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O sofrimento como caminho ou negação para a fé

V. A relação entre o sofrimento e as promessas

2. O sofrimento como caminho ou negação para a fé

Ao longo da vida cada um de nós vai experimentando muitas situações que nos colocam diante de situações limite. Desde as mais pequenas contrariedades do quotidiano até às situações mais difíceis, tudo nos afeta. Ninguém fica indiferente diante de uma situação de doença grave, de problemas familiares, económicos ou outros. Muitas podem ser as causas para o sofrimento, mas “a pós-modernidade tem colocado o Homem diante de uma crise de sentido de vida sem precedentes. Apesar de ter conseguido um alto grau de domínio tanto na técnica como na ciência, constata-se uma crise de valores, da moral e da ética, gerando sofrimento, deceção e um crescente aumento de violência”213.

Diante destas situações difíceis, cada pessoa vai procurando encontrar soluções para a resolução dos seus problemas, mas em tantos momentos não consegue. Em muitos momentos da sua vida, a pessoa experimenta o sofrimento e a quase aniquilação. Sente-se envolta numa teia de dramas, dos quais, por si só, não consegue libertar-se. Neste contexto procura na religião um sentido para o seu sofrimento e, ao mesmo tempo, um lugar de refúgio e de encorajamento para poder vencer as dificuldades.

Quanto mais grave e maior for o seu sofrimento, mais a pessoa experimenta a sua fragilidade e a sua finitude. É especialmente nestes momentos que o Homem se abre ao Outro, seja a outra pessoa humana ou à divindade. A transcendência é muitas vezes a última esperança para os seus dramas e para os seus sofrimentos. Mas também “a ignorância sobre as enfermidades contribuiu para que fosse iniciado, em determinado momento da humanidade, o processo da divinização do desconhecido”214.

As situações limite são sempre um campo de confronto. Podem contribuir para um contacto e uma experiência religiosa ou então podem gerar revolta e até a negação da fé. Muitos são os relatos de pessoas que, diante do sofrimento, tiveram respostas e atitudes tão díspares. O sofrimento é sempre um estado que não deixa a pessoa indiferente. Isto acontece quando o sofrimento é no próprio, mas atinge um ponto mais agudo quando toca alguém que lhe é mais próximo, por laços de sangue ou por afinidade. As situações de doenças graves que causam grande sofrimento físico são sempre uma dura prova para a pessoa e para quem está à sua volta. Apesar dos avanços da medicina, com os seus contributos para a cura ou pelo menos nos cuidados paliativos, muitas vezes, chega-se a uma situação em que não se vislumbra solução e a dor e sofrimento são cada vez maiores. Diante destas situações e depois

                                                                                                                         

213 Carqueja, “A prática religiosa e a perceção do sofrimento,” 36.

214 J. Faria e E. Seidl, “Religiosidade e Enfermagem em contexto de saúde e doença,” in Psicologia: reflexão e critica, 18, nº 3 (2005), 382.  

de esgotadas todas as tentativas, a esperança é cada vez menor e a frustração e o sentimento de impotência tomam conta da pessoa e de quem a rodeia. Perante isto, a questão da fé também se coloca, como um ato normal da vida ou então como uma tábua de salvação. Diante de uma situação limite, a pessoa pode encontrar na fé um apoio para enfrentar o problema, ou pode gerar-se a desilusão, podendo até chegar à revolta e à negação da fé. Esta situação pode ser mais dramática, “quando a própria religião pode ser a causadora de sofrimento, quando entendida pela pessoa como punição ou castigo imposto pelo divino”215.

Em outros momentos, perante uma situação dolorosa e de grande sofrimento, a pessoa que até nem tinha uma ligação religiosa nem uma prática de fé, pode sentir um apelo a um apego religioso. Certamente já ouvimos relatos de pessoas que eram completamente contrárias à fé e à pertença religiosa, mas diante de uma situação limite, mudaram por completo as suas vidas e as suas convicções. O estado de sofrimento pode ser um caminho de conversão, “uma reconstrução do bem do sujeito, que pode reconhecer a misericórdia divina e um chamamento à penitência e a uma mudança de vida”216.

Também, já ouvimos relatos de pessoas que eram praticantes, com uma forte ligação religiosa, mas diante do sofrimento tudo mudou na sua vida. Esperavam que Deus fosse o seu protetor e, como no seu entender não foi, então sente revolta e sente-se abandonado por aquele em quem confiava. Esta revolta pode levar a um fechamento a Deus e consequentemente um afastamento da fé. Diante de uma situação de sofrimento podemos notar dois polos diferentes para abordar esta questão. O sentimento religioso sempre fez parte da humanidade. Ao longo da história esta pertença foi vista com alguns preconceitos, com uma afirmação de valorização por uns e de vergonha e recusa por outros217.

