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Parte I Matriz Conceptual Da Filosofia à Literatura para compreender a História

4. A História com a mediação trans-temporal da Literatura, em aproximação a Péguy

4.1. Péguy no seu cronótopo

Guiados pela citação de EL que nos ilumina neste ponto, já avançámos, é certo, mas voltemos atrás: Quem foi Péguy? Apesar de não cumprir desfiar aqui a sua biografia cremos que é uma figura tão pouco conhecida, hoje em dia - por exemplo em comparação com Michelet, Braudel ou Bergson, em quem nos detivemos antes, que são nomes “vivos” no presente - que importa, pela relevância que agora acreditamos ter para a nossa análise do quadro mental de Eduardo Lourenço, enraizar brevemente a vida deste poeta e filósofo da história no cronótopo específico da França da Terceira República (1870-1940).

The poet and essayist Charles Péguy (1873-1914) was born into a remarkable generation of French literary figures – one that included such luminaries as André Gide, Paul Valéry, Marcel Proust, Paul Claudel, and Romain Rolland, among others - (…) all of them deeply affected by the tumultuous years of the Dreyfus Affair (1897-1900) and the human tragedy of the Great War (1914-1918).7273

Em parte por natureza e em parte pelas especificidades do seu contexto, Péguy foi um defensor apaixonado de causas, tendo participado muito activamente no Affaire Dreyfus e tendo vindo a alistar-se para combater na Primeira Guerra Mundial, na ilusão de que seria a última, a guerra que acabaria com as guerras e onde veio a perecer em combate. Aliás, exactamente entre esses dois eventos decorreram os anos de maior produção e intervenção deste poeta e pensador, como veremos.

Pela importância que assumiu no seu percurso e posicionamento – político-ideológico mas também intelectual e académico, afinal ético, e no que à História e à Literatura respeita, o que aqui nos interessa – importa lembrar o contexto do referido caso Dreyfus, que, começando como uma mera acusação e condenação de um capitão judeu francês por espionagem a favor da Alemanha, em 1894, se converteu num assunto político e de Estado,

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Roe, Glenn H., “Preface” in The Passion of Charles Péguy – Literature, Modernity and the Crisis of

Historicism, Oxford, Oxford University Press, 2014, p.v.

73 Cumpre referir que a nossa leitura dos textos seleccionados de Péguy – escolhidos pela relevância percebida para a captação da sua visão sobre a História - foi, a partir de determinado ponto, profundamente coadjuvada pela escolha, como companheiro de percurso, de um dos livros publicados no centenário da sua morte (2014), o de Glenn Roe (Lecturer em Literary Studies and Digital Humanities na Australian National University), citado acima, e que foi para tal eleito porque consideramos que analisa Péguy exactamente da perspectiva que consideramos que melhor serve os nossos propósitos de aproximação a EL: como teorizador sobre o papel da História, na compreensão do real, e da Literatura como superiora mediadora deste processo.

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fracturando a França, na viragem do século XIX para o XX, literalmente em duas facções: defensores e acusadores de Dreyfus, divisão que teve uma correspondência ideológica muito vincada, agregando a esquerda les dreyfusards e a direita les antidreyfusards.

Esta clivagem, que se foi aprofundando com a segunda condenação do capitão (em 1899), baseada em documentos fabricados pela acusação, como se veio a provar, provocou um movimento massivo de apoio ao mesmo por parte de intelectuais e artistas (entre os quais Péguy mas também Anatole France, Marcel Proust, André Gide entre muitos outros, de grande projecção) com forte repercussão pública através da imprensa, da qual o ponto mais lembrado é, ainda hoje, a carta aberta publicada por Zola no Le Figaro, em 1897, com o título « J'accuse... ! », dirigida ao presidente Félix Faure, defendendo a inocência do capitão.

Dreyfus viria a ser reabilitado e reintegrado no exército, em 190674, mas este caso permaneceu como uma ferida aberta em França e marcou, para o que aqui nos ocupa, também, e em particular, o movimento intelectual nos anos seguintes, com a ascensão do grupo dos apoiantes de Dreyfus à academia e à orientação da programação pedagógica e de investigação75, sendo o ensino logo uma grande preocupação do regime francês desde “1880 when the French Third Republic decided to control more closely its schools and universities with the aid of the newly coined ‘historical sciences’” 76

.

Péguy não acompanhou esse movimento de tomada do poder e da academia, distanciou-se dos até aí seus correligionários e posicionou-se abertamente contra o historicismo e contra o uso da história ao serviço do controle do ensino pelo regime, barricando-se na “sua” trincheira da Sorbonne, do outro lado da rua, e atacando o que se passava na universidade

74 Este resumo do Affaire Dreyfus foi produzido com base na informação disponível na Enciclopédia Larousse em linha, disponível em http://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/affaire_Dreyfus/117099 [Maio 2015];

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“Dreyfusard professors such as Émile Durheim and Gustave Lanson were given chairs at the prestigious Sorbonne in Paris […], Péguy was shocked by this settling of political scores in the academic community.” Roe, Glenn H., “Introduction” in The Passion of Charles Péguy – Literature, Modernity and the Crisis of

Historicism, Oxford, Oxford University Press, 2014, p.13.

