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O Povo que se Fez Rio e o Rio que Habita seu Povo

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 87-93)

CAPÍTULO 3 Percorrendo o Rio

3.6. Discussão dos Resultados

3.6.3. O Pertencimento

3.6.3.2. O Povo que se Fez Rio e o Rio que Habita seu Povo

O rio São Francisco é apresentado como elemento fundamental para a sobrevivência; como se a existência do homem e do rio se constituísse em uma só. Mais do que um elemento da natureza, do meio, surge no discurso da população ribeirinha como um signo; carregando uma simbologia, que vai além da presença formal como bacia hidrográfica.

O nome ‘rio’ foi uma das palavras com mais alta frequência (23ª. posição na

wordlist), com 1.099 ocorrências.

Em orações relacionais intensivas, o rio (portador) está relacionado a um Identificador ou a um Atributo positivo que mostra a alta relevância do mesmo para vida dos moradores.

125. O rio São Francisco é a vida nossa.

126. O rio é a vida, nós fomos criados aqui com muita água, água à vontade. 127. O São Francisco é tudo pra nós...

128. Agora, na ilha, a gente fica mais à mercê do rio, a gente fica dominado pelo rio.

O rio também é fonte de preocupação dos entrevistados, e essa preocupação é lexicalizada, principalmente através de orações existenciais que marcam tanto processo de continuidade (viver), como de fim de existência (morrer).

130. O rio está morrendo, e se nós continuarmos de braços cruzados, vai

morrer de vez.

A intrínseca relação entre rio e povo também encontra substância com processos relacionais e existenciais acompanhados de uma circunstância de condição (exemplo 131 e 132) ou causa (exemplos 133 e 134), que justificam a afirmação apresentada na oração relacional ou existencial.

131. E se nós não temos esse rio aqui, o que era da gente? Não existia isso

aqui...

132. ... o povo nordestino não existiria, se não existisse esse rio.

133. Então o rio é tudo na vida da gente porque esse povo aqui nasceu e se criou na margem, vivendo desse rio aqui.

134. O Rio São Francisco na minha vida representa tudo, porque sem ele, o meio de sobrevivência ficaria difícil para as pessoas que moram na beira do rio...

Tomado como um membro de suas vidas, na fala dos ribeirinhos, o São Francisco é apresentado como beneficiário de processos materiais, que geralmente são associados a seres humanos (exemplos 135 e 136).

135. ...tem que estar cuidando do rio, então é povo, rio, água, bicho, fruto... 136. E a gente vai curar o São Francisco, porque ele merece nossa atenção. Ao rio também são atribuídos, em orações relacionais intensivas, estados característicos de seres humanos.

137. ... dizem que o rio está doente. Eu pude verificar que sim, que está doente, porque o braço dele está seco hoje em dia...

138. Hoje o rio está muito maltratado, o leito do Rio São Francisco...

Através de processos mentais de cognição são projetados os pensamentos dos moradores ribeirinhos sobre o que deve ser feito para melhorar o rio. As orações projetadas são materiais, com conteúdo semântico positivo. Nesse caso, o experienciador aparece na primeira pessoa do singular.

139. Acho que a gente tem que fazer alguma coisa pra ajudar o São Francisco.

140. Eu acho que é assim: faça uma revitalização no rio São Francisco, após essa revitalização, encaminha água para essas famílias carentes aqui, ribeirinha.

Os processos mentais também projetam a percepção das comunidades sobre a situação em que se encontra o São Francisco. Aqui as orações projetadas são relacionais, com conteúdo semântico negativo.

141. Você vê que o rio está acabando...

142. A gente vê que as nascentes, os afluentes do rio São Francisco pouco a pouco estão sendo degradadas

E finalmente, ocorre o apelo à preservação e revitalização do rio. Os processos verbais projetam orações materiais com conteúdo semântico positivo que apontam para ações em prol da recuperação da bacia hidrográfica.

