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Capítulo 1 Elementos da estrutura social à data da Implantação da República

1.5. O sindicalismo revolucionário e o anarquismo

Perante a morte do rei D. Carlos e do seu herdeiro, Luís Filipe, o então regime Monárquico, desgastado por décadas de escândalos de corrupção122, pela subserviência face a Inglaterra, pela ditadura de João Franco e uma oportuna e metódica ação de propaganda republicana123, entrou em colapso. Na primeira década do séc. XX, o operariado estabeleceu uma relação mais profunda com os elementos republicanos, através da Carbonária, que começava a permitir a adesão de anarquistas para as suas fileiras124. Esta aliança foi fundamental, não só para legitimar a República perante as classes populares, mas também para fortalecer as próprias ações militares subversivas durante a insurreição de outubro de 1910.

Apesar das várias contradições que compunham este campo heterogéneo em prol da República, definido por um largo espectro de correntes e movimentos que iam de anarquistas antiparlamentares a republicanos nacionalistas, o espírito republicano entranha-se, incluindo nas organizações subversivas proletárias de tipo socializante. Um dos meios mais eficazes de adesão do proletariado à causa republicana, para além da propaganda escrita, seria a propaganda oral, os comícios, as “assembleias magnas” ao ar livre. Na praça pública os republicanos, graças ao “contacto frequente dos seus homens prestigiosos com as classes proletárias”, conseguiam também chamar para a sua causa as classes sociais subalternas, mais “pelos corações do que pelas ideias”125. Segundo o

121 TORRES, Eduardo Cintra – A Greve Geral de 1903 no Porto. Um estudo de História, Comunicação e

Sociologia, p. 153.

122 Referimo-nos à acumulação de empregos por parte dos políticos do regime, os empréstimos ilegais que

o Ministro da Fazenda fazia à família real e rumores sobre a influência de padres jesuítas sob a família real, mais precisamente, D. Amélia: VALENTE, Vasco Pulido – O Poder e o Povo, p. 35-43.

123 Idem, p. 33.

124 SERRA, João B. – “O assalto ao poder”. In ROSAS, Fernando (coord.) - História da Primeira República

Portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2010, p. 49.

imaginário religioso, que já inspirava Manuel Ribeiro, “o tribuno político [republicano], é o apostolo, o evangelizador que fustiga a tirania e exalta a liberdade”, que conseguia fazer transcender o público além da sua individualidade, transformando-o num “bloco humano solidarizado na aspiração de um estado social melhor”126.

Entretanto, o crescente espírito republicano não impediu a introdução do novo ideal sindicalista, que iria conquistar o movimento operário. Em 1908, surgiu o primeiro jornal sindicalista revolucionário, A Greve, dinamizada por um grupo de tipógrafos influenciados pela Carta de Amiens da CGT (francesa)127 que já tinham estado envolvidos numa greve em 1904128. Este documento, aprovado no Congresso de 1906 da CGT (francesa), tornou-se no manifesto basilar que definiu os princípios do sindicalismo revolucionário129. Nos princípios expressos na Carta de Amiens foi afirmada a autonomia da CGT em relação a qualquer doutrina política, apontando como objetivo final a abolição do trabalho assalariado e dos patrões; opunham-se a qualquer forma de exploração contra a classe trabalhadora; eram favoráveis às melhorias imediatas como a redução do horário de trabalho e o aumento salarial130. A sua principal tarefa, enquanto sindicalistas, era o de preparar a humanidade para a sua emancipação total, graças à expropriação dos capitalistas, pela greve geral revolucionária. Ou seja, enquanto que no modo de produção capitalista o sindicato operava como uma sociedade de resistência, já após a revolução, o sindicato iria ficar encarregado de administrar a produção e redistribuição de bens, seria a própria base da futura organização social131.

Antes, contudo, de clarificar as posições ideológicas dos revolucionários sindicalistas, devemos afirmar que, em primeiro lugar, o sindicalismo revolucionário não era uma doutrina necessariamente anarquista ou marxista; era antes, uma estratégia e um

126 Idem, p. 1.

127 PEREIRA, Joana Dias – Sindicalismo Revolucionário: A história de uma idéa. Lisboa: Caleidoscópio,

2009, p. 32-36.

128 VIEIRA, Alexandre – Para a história do sindicalismo em Portugal, p. 32: A evolução da contratação

coletiva da classe dos operários tipógrafos em Portugal foi marcada pela greve de 1904. Apesar de terem saído derrotados da greve, esta encetou uma rede de organização que perduraria por vários anos. Cf. BARRETO, José – “Os Tipógrafos e os despontar da contratação colectiva em Portugal (II). Análise Social, vol. XVIII (70), 1982-1.º, 183-212.