76

Idem, ibidem, p.12 Roe enfatiza que “By the end of nineteenth century, positivism in its most general sense had become the guiding principle behind the institutionalization of history as the pre-eminent academic discipline in the French university system. This methodology, whose mechanistic determinism resembled closely that of the natural sciences, was then applied to humanities disciplines”. Idem, ibidem

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através dos seus Cahiers de La Quinzaine “his avant-garde literary review”77, publicados desde 190078.

Roe defende que dois eventos inaugurais do século XX constituíram, para Péguy, pilares centrais da sua teorização: i) a crescente popularidade do Bergsonismo e ii) a democratização dos estudos liceais e universitários em França79. Bergson e as suas teorias, por um lado, e a reflexão sobre a filosofia do ensino e da investigação em França, em particular em relação às ciências humanas e centralmente em relação à História, por outro, foram temas recorrentes na sua obra.80

Para descobrir Péguy e analisar o seu olhar sobre a História - e tendo a fortuna de encontrar, em linha81, boa parte dos volumes da sua obra completa e também da compilação dos seus Cahiers de La Quinzaine – seleccionámos quatro textos, que já vimos citando e que nos pareceram conter referências chave, a saber, por ordem cronológica de produção:

i) «Zangwill»82 - 1904;

ii) «De la situation faite à l’histoire et à la sociologie dans les temps modernes» – 1906;

iii) «Clio, Dialogue de l’histoire et de l’âme païenne» – 1913 (publicado postumamente);

iv) « Note sur M. Bergson et la philosophie bergsonienne » - 1914.

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Roe, Glenn H., “Introduction” in The Passion of Charles Péguy – Literature, Modernity and the Crisis of

Historicism, Oxford, Oxford University Press, 2014, p.11.

78 Roe, Glenn H., “The End o the Affair” in The Passion of Charles Péguy – Literature, Modernity and the

Crisis of Historicism, Oxford, Oxford University Press, 2014, p.56.

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Roe, Glenn H., “Preface” in The Passion of Charles Péguy – Literature, Modernity and the Crisis of Historicism, Oxford, Oxford University Press, 2014, p.v.

80 Algo muito evidente em textos como “Zangwill”, “Clio” e “De la situation faite à l’Histoire et à la Sociologie dans les temps modernes” que, brevemente, percorreremos.

81

Em volumes propriedade da Universidade de Toronto, digitalizados com patrocínio da Universidade de Otava e disponíveis em https://archive.org [Junho 2014]. Note-se que não foi possível encontrar, em linha, nenhuma digitalização de obras de Péguy sob o patrocínio de qualquer instituição francesa, nem mesmo no ano em que se completaram 100 anos sobre a sua morte…

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texto que visava apresentar um autor judeu, desconhecido, Zangwill, de quem era publicada uma pequena história nos Cahiers, na mesma data, e se transformou numa das produções teóricas mais importante de Péguy. Roe, Glenn H., “The Metaphysics of Modern Historicism” in The Passion of Charles Péguy –

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Entre os anos do caso Dreyfus e a primeira guerra, Péguy terá sido, em França, um dos grandes protagonistas de mais uma “confrontation between history and literature“83 lutando pela “independence of literature and art against the excesses of historicism”84

. Teoricamente, no que à História respeita, Péguy opôs-se a Taine (1828-1893) e Renan (1823-1892), dois dos mestres historiadores cujas teses de aplicação do método científico às humanidades Péguy combateu – não deixando de ter, com estes intelectuais, uma relação de “cultural inheritance and intellectual rebellion”85

, mas discutindo sobre a sua preocupação central, concernente ao lugar e objectivo do estudo da História86, e concluindo contra a aplicação dos métodos científicos modernos a esta disciplina:

Ma proposition est exactement la suivante, que les méthodes scientifiques modernes, importées, transportées telles que dans le domaine de l'histoire, demandent, si on les entend exactement, et dans toute leur extrême rigueur, des qualités qui ne sont point les qualités de l'homme.87

Sendo Péguy identificado por Roe como precursor de críticas que vieram a ser lançadas a esta abordagem historicista-positivista, já em torno de e após a segunda guerra, por nomes como Marc Bloch, Lucien Febvre ou Karl Popper, entre outros, diz aquele autor que “Péguy’s brand of modernism is, in many ways, more resonant with the various acceptations of the term ‘modernity’ (or even ‘postmodernity’) that appears in the last half of the twentieth century”.88