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Os Ribeirinhos

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 66-74)

CAPÍTULO 3 Percorrendo o Rio

3.5. Os Personagens das Margens do São Francisco

3.5.1 Os Ribeirinhos

O primeiro grupo foi nomeado de ribeirinhos; são eles: pescadores,

camponeses, quilombolas, indígenas, extrativistas, trabalhadores diversos, lideranças comunitárias e religiosas, sindicalistas, dirigentes campesinos.

Cabe destacar que as vozes desse grupo são em sua grande maioria autorais, em número de 80%.

Esse grupo, em seu desenvolvimento cultural, desde a mais tenra idade (figura 10, página 67) compartilha, além de um forte traço identitário coletivo, o apego ao rio, a preocupação em protegê-lo (da transposição, inclusive) e o desejo de revitalizá-lo, conforme exemplos abaixo.

No grupo dos Ribeirinhos, o forte traço de identidade coletiva, que se observa principalmente nas lutas realizadas em conjunto para defender o rio, remete

Personagens

Ribeirinhos Não Ribeirinhos

Pescadores Camponeses Quilombolas Indígenas Extrativistas Trabalhadores diversos Lideranças comunitárias e religiosas

Sindicalistas

Técnicos de órgãos como IBAMA, FUNAI, INCRA Fazendeiros Governadores Deputados Governo federal Empresários diversos

a um tipo de identidade que Castells (2001) nomeia como “identidade de resistência”:

... criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos... (CASTELLS, 2001: 24).

Na visão da sociologia, entendimento esse compartilhado com várias linhas teóricas da LA, a identidade sempre é construída. No caso da identidade coletiva, segundo Castells (2001), ganha maior relevância entender “a partir de quê, por quem, e para quê isso acontece”.

Figura 10 – Desde a mais tenra idade os ribeirinhos desenvolvem o sentimento de apego ao rio provedor e conscientizam-se do valor que este tem em suas vidas. Região da Borda da

As matérias primas utilizadas na construção das identidades são fornecidas pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva, ideais pessoais e valores de cunho religioso. Todavia, essas contribuições não são absorvidas de forma automática.

“são processadas pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem com sua visão de tempo/espaço” (CASTELLS, 2001:23).

É possível observar pela análise do corpus que a “argamassa” principal que solidifica o grupo dos Ribeirinhos é “a resistência de trincheira”, construída em torno de um ideal comum de defesa do rio. Nessa trincheira encontramos pescadores artesanais lutando contra empresas poderosas; comunidades indígenas, extrativistas, quilombolas e Sem Terra impondo resistência ao poder descomunal e sem lei do latifúndio; e toda sorte de conflitos. Nesse grupo estão aqueles que fazem da beira do rio sua morada, e que de certa forma também se tornaram ‘morada do rio’.

Essas representações ideacionais são observáveis principalmente em orações com processos materiais (lutar, ir, colaborar, morar, preservar, revitalizar) relacionais (ser, ter) e mentais (querer, acreditar, ver).

Os processos materiais geralmente apontam ações com sentido semântico positivo, realizadas para preservar o rio e o meio ambiente de conjunto. O conteúdo positivo muitas vezes está localizado não no processo, mas sim na Meta (exemplos 28 e 29) ou em uma circunstância de finalidade (exemplo 30).

28. E a gente (índios karirixocó) está pronto a colaborar com as luta contra a transposição das águas do rio...

29. Se for possível nós vamos até pra beira das obras com nosso movimento (contra a transposição do rio).

30. ... mas a gente vai lutar pra que isso não aconteça, pra que a gente preserve todo o cerrado.

Os processos relacionais (exemplos 31, 32 e 33) aparecem indicando o auto- reconhecimento como membro de um grupo étnico ou comunidade. O verbo ser

afirma uma identidade, ligando o pronome a um identificador que indica o pertencimento a uma classe ou grupo.

31. Nós somos quilombolas e somos trabalhadores. 32. Nós somos Sem Terra.

33. A gente é tudo pescador.

Os processos mentais (exemplos 34, 35) são utilizados para expressar o desejo dos ribeirinhos em realizar ações de preservação da natureza, notadamente o rio, o Fenômeno aponta as ações pretendidas. No exemplo 36 tem-se a percepção dos Ribeirinhos sobre ações que já estão sendo feitas.