Existe uma relação muito íntima entre o sofrimento e a religião, porque esta é tantas vezes a última esperança ou então uma preciosa ajuda para enfrentar os dramas do sofrimento. “A religião sempre esteve presente na história do homem. A religião traz conforto e acena para a cura das enfermidades que são diagnosticadas como incuráveis e de muito sofrimento por parte do paciente e dos familiares”218. A experiência religiosa não deixa de ser uma ferramenta importante para a busca de um novo sentido ou para atenuar a dor ou o sofrimento. “As relações com o divino podem ser caraterizadas por relações sociais enigmáticas com seres provenientes de crenças religiosas, como por exemplo, Deus, Jesus Cristo, santos, anjos e entidades espirituais”219.

                                                                                                                         

215 Carqueja, “A prática religiosa e a perceção do sofrimento,” 10. 216 João Paulo II, Carta Apostólica Salvifici doloris, 12.

217 Cf. Geronasso e Coelho, “A influência da religiosidade/espiritualidade,” 174.   218 Silva e Moreno, “A religião e a experiência do sofrimento psíquico,” 162. 219 Faria e Seidl, “Religiosidade e Enfermagem,” 386.

Podemos dizer que nesta experiência religiosa e de fé existe uma maior procura de mediadores mais próximos das pessoas, quer sejam os santos ou Nossa Senhora. A procura de Deus ou de Jesus Cristo não é tão frequente, porque as pessoas os colocam como seres mais distantes e por isso com maior dificuldade para estarem próximos do seu sofrimento. Neste contexto, os santos são convocados para participarem mais de perto da experiência da pessoa, porque “quem sofre quer a compreensão do seu sofrimento como um passo para a superação do mesmo”220.

Podemos notar uma certa abertura ao religioso e à transcendência como uma resposta ao sofrimento: um caminho da contingência à transcendência. A fé e a religião desempenham funções diversas, tais como alívio, conforto, consolo, busca de um significado para problemas relevantes da existência. A prática religiosa não diminui a perceção do sofrimento, mas quem mais sofre, de um modo geral, mais procura o conforto da religião221. As questões do sofrimento também são um apelo à comunhão e à solidariedade, entre as pessoas que experimentam a mesma fragilidade. Mas “no sofrimento se esconde uma força particular que aproxima interiormente o homem de Cristo, uma graça particular”222.

Neste campo, a Igreja desempenha um papel importante na medida em que deve dizer a sua própria experiência e a sua ligação ao mistério da redenção operado por Cristo. É claro que a redenção se operou mediante a cruz de Cristo, ou seja, pelo seu sofrimento. Por isso a pessoa é chamada a superar-se e a confiar em Deus, que por meio do seu Filho, nos libertou e salvou. “A cruz de Cristo, como símbolo e explicação do sofrimento humano, mudou a teologia da cruz e a teologia da dor de Deus. E a primeira coisa que conseguiu exprimir foi que Deus também se revela na cruz e que o sofrimento é uma dimensão essencial de Deus”223. Como diz o Papa João Paulo II, Cristo aproximou-se do sofrimento humano, sobretudo pelo facto de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento e mais ainda na cruz de Cristo, não só se realizou a redenção através do sofrimento humano, mas também o próprio sofrimento humano foi redimido224.

A relação entre a vida da pessoa e a religião tem um vínculo muito forte. Cada vez se acredita mais que a fé pode ajudar a encontrar a paz e a quem experimenta uma situação de sofrimento225. Muitas pessoas atribuem a Deus o aparecimento ou cura das suas doenças. Como este é um processo muito íntimo, torna-se difícil afirmar quando a dimensão religiosa é uma ajuda ou uma dificuldade para enfrentar e/ou resolver os problemas que causam dor e sofrimento.

                                                                                                                         

220 Guerra, “Sofrimento,” 524.

221 Cf. Carqueja, “A prática religiosa e a perceção do sofrimento,” 7. 222 João Paulo II, Carta Apostólica Salvifici doloris, 26.

223 Guerra, “Sofrimento,” 525.

224 Cf. João Paulo II, Carta Apostólica Salvifici doloris, 16 e 19.

Em conclusão podemos dizer que “a religião assume um importante tipo de apoio social, na medida em que não constitui a solução do problema, mas sim, uma modalidade de ajuda para o enfrentamento de adversidades, amenizando a dor e o sofrimento, diminuindo a ansiedade e a depressão tornando-os estáveis socialmente”226.