• Nenhum resultado encontrado

Parte I Matriz Conceptual Da Filosofia à Literatura para compreender a História

Parte 2 – Portugal na Duração com a mediação da Literatura em EL – Tópicos ilustrativos de

4. República através do Saudosismo de Pascoaes e do Modernismo de Orpheu

4.1. O saudosismo-sebastianismo de Pascoaes numa República patriótica

O sentimento doloroso da existência não tinha de ser descoberto numa cultura como a nossa que tem no Eclesiastes e nas imprecações de Job as suas tábuas da lei. […] Na terra abençoada em que Pascoaes nasceu, na terra mais funda da língua que a diz e nos diz, a Vida, mesmo a redimida vida cristã, não transfigurara o destino comum em pura terra de paz e harmonia. Era, abençoadamente embora, um “vale de lágrimas” que só a esperança de uma “outra margem”, como se diz no Evangelho, tornava suportável.378 Sebastianismo – Portugal foi grande pela acção descobridora e conquistadora. Desbaratado, em Alcácer Quibir, apareceu ao Povo em fantasma, como Jesus aos Discípulos depois da Tragédia do Calvário. Este espectro divinizado da nossa grandeza morta, prometendo o seu regresso, numa encoberta manhã, é o próprio Sebastianismo. […] Saudosismo – Eu chamei Saudosismo ao culto da alma pátria ou da Saudade erigida em Pessoa divina e orientadora da nossa actividade literária, artística, religiosa, filosófica e mesmo social. […] A Saudade, que chorou depois de Alcácer Quibir e assistiu, negra de luto, às exéquias nos Jerónimos, mostra agora, na alegria da sua revelação, o primeiro sorriso de esperança, porque ela, definindo-se, definiu também o nosso sonho nacional de Renascença, o alto destino imposto a Portugal pela Tradição e pela Herança.379

Não resistimos à tentação de citar longamente Teixeira de Pascoaes, na medida em que ninguém melhor do que o próprio explicita a sua visão sobre estes conceitos que, para sempre, a ele ficaram ligados. O texto Arte de Ser Português teve a sua primeira edição em 1915, o mesmo ano da publicação dos dois números de Orpheu, saliente-se, desde já.

A dor católica cristalizada em sentimento pátrio, no início do século XX, num Portugal a experimentar um regime republicano, com objectivos de laicidade, faz ainda eco da reacção nacional ao Ultimatum, mas vai mais fundo no relicário de penas lusas: saudoso da grandeza conquistadora, chora Alcácer Quibir e deposita toda a esperança no regresso do Encoberto, num anseio onírico de cumprimento de um alto destino.

378 EL, “Uma poiética da sombra”, in Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto-

Série de Filosofia (2ª Série), Volume 21; Porto, 2004, p.143-144, disponível em

http://ojs.letras.up.pt/index.php/filosofia/article/view/482/474 [Novembro de 2015]

379 Pascoaes, Teixeira de, “Capítulo XII - O nosso idealismo” in Arte de Ser Português, Lisboa, Edições Roger Delraux, 1978-ed., pp. 139-140

103

Diz EL que poderia esperar-se que, com o Ultimatum e o abanão dado (pelo menos tentado, dizemos nós) pela Geração de 70, tivéssemos aprendido a “dura lição”380, mas não foi o caso: “passado o momento da aflição patriótica […] voltámos à costumada e agora voluntária e irrealística pose de nos considerarmos, por provincianice incurável ou despeito infantil, uma espécie de nação idílica sem igual”381

, assistindo a viragem do século ao eclodir da “mais nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista”382.

Veio a ser o Saudosismo, em termos poéticos, a traduzir esse nacionalismo místico, que se corporizava no Sebastianismo, em termos histórico-ideológicos, como fuga do país a enfrentar a sua realidade, essa que nos entrara de forma dura pela porta em vários e críticos momentos no século XIX e logo no início do século XX (regicídio, mudança de regime, tentativas de apropriação das possessões africanas pelas potências europeias, grande guerra mundial).

Afirmou EL que a própria ideologia republicana se alimentou do “ultranacionalismo da impotência gerado pelo Ultimatum”383

, essa República que Lourenço define, de forma crua, como “conjunto de proposições políticas de subversivo teor ideológico mas de reduzido âmbito social [que] aparece[u] então como forma de apropriação de um destino colectivo confiscado”384

pela monarquia, sendo o período republicano dos mais patrióticos da nossa história.

Por esta associação de um patriotismo, por vezes exaltado, à República, perpassou, segundo EL, uma ideia de restituição da Pátria ao Povo que terá sido o recurso ideológico para mascarar a consciência de desvalia nacional “que o espectáculo do parlamentarismo demagógico só podia confirmar”385

. Desvalia levada ao extremo pela crença de que a salvação do país viria do regresso de um rei adolescente, desaparecido numa batalha de há séculos, numa derrota que marcara o fim das aspirações conquistadoras.