143. Então peço aos companheiros que estão me ouvindo: lutem pela revitalização não só do rio São Francisco, mas de todos os rios.

144. E a gente fala sempre: tem que fazer a revitalização do São Francisco, porque aí tá revitalizando toda a cultura de um povo.

As representações linguísticas verificadas nessa subcategoria mostra a relação de pertencimento dos atores sociais com o seu espaço de vivência – as margens do São Francisco.

Essa forte ligação entre Ribeirinhos e rio, também pode ser traduzida em termos de identidade e território. Esse sentimento de pertencimento ao espaço onde se vive estabelece as bases para que uma intrincada rede de sociabilidade seja tecida.

É justamente por conta desse enraizamento, que são observáveis nos discursos dos ribeirinhos essa ligação tão forte, em que o rio chega a ser apresentado em termos humanos (está doente, precisa de ajuda, está maltratado).

Dessa relação tão estreita advém a preocupação com a degradação e o desejo de preservação.

Dessa forma, Souza (2001) entende que seja relevante o estudo de como ocorrem as relações de poder, com os recursos naturais, de produção, afetivas e de identidades entre o grupo social e o seu espaço de convivência.

No corpus a representação do São Francisco na vida das comunidades assemelha-se à de um provedor, um ‘pai’ que tudo oferece (terras cultiváveis, água, peixes, lazer) e por esse ‘pai provedor’ é necessário zelar (E se nós não temos esse

rio aqui, o que era da gente? Não existia isso aqui...).

Pelos relatos, percebe-se que a grande maioria das comunidades ribeirinhas têm suas vidas ordenadas a partir das relações afetivas e de produção com o rio e com a paisagem local. E deste ponto de vista se estabelece a importância do “território como espaço revestido da dimensão política, afetiva ou ambas” (CORRÊA apud SANTOS, 1996, p. 251).

3.6.3.3. A nostalgia de Tempos Prósperos

Elemento constituinte do senso de pertencimento a um grupo, a memória coletiva é um forte traço marcado nos relatos. No caso das comunidades ribeirinhas, essa memória recupera principalmente momentos mais prósperos.

Uma vez que a maioria das comunidades tem sua subsistência relacionada ao meio, seja no caso dos pescadores ou vazanteiros, que dependem diretamente das condições do rio para dele extrair o peixe ou caranguejo, seja no dos lavradores, que precisam de terras férteis para plantar, as melhores condições do rio, que existiam no passado, proporcionavam maior abundância para a vida das comunidades.

Essa subcategoria encontra expressão marcadamente com processos existenciais (ter, existir, acabar) no passado, cujo existente possui conteúdo semântico positivo.

146. ...tinha as águas do rio São Francisco, porque era toda riqueza aqui pro povo beiradeiro do velho Chico.

147. ...tinha cheias especial que trazia diversos benefícios para a população. 148. Aquelas plantação de arroz que tinha, acabou...

149. Eu sinto aquela saudade grande só em lembrar daquela época que

existia aquelas grandes embarcação, aquela animação toda.

As orações existenciais no passado, em alguns casos são seguidas de um processo material transformativo com sentido semântico negativo (exemplos 150 e 151), ou com elemento de polaridade negativa (exemplo 152). A transformação apontada é acompanhada de circunstâncias de causa ou finalidade que apontam em razão de que foi praticada a ação negativa apresentada na oração material.

150. ...a terra dele tinha mangueira, tinha coqueiro, tinha jenipapeiro, tinha cajazeira, tinha goiabeira, e eles derrubaram tudo pra plantar cana.

151. Nos poço tinha capivara, tinha lontra, tinha jacaré e os poços foram

aterrados para plantar cana.

152. Antigamente, tinha balsa, grandes lanchas que subia; hoje em dia, não

sobe mais porque o rio baixou o nível.

