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O ser humano ou o mercado

No documento O DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO (páginas 125-132)

CAPÍTULO IV A INDÚSTRIA ALIMENTAR

4.4 O ser humano ou o mercado

Nas últimas décadas a rápida e intensa concentração de poder das chamadas indústrias da vida tem sido vertiginosa e não há qualquer sinal de que essa tendência de crescimento acelerado possa ser revertida.

Um número cada vez menor de corporações (os gigantes genéticos) controla os mercados das indústrias agrícolas, de alimentos, de produtos farmacêuticos todos eles em clara expansão. Essas empresas transnacionais têm por objetivo manipular, controlar, patentear e lucrar com a vida. A combinação de monopólio de patentes e domínio de mercado confere aos gigantes genéticos um controle sem precedentes sobre os produtos e processos da vida - base biológica para comercialização de alimentos - da agricultura e saúde.

O poder desenfreado das corporações aliado ao desaparecimento dos investimentos de responsabilidade do poder público afetam sobremaneira, as áreas da saúde, agricultura e nutrição em nível mundial, uma vez que a prioridade dos investimentos realizados pelo setor privado diz respeito exclusivamente à percepção dos lucros corporativos, o que significa dizer que o bem público, o bem estar social, ficam relegados a segundo plano.

A atuação egocêntrica e obstinada das empresas transnacionais em busca do lucro corporativo identifica-se com o abissal distanciamento das relações havidas entre ricos e pobres, sobretudo no que concerne às seqüelas das desigualdades que, não obstante estejam longe de ser superadas, tendem a ser potencial efetivamente agravadas, pois o acesso à alimentação, saúde e nutrição, outrora considerado um direito fundamental, protegido e assegurado pelo Estado, atualmente estará sujeito às variações e desejos de um sistema de livre mercado.

As empresas transnacionais - denominadas mundialmente de gigantes genéticos - dominam a produção, comercialização e distribuição de fertilizantes, defensivos agrícolas, sementes, produtos farmacêuticos, alimentos e produtos veterinários. Dizer que as corporações transnacionais competem e rivalizam com os Estados não seria de todo correto. Reportagem veiculada na Revista The Economist reproduziu um diálogo mantido entre negociadores numa reunião destinada à fusão entre a Travelers e o Citicorp. Naquela

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oportunidade, um dos negociadores indagou: Será que alguém poderia nos deter agora? E a resposta foi: apenas a OTAN 218.

As maiores corporações transnacionais são responsáveis por dois terços de todo o comércio mundial e cada vez estão mais transnacionais, isto é, estão cada vez menos dependentes de seus países de origem em termos de capital, distribuição de produtos e localização de mão-de-obra. A Coca-Cola talvez seja o melhor exemplo da independência das corporações frente às exigências de um Estado: apesar de ser uma companhia americana, 80% de seus lucros são provenientes de operações realizadas fora dos Estados Unidos da América.

As antigas fronteiras existentes entre as indústrias farmacêuticas, biotecnológics, agrícolas, químicas, de cosméticos e outros distintos setores da economia estão diminuindo e tendem a desaparecer. Sob o manto das ciências da vida as transnacionais estão usando tecnologias complementares para transformar-se nos atores dominantes dos diferentes setores industriais. As principais companhias se encontram em plena reestruturação visando obter vantagem e adiantar-se na revolução do campo molecular e no uso complementar das tecnologias tais como, química combinatória, transgênicos, bioinformática e nas ciências do genoma ou genômicas.

O denominador comum do nosso negócio é a biologia. Os investimentos e a tecnologia são aplicados com a finalidade de descobrir, desenvolver e comercializar produtos que afetam sistemas biológicos sejam em seres humanos, plantas ou animais 219.

Os mercados agrícolas e médicos são muito diferentes, mas os níveis de pesquisas e investimentos estão se aproximando cada vez mais. Tecnologias tais como sequenciamento genético, química combinatória e screening de alta precisão, são tão relevantes para agricultura como o são para a saúde humana. 220

As transformações radicais da economia globalizada estão em pleno desenvolvimento e são irreversíveis. Importantes corporações químicas mundiais estão deixando os produtos petroquímicos para concentrar sua atuação na área de biotecnologia, especialmente nos setores agrícolas, farmacêuticos e de alimentos.

218 The Economist, 9 de Janeiro de 1999, p. 21

219 Daniel Vasella, apud DAVID, Pilling,. The Facts of Life: Chemical and Pharmaceutical Companies see their

future in biological innovation. Financial Times, 9 de Diciembre de 1998, p. 21.