380 EL, “Psicanálise Mítica do Destino Português” in O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do

Destino Português”, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988-ed., p.23

381 Idem, ibidem 382 Idem, ibidem 383 Idem, ibidem 384 Idem, ibidem 385 Idem, ibidem, p.24

104

O Sebastianismo histórico tivera, na verdade, em Oliveira Martins, “seu pai verdadeiro a título póstumo. Do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico, Oliveira Martins fez um mito cultural de ressonância incomparável”386, afirmou EL no prefácio, de 1982, da, ainda hoje relevante, obra de Costa Lobo, Origens do

Sebastianismo, publicada originalmente em 1909.

Esforços como o deste historiador para compreender as motivações do mito mas lançar a luz da razão sobre a sua releitura, explicando “o seu mecanismo em termos psicológico- históricos de compensação”387

, terão sido em vão, porque o tempo era propício à sua propagação que, aliás, perdurou, como “heroicização simbólica”, também em Fernando Pessoa.

Atenção porém: o mito é também para Oliveira Martins, como será para Fernando Pessoa, […] “o nada que é o tudo”. Portugal não tem, nem pode ter outra existência que sob o modo “heróico”. O seu reverso é sempre vivido como “apagada e vil tristeza” ou então “nevoeiro” sebástico, como diz “Mensagem” […] É Portugal como vida, sentimento e história que é, de algum modo, “D. Sebastião”.388

Segundo Lourenço, foi igualmente metafísica “a metamorfose do sebastianismo inscrita na visão da saudade lusíada segundo Teixeira de Pascoaes. A detecção da falha histórica que Oliveira Martins descobriu como própria do ser nacional converteu-se, em Pascoaes, em sentimento original de ausência do nosso próprio ser e mais profundamente de ser

ausente, estrutural nostalgia ontológica, ao mesmo tempo histórica e trans-histórica”389. No fundo, esta linha de pensamento de EL vai no sentido de afirmar que “o sebastianismo seria assim memória presente do bem anterior à nossa morte moral em Acácer-Quibir, um avatar da saudade lusíada”390

. Quando EL qualifica a poesia de Pascoaes como “o mais bem- sucedido combate espiritual, a aventura mais audaciosa da imaginação lusíada para

recriar um mundo novo, uma visão autónoma da existência e da vida”391, surge-nos como sendo isso precisamente o que boa parte do país faria naquele momento: tentar agarrar-se a

386 EL, “Prefácio, Sebastianismo: imagens e miragens” in Lobo, A. Costa, Origens do Sebastianismo, Alfragide, Texto Editores, 2011-ed., p.11

387 Idem, Ibidem, p.12 388

Idem, Ibidem, p.16 389 Idem, Ibidem, p.17 390 Idem, Ibidem

105

uma via de fuga da sua realidade, pós-ultimatum e pós-monarquia (o poema Marânus de que citamos aqui o prefácio de EL, foi publicado em 1911392).

Se identificámos as ligações de Pessoa a esta veia saudosista e ao próprio Pascoaes, de que exploraremos algumas das nuances no ponto seguinte, porém não nos confundamos: embora coevos, Pascoaes vivia completamente fora da Modernidade de que Orpheu foi o grande e ruidoso arauto.

Se da essência da Modernidade é inseparável a “dispersão” de Sá-Carneiro ou a “fragmentação” irremível de Pessoa, Pascoaes está fora da Modernidade assim concebida. […] A maravilhosa boa consciência poética de Pascoaes – a última que conheceu essa essência – nada retira à íntima tragicidade da sua visão do mundo, de que a mitologia da Saudade é, ao mesmo tempo, a expressão e a sublimação ímpar 393

Perguntamo-nos, lendo EL, se o Portugal real não seria massivamente o de Pascoaes, todo ele fora da Modernidade e de boa e inocente consciência, com e como o poeta da Saudade e do sofrimento, ambos idealizados, numa versão mais branda pelo país e poeticamente mais exaltada por Pascoaes.

Mas talvez estejamos já a ser induzidos pela imagem que nos convoca a reacção da Cidade a Orpheu: Pascoaes surge-nos como um bom representante e defensor de uma normalidade pátria de pendor místico, regojizante com a católica visão, sofrida e trágica, da existência, que resistia a enfrentar o nada da Modernidade, agarrando-se como podia a um gasto saudosismo da grandeza perdida.

É dessa reacção que nos ocuparemos de seguida, tendo em consideração que para Pessoa e

Orpheu, esta dor do “vale de lágrimas” adoçado pela esperança da “outra margem”394, em forma de redenção, se convertia na pior das dores “a dor inconsolável da Desilusão e do Desencanto”395

. Rematamos com EL: “O deserto, a essência da vida humana como Modernidade não chora. Não há lágrimas na terra calcinada, devastada em que, ou quase simultaneamente, Pessoa e Eliot, instalaram as suas tendas. Ou apenas lágrimas frias”396.

392

Saraiva, António José, Óscar Lopes, “Neo-Romantismo e Simbolismo-Decadentismo” in História da

Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1996, p.965

393 EL, “Prefácio” in Pascoaes, Teixeira de, Marânus, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, p. VII

394 EL, “Uma poiética da sombra”, in Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto-

Série de Filosofia (2ª Série), Volume 21; Porto, 2004, p.144, disponível em

http://ojs.letras.up.pt/index.php/filosofia/article/view/482/474 [Novembro de 2015] 395 Idem, ibidem

106