34. (nós) queremos que seja feito reflorestamento com árvores e plantas nativas, repovoamento com peixes nativos, com animais nativos da região. 35. ... e acredito que tenhamos que lutar pela revitalização de toda a bacia. 36. E aí a gente vê aquele ato importante do D. Luís, na luta pela preservação desse rio.

Dentro desse grupo, é possível identificar um subgrupo que, embora não partilhando de todos os traços comuns ao grupo dos ribeirinhos, compartilham o interesse em proteger o rio e a disposição de realizar ações conjuntas para esse fim. Esse subgrupo é constituído pelas vozes de técnicos de órgãos como

IBAMA, FUNAI, INCRA.

A respeito da inclusão desse subgrupo entre os ribeirinhos, são pertinentes as considerações de Castells (2001) a respeito dos conceitos de identidade e papéis, para quem

é necessário estabelecer a distinção entre a identidade e o que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis, e conjuntos de papéis. Papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista...) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre os indivíduos e essas instituições e organizações. Identidades por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e

construídas por meio de um processo de individuação (CASTELLS, 2001: 22 – 23).

A análise do posicionamento desse grupo de profissionais, a partir dos relatos nos corpus, revela que não é o papel ou ‘lugar’ social como funcionários de órgãos burocráticos do Estado o que determina seu comportamento.

Enquanto atores sociais, a identidade desse subgrupo se dá a partir de um processo de construção de significados, que se apoia em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados (pertencimento, memória coletiva e afetiva, valores sociais) que, por sua vez, predominam sobre outras fontes de significação. Essa formulação encontra apoio em Castells (2001:22).

Suas vozes são trazidas para o discurso em sua grande maioria de forma não autoral (92%), ou seja, são reproduzidas através de projeção verbal ou citação. Nesse sentido, há uma forte presença dos processos verbais (falar, dizer, mandar), que servem justamente para reportar as falas desses personagens.

No que tange às conotações das projeções e verbiagens, aqui há um maior número das positivas, seguidas pelas neutras.

No caso das conotações positivas, tratam de informações de melhorias e serviços prestados por técnicos de órgãos públicos:

37. O Itamar (técnico do Ibama) falou: Olhe menino, você vai ter calma, porque nós vamos ter esses 500 metros que pertence à marinha, vai ser de floresta pra o rio.

38. ...o Ministério do INCRA chegou junto e disse que tem como resolver a questão dos Kiriri.

39. ...ele (técnico da Funasa) disse (prometeu) que vai mandar consertar o posto e fundar posto nas outras áreas com equipe médica pra dar assistência. As conotações neutras de verbiagens e projeções referem-se à descrição de procedimentos burocráticos.

40. Eles (técnicos da Funasa) mandaram o relatório lá para o Ministério Público e a gente tá esperando.

E as conotações negativas, referem-se à percepção pelos técnicos de ameaças ao meio ambiente (exemplo 41):

41. ... eles (os técnicos) disseram que o estudo mostrou que o rio São Francisco não tinha mais capacidade geradora pra que fosse construída essa barragem de Ibó.

Neste subgrupo, também ganham relevância os processos materiais (conseguir, elaborar, dar, fazer, negociar), geralmente apontando atitudes positivas tomadas pelos técnicos para defender o meio ambiente e os ribeirinhos:

42. ... e a gente vai ver se, junto com o IBAMA, consegue o defeso do camarão no rio São Francisco

43. Então a gente conseguiu pelo INCRA essas casas.

44. O CECAC elaboram os projetos e dão assistência técnica.

45. Aí eles (representantes do INCRA) vem, faz a vistoria e negocia, eles

dizem que negociam nesse sentido.

Os processos existenciais (haver, ter) servem para marcar a presença dos técnicos na região:

46. ... há muitas pessoas que procura nos ajudar aqui com projeto, nessas coisas.

47. Tem o apoio dos técnicos que lutam pra trazer os recursos, máquinas pra gente.

3.5.2. Os Não Ribeirinhos

O segundo grupo constitui-se de pessoas que, embora vivendo na região do São Francisco, não se reconhecem como Ribeirinhos. Os personagens assim nomeados não compartilham do senso de identidade coletiva e, em boa medida, também não comungam da preocupação com o rio. Apresentados pelos Ribeirinhos como responsáveis por situações de degradação contra o rio, são eles:

fazendeiros, autoridades políticas estaduais como governadores e deputados, governo federal e empresários diversos.