129 PEREIRA, Joana Dias – Sindicalismo Revolucionário: A história de uma idéa, p. 16. 130 OLIVEIRA, César - O Operariado e a República Democrática: 1910-1914, p. 250. 131 Idem, p. 250.

método de organização sindical com o intuito de unir, sob a mesma federação sindical, trabalhadores de várias tendências que desejassem lutar contra o patronato por melhores condições laborais. Todavia, como iremos ver (capítulo 2.2), alguns sindicalistas foram mais além e defenderam que o sindicalismo se bastava a si mesmo, que era mais do que uma estratégia, ou seja, uma nova doutrina, para além do marxismo e do anarquismo, uma síntese dos dois.

Em segundo lugar, devemos clarificar a relação dos anarquistas com o sindicato, de forma a compreender o contexto revolucionário português. Encontramos no campo anarquista, por um lado, aqueles que se identificam com a Carta de Amiens, mas rejeitam a ideia de fazer do sindicato uma organização política, do tipo anarquista. Por outro, encontramos também aqueles que defendem que o sindicato deve ser vincadamente anarquista. Na primeira variante, deparamo-nos com uma conceção próxima da de Malatesta132 e Neno Vasco133, anarquista-comunista para quem o sindicato (a

organização de massas) era o meio, por excelência, para a propaganda anarquista,

promovida pelos militantes mais combativos da organização específica134. A necessidade da organização específica resultava da noção de Malatesta de que o sindicalismo, por si

132 De acordo com Carl Levy, Errico Malatesta (1853-1932) foi um dos mais importantes militantes

anarquistas entre 1890 e os anos 20 do século XX, sendo apelidado por alguns como o “Lenine de Itália” ou o “Garibaldi Socialista”. As suas teorias sociais demarcavam-se do positivismo determinista da época, defendido, em certa medida, por autores como Kropotekin. Isto é, para Malatesta o estabelecimento da sociedade anarquista não estava pré-determinada, dependia antes da ação dos militantes anarquistas. Nesse enquadramento, defendia a revitalização dos princípios da I Internacional e a formação do “partido anarquista”, ou seja, uma organização com um programa concreto e unitário das diferentes tendências libertárias, com vista a propagar e a estabelecer o ideal anarquista entre as massas: LEVY, Carl – “The Rooted Cosmopolitan: Errico Malatesta, Syndicalism, Transnationalism and the International Labour Movement”. In BERRY, David; BANTMAN, Costance (org.) – New Perspectives on Anarchism, Labour

and Syndicalism. The Individual, the National and the Transnational. Newcastle: Cambridge Scholar

Publishing, 2010, p. 61-71.

133 Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós e Vasconcelos, Neno Vasco, foi possivelmente o mais

importante teórico do anarquismo português durante a primeira década da República. Colaborou com a imprensa anarquista portuguesa e brasileira, como A Aurora, A Terra Livre, Amigo do Povo, entre muitos outros. Na sua principal obra, “A Conceção Anarquista do Sindicalismo”, cristalizou a sua posição enquanto anarquista comunista e um convicto malatestiano, defendendo a revolução armada: SAMIS, Alexandre – Minha Pátria é o Mundo Inteiro: Neno Vasco, o Anarquista e o Sindicalismo Revolucionário

em dois mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009; VASCO, Neno – Concepção anarquista do sindicalismo. Porto:

Edições Afrontamento, 1984.

134 A organização específica refere-se àquilo que Malatesta chamava de “partido anarquista”. Este “partido” tratava-se de uma organização de anarquistas com um conjunto de objetivos definidos de forma a poderem coordenar a sua ação e estratégias políticas: MALATESTA, Errico – “A Organização II”. Agitazione de

mesmo, não era anarquista. Ou seja, nesta conceção anarquista de transformação social, subentende-se a questão do dualismo organizacional entre a organização de massas (sindicato) e a organização específica (grupo anarquista)135. Por outro lado, na segunda variante encontram-se os anarquistas que defendiam aquilo que mais tarde ficou conhecido por anarco-sindicalismo. Isto é, a ideia de que o sindicato deve atuar além da sua dimensão estritamente económica, de que deve incorporar uma dimensão política, vincadamente anarquista, de modo a alcançar o seu projeto revolucionário. Nesta perspetiva, a organização específica, tal como a defende Malatesta, já não era necessária. Em vez disso, seria o sindicato anarquista o organismo responsável por defender as ideias do apoio-mútuo e que iria estabelecer a sociedade anarquista. Esta última conceção anarquista, o anarco-sindicalismo, que se começou a formar por volta 1905 na Argentina (através da FORA136), só se afirmaria plenamente à escala internacional com o Congresso de Berlim de 1921, como reação à bolchevização dos sindicatos, que seria também defendida pela CGT (portuguesa) sob liderança de Manuel Joaquim de Sousa137.