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A atual economia está baseada no conhecimento e os ativos de propriedade intelectual tem superado os ativos físicos, tais como a terra, as máquinas, mão de obra, como bases de valores corporativos. As companhias das ciências da vida estão assegurando as informações e a tecnologia através da proteção patentária e este caminho está levando, em muitos casos, a uma reestruturação da indústria. Não se pode negar o impacto da globalização nos negócios. Hoje, a criação de riqueza em nível corporativo vem das companhias que comandam as idéias e não das que fabricam coisas 221

Em um futuro próximo a indústria da vida deverá colocar à disposição do mercado consumidor uma variedade de produtos com valor agregado (geneticamente introduzido), sob a justificativa de maior equilíbrio de aminoácidos, proteínas e outros ingredientes necessários à saúde humana.

A introdução de cultivos patenteados não será produzida como bens tradicionais ou genéricos. Além do cultivo e do valor agregado, inclui vínculos contratuais entre a companhia de sementes, o distribuidor de grãos e a companhia processadora de alimentos. Os agricultores possivelmente serão afastados do manejo de sua produção e da tomada de decisões. Passam a ser arrendatários de germoplasmas patenteados pelos gigantes genéticos e suas sucursais.

É muito provável que num futuro próximo ocorram enormes alianças entre as gigantes farmacêuticas e as gigantes de alimentos, uma vez que o desenvolvimento dos alimentos funcionais e nutracêuticos têm contribuído para o desaparecimento das fronteiras entre alimentos e medicinas. Isto é um incentivo a mais para a fusão entre as indústrias processadoras de alimentos e as empresas de agricultura biotecnológicas e farmacêuticas vez que a identidade de seus produtos permite combinar e complementar os interesses afins. DuPont, Kellogg, ConAgra, Mars, AstraZeneca entre outros, já estão trabalhando na direção da modificação dos alimentos para melhoria da saúde e bem estar dos consumidores. São considerados exemplos de alimentos funcionais: a Olestra - uma pseudo-gordura de propriedade da gigante Procter&Gamble, um novo ingrediente dos salgadinhos da PepsiCo; a Archer Daniels Midland, a gigante da indústria agrícola está desenvolvendo, mediante o uso de uma proteína de soja, uma sobremesa sem lácteos, com baixo teor de gorduras, livre de colesterol e lactose e fortificada com vitamina E; a

Unilever desenvolveu uma margarina com derivados de polpa de

madeira que reduz o colesterol e custa três ou quatro vezes mais do que a margarina comum. Mas a companhia insiste em dizer que não é um produto que deva ser comparado com a margarina comum, mas sim com o que a gente paga por produtos para o cuidado da saúde; a

DuPont está realizando 40 ensaios clínicos com proteína de soja

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visando o desenvolvimento de alimentos baseados em soja que reduzam o colesterol e combatam a osteoporosis e o câncer 222

Essa pequena digressão tem o propósito exclusivo de informar as diretivas e os fatores determinantes e norteadores das decisões anunciadas pelas corporações transnacionais relativas ao desenvolvimento e fabricação de produtos alimentícios ou aqueles eventualmente assim denominados com diversas propriedades e características funcionais e nutracêuticas e que, muito em breve, serão introduzidos no mercado e colocados à disposição do consumidor;

Por óbvio que o lançamento e a colocação desses novos produtos no mercado consumidor serão realizados com maciças intervenções midiáticas, vultosos investimentos publicitários e excepcional atuação das agências de publicidade que se utilizarão de todos os métodos e recursos disponíveis para influenciar as decisões dos consumidores e garantir o sucesso de mercado dos referidos produtos!

Noam Chomsky diz que as corporações são pessoas sem valores morais que visam somente os interesses de seus acionistas 223

Mark Achbar sustenta:

o Estado é a única instituição cujo poder excede o das corporações. Os interesses de uma corporação só dizem respeito ao Estado enquanto esse possibilita ou inibe a geração de grandes lucros para aquela empresa. Democracia é, geralmente, um obstáculo à geração de lucro e as corporações procurarão contornar, acordar com ou destruir qualquer obstáculo ao lucro 224.