Diferente do primeiro grupo, aqui os personagens aparecem identificados, quando não pelo próprio nome ou o cargo político que ocupam (o vereador, o prefeito), com o pronome pessoal ou possessivo no singular (eu, me, mim).

As vozes nesse grupo são reproduzidas pelos ribeirinhos – vozes não autorais; assim os processos verbais são significativos, uma vez que realizam a reprodução da fala desse grupo.

Todavia, há o outro lado da trincheira, e nela localizam-se toda sorte de interesses econômicos, que têm como porta vozes os latifundiários, grileiros, carvoeiros ilegais. Esses atores sociais estão representados pelos Não Ribeirinhos, aqueles que, embora vivendo também na beira do rio, não vêm a preservação dele e de sua cultura como algo que deva ser considerado.

Uma forma de procurar entender o comportamento do grupo dos Não

Ribeirinhos, verificado na análise dos dados, pode ser a partir do conceito de

desenraizamento. Quando se vive um cotidiano onde ocorrem relações de dominação e exploração político-econômica submetendo a memória, a cultura e os valores de uma comunidade tem-se o desenraizamento (WEIL, 1979:348).

Muitas vezes, o próprio poder público, por ação ou omissão, permite que situações ilegais ou injustas estabeleçam-se, gerando tensão e conflito; conforme se vê nos exemplos acima (55, 56 e 57), onde o poder público figura como ator em processos materiais de cunho semântico negativo. E por essa razão, a partir da análise dos dados, figuram no grupo dos Não Ribeirinhos.

Com relação ao conteúdo semântico das verbiagens e projeções das falas desses atores sociais, predominam as conotações negativas, ocorrendo um equilíbrio entre as positivas e as neutras.

As projeções e verbiagens negativas constituem ameaças proferidas por fazendeiros e jagunços munidos de armas, polícia, em momentos de conflito, ou ordem de restrição de acesso a locais e recursos naturais. Note-se que, nesses casos, muitas vezes verbos de conteúdo aparentemente neutro como o “falar” e “dizer” são interpretados pelos Ribeirinhos com o sentido de ameaça. O teor da ameaça é percebido fortemente no conteúdo das orações projetadas ou verbiagens.

48. ...ele (fazendeiro) diz que não pode e que se fizer uma casa, o trator passa por cima.

49. Aí ele falou comigo, disse que se eu não saísse, que ele ia botar o trator para derrubar a casa com os filho, mulher e tudo.

50. eles (fazendeiros) dizem assim: “Se fizer (uma roça), a gente corta o arame e bota o gado pra dentro para comer o que tiver dentro”.

51. Não pode entrar, eles falam: Aqui não quero pescador.

As projeções de conteúdo positivo ocorrem na situação de concessões feitas pelos fazendeiros aos ribeirinhos, como uso de terra, veio de água etc., ou de atitudes de solidariedade de ocupantes de cargo público.

52. alguns (fazendeiros) de boa vontade, é unido com o pessoal e diz: não dá pra hoje, mas dá pra amanhã.

53. o vereador disse que ia apresentar o pedido do posto médico pra nós, e apresentou, agora estamos esperando.

O conteúdo positivo também pode se referir a informações de melhorias e serviços prestados pelas autoridades. No entanto, chama a atenção o fato de, após a projeção da fala de sentido positivo da autoridade, ocorrer a contestação da informação fornecida. Essa contestação é realizada do ponto de vista léxico gramatical em orações com processos materiais, iniciada por conjunção adversativa.

54. Diz eles que vão fazer uma terceira barragem, mas essa barragem só vai

começar a funcionar daqui a três anos

55. ( o governo) Diz que tá esse projeto de luz pra todos, mas botou luz aqui

não.

56. A Funai diz que ficou como fiscal para fiscalizar, mas isso ela não faz,

não fiscaliza nada.

A reprodução da fala dos Não Ribeirinhos também se refere a promessas feitas pelas autoridades, que aparecem como verbiagens ou orações projetadas.

57. E eles promete esses anos todos, há quinze anos atrás que eles

promete que vem irrigar.

58. Porque eles veem, promete cesta básica, promete que vai ter escola,

promete várias coisas e nada tá vindo.

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 66-74)

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