A divulgação das novas ideias sindicalistas em Portugal, particularmente em Lisboa, partiria da iniciativa do Comité de Propaganda Social, que dinamizava o A

Greve138. Este grupo de sindicalistas iniciou uma longa atividade de formação intelectual operária, segundo os princípios sindicalistas revolucionários, com o intuito de unir todas as fações políticas operárias para a construção da Confederação Geral do Trabalho, a base da sociedade futura. Esta nova ferramenta de educação e propaganda também se revelou fulcral para organizar um contramovimento revolucionário na consciência operária, à data do Congresso Nacional Operário de 1909, convocado pela Federação Sindical de Lisboa (PSP)139.

135 CORRÊA, Filipe - Rediscutindo o Anarquismo: uma abordagem teórica. São Paulo: Escola de Artes, Ciências e Humanidade da Universidade de São Paulo, 2012, p. 168.

136 A partir do V Congresso da FORA o anarquismo foi adotado enquanto o objetivo final do sindicato,

aquilo que Corrêa denomina por “finalismo forista”: Cf. CORRÊA, Felipe - “Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário: uma resenha crítica do livro de Edilene Toledo, a partir das visões de Michael Schmidt, Lucien van der Walt e Alexandre Samis.” In Ideologia e Estratégia: anarquismo, movimentos sociais e

poder popular. São Paulo: Faísca, 2011, p. 84-85.

137 Cf. TEODORO, José Miguel de Jesus – A Confederação Geral do Trabalho (1919-1927). Lisboa:

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013, p. 179-200. Dissertação de Doutoramento.

138 PEREIRA, Joana Dias – Sindicalismo Revolucionário: A história de uma idéa, p. 33-34. 139 CABRAL, Manuel Villaverde – Portugal na alvorada do séc. XX, p. 126.

A partir deste Congresso, após a rejeição de uma moção, com o objetivo de impedir que organismos políticos participassem, os sindicalistas revolucionários decidiram abandonar e formar um novo congresso140. Foi com este congresso cisionista, o I Congresso Sindical e Cooperativista, realizado no Porto e em Lisboa, que as ideias da Carta de Amiens passaram à prática141. Nesse sentido, encontramos nas conclusões da tese “Cooperativismo e Organização Sindical” muitas das ideias chave da CGT francesa142.

Para além da melhoria das condições de vida, a tese fundadora apelava à solidariedade, à ação direta e à defesa da organização sindical como a base da sociedade futura, que iria abolir o trabalho assalariado. Para atingir esse objetivo, defendiam uma “propaganda ativa”, que seria realizada no futuro pelo semanário O Sindicalista, e os demais jornais de classe, de modo a criar um “espírito de classe, a necessidade de, afinal, tratar-se de si, da sua própria condição e da melhoria material da sua situação em face das outras classes” 143. Também reiteram o ponto que tinha sido rejeitado no congresso organizado pela Federação Sindical de Lisboa (PSP), o pilar do sindicalismo revolucionário, ao concluir que “o operariado português deve, independentemente de quaisquer doutrinas filosóficas individuais, unir-se, agrupar-se”144 e, após a sua adesão nas associações locais de classe, estaria apto a fundar a Confederação Geral, a última etapa para estabelecer a Internacional do Trabalho145.

O corpo orgânico encarregue de levar avante os seus objetivos, o CECS, foi constituído maioritariamente por militantes sindicalistas revolucionários, elegendo Jorge Coutinho como Secretário-Geral146. Contudo, o momento que se seguiria à formação deste organismo sindical, dominado pela questão do regime e o confronto de ideias entre monárquicos e republicanos, ainda não seria propício à afirmação da CECS na cena política nacional.

Mesmo assim, entre as transformações que determinaram o seu tempo, os

140 SOUSA, Manuel Joaquim de – O Sindicalismo em Portugal, p. 77-83. 141 Idem, p. 77-83.

142 OLIVEIRA, César - O Congresso Sindicalista de 1911. Porto: Afrontamento, 1971, p. 19-22. 143 Idem, p. 21.

144 Idem, p. 21. 145 Idem, p. 21.

sindicalistas encontravam-se mais preparados para atuar vivamente na esfera política nacional. Dispunham dos instrumentos necessários para orquestrar uma ação coordenada a larga escala, isto é, os jornais operários. O que, por sua vez, abriu caminho a que uma nova geração de propagandistas manifestasse a sua opinião política além da esfera das relações face-a-face, perante um crescente público de leitores147. Neste momento, entre o fervilhar de ideias que marcou a mudança de regime, surgiram personalidades como Carlos Rates e Manuel Ribeiro que iriam iniciar, com a República, uma nova fase nas suas trajetórias e destacar-se como “produtores de opinião” sobre o sindicalismo revolucionário português148.

147 TARDE, Gabriel – A opinião e as massas, p. 63. 148 Idem, p. 70.

Capítulo 2. – As trajetórias da praxis: Carlos Rates e Manuel