O interesse no lucro hipertrofiou o poder das grandes empresas produtoras de fármacos e defensivos agrícolas, que passaram a formar

lobbies e cartéis de alta influência econômica e política nos governos de, praticamente, todos os países. A indústria de agrotóxicos sofisticou seus métodos, criando não somente inseticidas e fungicidas, mas herbicidas seletivos de grande poder de penetração na célula humana e de imensa capacidade tóxica, cancerígena ou teratogênica. Em associação ao uso de agrotóxicos, a indústria de alimentos aprimorou seus métodos de criação de aditivos alimentares (corantes, aromatizantes, etc.), criando uma imensa gama de produtos completamente supérfluos e prejudiciais à saúde, presentes em

222 Daniel Vasella, apud DAVID, Pilling,.op. cit., p. 21.

223 ACHBAR, Mark, ABBOT, Jennifer. The corporation. Documentário em DVD, 2004. 224 Ibid.

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produtos como sorvetes, chicletes, chocolates, bombons, refrigerantes e similares. O desconhecimento e o descontrole dos governos e autoridades sanitárias quanto aos perigos dessas substâncias puseram em risco a saúde de todos os habitantes da Terra. É potencialmente perigoso, sob vários aspectos, consumir alimentos que contenham qualquer produto químico. Contrariando as características naturais dos alimentos disponíveis desde a criação do mundo, há pouco menos de um século o homem vem criando, de modo crescente, uma grande variedade de venenos, absolutamente supérfluos, destinados somente à satisfação do paladar e ao estímulo do consumo descontrolado. A cada instante um novo chocolate ou refrigerante de sabor mirabolante é apresentado pela indústria alimentícia. Um intrincado jogo de interesses envolve a fabricação desses produtos e revela um imenso descaso quanto aos seus efeitos sobre a saúde individual ou coletiva, a curto, médio e longo prazos - além de iludir um mercado consumidor muito mal informado 225.

A Constituição Federal de 88 erigiu a Dignidade Humana como princípio fundante e expressão maior do estado democrático de direito em relação ao qual se estrutura ao tempo mesmo em que se consolida ordenamento jurídico que atribui ao Estado a competência para promover todas as ações necessárias em defesa da dignidade humana.

Em se tratando de relação de consumo, o artigo 10, do CDC proíbe a colocação no mercado de produto que apresente risco potencial e/ou efetivo à saúde do consumidor que tem o direito à informação clara e precisa acerca de todo e qualquer o produto introduzido no mercado, impondo-se em contrapartida o dever do fabricante de prestar todas as informações necessárias e suficientes ao pleno entendimento do consumidor.

Mas o que ocorre, na verdade e que será demonstrado no Capítulo VI, os fabricantes muitas vezes ignoram os preceitos, as regras e a ética que devem permear as relações que se estabelecem em sociedade, em prol da obtenção dos lucros corporativos, perseguidos de forma obstinada.

Condutas desse jaez e/ou similares à da empresa Ajinomoto (MID SUGAR) que em resposta ao IDEC (transcrito) disse não conhecer o Código de Defesa do Consumidor alegando a necessidade de normas específicas, apenas confirmam o realismo e a atualidade do pensamento de Noam Chomsky que afirma que as Corporações são criações artificiais, que

exercem o controle do negócio e dos mercados apenas para obtenção de lucro... tem os

225 BONTEMPO, Márcio. Alimentação para um novo mundo: a consciência ao se alimentar com garantia para a

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direitos de uma pessoa imortal e os acionistas como única preocupação e que o problema

dos cidadãos corporativos é que eles não têm alma a salvar nem corpo para ser preso 226.

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CAPÍTULO V

FATORES DE RISCO DA SAÚDE HUMANA

A reiterada ingestão de alimentos quimicamente processados e uma vida sedentária são circunstâncias que podem facilitar, predispor ou agravar a ocorrência de distúrbios na saúde, muitas vezes difíceis de serem percebidos no diagnóstico das possíveis causas.227

Ao contrário dos procedimentos de vigilância sanitária levados a efeito nos países desenvolvidos nos quais se constata adoção de procedimentos fiscalizatórios periódicos, diversificados e aleatórios de amostras de produtos nos pontos de venda com a conseqüente análise bromatológica, no Brasil, as ações de vigilância sanitária representam o maior entrave a ser superado, pois não só a fiscalização não é exercida de modo contínuo e permanente, como as eventuais e esporádicas ações levadas a efeito ocorrem preferencialmente em situações que tendem a ganhar as páginas dos jornais e se espalhar pela mídia conforme a gravidade do escândalo.

Entre as inúmeras denúncias noticiadas, a fiscalização esteve presente nos casos de bromato no pão, do cromo na gelatina, do dióxido de enxofre em sucos de frutas, do formol no leite UHT e do nitrito e nitrato utilizados em produtos cárneos.228

A seqüência é sempre a mesma: alguém denuncia o fato, a mídia o destaca criando o maior alvoroço, a autoridade sanitária comparece, recolhe amostras e as analisa, professores e pesquisadores se pronunciam, órgãos de defesa do consumidor e entidades ambientalistas reclamam do excesso de química nos alimentos industrializados, a indústria se defende e o assunto acaba morrendo, quase sempre com providências tomadas, é verdade.229

227 EVANGELISTA, José, op. cit., p. 433. 228 Ibid.

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