A lembrança da perda de recursos, terra, benefícios é instanciada também com processos materiais de conteúdo negativo (perder, acabar) e neutro (sair).

153. Perdemos coqueiro, mangueira e tudo.

154. E como nós acabamos de falar, nós perdemos o nosso direito (habitar as ilhas)...

155. Aí nós saímos (do terreno), estamos outra vez na estrada, esperando recurso do Estado, do presidente.

Observou-se no corpus a utilização do processo material tirar com o sentido de obter algo, no caso, elementos para a subsistência. O verbo é utilizado no passado, com meta de sentido semântico positivo.

157. Tudo que a gente queria a gente tirava (do meio), até mesmo por isso o pessoal era mais sadio, era tudo natural.

A memória de tempos mais abundantes também é trazida através de orações relacionais possessivas ou intensivas que ligam o possuidor (uma pessoa no singular/a comunidade ou determinado recurso) a um atributo ou identificador de carga semântica positiva.

158. Eu tinha coqueiro, eu tirava 4000 cocos de dois em dois mês.

159. Nós tínhamos a casa de farinha, rapava a mandioca, fazia biju, tudo isso a gente tinha.

160. Porque uns tempos pra trás nós tínhamos nossas ilhas pra trabalhar... 161. O São Francisco tinha muito movimento de barcos grandes que subiam e desciam, hoje tem trecho que nem de canoa dá pra ir.

162. O gado era muito barato por aqui.

163. O rio era muito movimentado, cheio de barco.

As orações relacionais possessivas também são construídas com elemento de polaridade negativa, demonstrando o desaparecimento de algum recurso material/natural ou animal típico da região.

164.Hoje não tem mais peixe como antes porque o Rio São Francisco está deteriorado.

165. Já não tem mais o tatu, já não tem mais o mocó...

166. ...o rio não tem mais aquela cheia que tinha antigamente.

De fundamental importância para a apropriação do espaço pelas comunidades é a proximidade com o rio, onde praticam suas atividades econômicas, sociais e culturais.

Verifica-se, na subcategoria em tela, que o eixo econômico-social sobre o qual as comunidades se constituíram, assim como sua organização cultural e social, sempre estiveram relacionados à questão ambiental e à presença do rio. Como visto, era ele que fornecia praticamente tudo. Resulta daí o compartilhamento

também das lembranças, ou memória coletiva, representada na fala dos entrevistados.

Porém, a grande diminuição dos recursos naturais, (instanciada no discurso por processos materiais e existenciais e atributos de conotação negativa), provocada por vários fatores como agressão do solo para o plantio de cana, construção de barragens etc (que aparecem como circunstância de finalidade) traz uma situação de precariedade que não existia em tempos remotos.

Fica, no entanto, a lembrança dos tempos de fartura e alegria compartilhados, servindo inclusive como alento para enfrentar o dia-a-dia. A esse respeito Castells defende:

Quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais passam a ter como objetivo fazê-lo retornar ao tamanho compatível com o que podem conceber. Quando as redes dissolvem o tempo e o espaço, as pessoas se agarram a espaços físicos, recorrendo à sua memória histórica (CASTELLS, 2001: 85).

Não é possível para os ribeirinhos frearem as mudanças trazidas pelas transformações no modo de produção, como o impacto das novas tecnologias e mecanização. Diante do inevitável, como visto na categoria O Trabalho, as comunidades tentam adequarem-se. Mas a nostalgia é algo presente e que é verbalizada de forma contundente, pois “ a chegada do novo causa um choque. Quando uma variável se introduz num lugar, ela muda as relações preexistentes e estabelece outras. Todo o lugar muda” (SANTOS, 1988, p. 99).

Essas transformações na organização social e econômica que influem sobre as comunidades acabam por refletir na organização do espaço e/ou território, provocando uma grande nostalgia dos tempos idos.

No documento Maria Aparecida da Silva Lamas (páginas 87-93)

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