueiredo D. C. (orgs.) Linguagem e gênero no trabalho, na mídia

e em outros contextos. Florianópolis: Editora da UFSC.

MOITA LOPES, L. P. Por Uma Linguística Aplicada Indisciplinar. (LOCAL): Editora Parábola, 2008.

MOSCOVICI S. 2000. Representações sociais: investigações em psicologia social. Editora Vozes.

NUNAN, DAVID. Research Methods in Language Learning. (LOCAL): Cambridge University Press, 1992.

PENNYCOOK, A .Critical Applied Linguistics: A Critical Introduction. London, England: Lawence Erlbaum Associates, 2001.

PHILLIPSON, R. & SKUTNABB-KANGAS, .Applied Linguistics as Agens of Wider Colonization – The Gospel of International English, In: Phillipson, R. &Skutnabb- Kangas (orgs.).Linguicism Rules in Education. Roskilde: Roskilde University Centre, 1986.

RAJAGOPALAN, K. O Conceito de Identidade em Linguística: É chegada a Hora para uma Reconsideração Radical? In: SIGNORINI, I. (org). Lingua (gem) e Identidade: Elementos para uma Discussão no Campo Aplicado. (LOCAL): Mercado das Letras, 2002.

Sarup, M., Identity, Culture and the Postmodern World. Edinburg: Edinburg Univesity Press, 1996

SCOTT, M. R. WordSmith tools. Oxford University Press, 1999.

SILVERMAN, DAVID Qualitative Research: Teory, Method and Practice. (LOCAL): Cambridge University Press, 1993.

SOMMERVILE, M. A Transdisciplinaridade Onda do futuro: Como preparar nossas praias. Revista Tempo Brasileiro. v. 113, 1993, p.p. 75-96, 1993.

THOMPSON, G. (1996) Introducing Functional Grammar. Edward Arnold.

WEIL, Simone. O desenraizamento. In: BOSI, Ecléa (org.). A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.p. 345-372.

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 104-113)

Documentos relacionados