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A transformação é uma técnica utilizada não para superar um precedente, mas para modificar o seu conteúdo, a fim de aplicá-lo ou não ao caso concreto, sendo uma negação de seu sentido, considerando-se equivocada a tese sustentada, embora não expressada formalmente. A sinalização difere-se da transformação, pois aquela reconhece que o precedente não está correto, estando para ser revogado, mas continua aplicando-o para preservar a segurança jurídica, a previsibilidade, bem como a confiança dos jurisdicionados. Ronaldo Cramer entende existir o instituto do superprecedente, precedentes que jamais poderão ser superados, conceito formulado por Michael J. Gerhardt em seus estudos sobre as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. Superprecedente é:

aquele julgado que, seja pelo número de citações feitas em processos judiciais e trabalhos acadêmicos, seja pelo tempo de vigência, seja pela confiança incutida na sociedade, já se incorporou a tal ponto na cultura jurídica que sua superação é inimaginável. (CRAMER, 2016, p. 163) 60

Para ele, o superprecedente possui eficácia vinculante, sendo uma norma de criação ou incremento de direito fundamental. Argumenta que apenas a promulgação de uma nova Constituição pode ser hábil a modificá-lo parcial ou totalmente, devendo o instituto ser preservado enquanto não seja implementada uma nova ordem político- jurídica que queira transformá-lo.

Por mais que compreenda seu posicionamento, a afirmativa não pode ser vista como dogma. O Brasil é um Estado Democrático de Direito, que possui algumas cláusulas pétreas, dentre elas, os direitos fundamentais. Não existem direitos fundamentais absolutos, nem mesmo a vida tem esse status, estando todos no mesmo patamar hierárquico. Quando há dois ou mais valores/princípios/direitos fundamentais, precisa-se aplicá-los conjuntamente, quando possível. Diante da impossibilidade de se proceder dessa forma, o julgador necessita ponderar qual deles deve ser abarcado pelo julgado, verificando as particularidades do caso concreto. O tribunal pode, em um determinado momento, pender seus julgamentos em prol da tutela de determinado direito fundamental, em detrimento de outro. Contudo, isso não impede que, no futuro, ocorra uma modificação no seu entendimento, atribuindo uma maior força jurídica ao que não gozava de tanto “prestígio” pela Corte.

                                                                                                               

A afirmativa do autor, portanto, tem sustentáculo ao ser fixado um precedente que busca proteger/reafirmar o conteúdo de um direito fundamental enraizado em uma relação verticalizada para com o Estado, não podendo ser dito o mesmo quanto às relações humanas horizontais, pois direitos fundamentais podem ser contrapostos e, em virtude de seu caráter relativo, não há como se estabelecer, fielmente, para todos os casos, aquele que irá prevalecer, somente podendo ocorrer a formação do superprecedente no momento em que a criação/ resguardo de um direito fundamental seja oposto ao ente soberano, que detém o dever de respeitar a Constituição e a condição de cidadãos de seus subordinados, sujeitos de direitos e obrigações. Bobbio, ao contrário do posicionamento adotado, entende que existem direitos que valem em qualquer situação e para todos os seres humanos, não podendo ter seus conteúdos limitados. São considerados privilegiados, em consequência de não poderem sofrer restrições quando vão de encontro com outros direitos, os quais não gozam de tal prerrogativa. Os exemplos são: o direito de não ser escravizado e o de não sofrer tortura.61

Luiz Guilherme Marinoni, em seu artigo “Eficácia temporal da revogação da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores” apresenta um exemplo extremamente esclarecedor sobre a relevância do mecanismo de modulação dos efeitos. Relata o caso em que o pedido autoral era o reconhecimento do direito ao aproveitamento do crédito-prêmio do IPI, constituído pelo art. 1° do Decreto-lei 491/1969, que deu ensejo à interposição do REsp n° 738.689 e à oposição dos embargos de divergência. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, até 09.08.2004, era pacífica no sentido de que tal prática era legal e legítima, sendo um benefício do contribuinte. Contudo, após uma análise posterior, o referido entendimento foi “varrido”, cancelando-se o antigo benefício.62 O Ministro Hermann Benjamin entendeu que tal situação deveria compreender o instituto da modulação dos efeitos do art. 27 da Lei 9868/99, pois, à época do ajuizamento da demanda, a jurisprudência do STJ era favorável ao postulante, gerando a ele e aos demais contribuintes que ingressaram na esfera judicial, uma “sombra de juridicidade”, pela insistente jurisprudência a favor de suas pretensões. O contribuinte praticou a conduta sob a expectativa de ser tutelado pelo direito, de ter seu                                                                                                                

61 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

62 MARINONI, Luiz Guilherme. “Eficácia temporal da revogação da jurisprudência consolidada dos tribunais

superiores. Disponível em:

<http://www.tst.jus.br/documents/1295387/2684887/Efic%C3%A1cia+temporal+da+revoga%C3%A7%C3 %A3o+da+jurisprud%C3%AAncia+consolidada+dos+tribunais+superiores>. Acesso em 25 out. 2016.

pedido julgado procedente, diante de tamanhas evidências de uma vitória judicial. Defronte da inconstestável segurança jurídica e confiança legítima dos jurisdicionados em ter um resultado positivo, de acordo com o amplo conjunto de decisões reiteradas e uniformes desta Corte, não haveria motivos para se preocupar com uma nada provável declaração divergente, que contaminasse seu direito. Somente com o julgamento pela 1ª Turma do STJ, do REsp 591.708/RS, em 08.06.2004, com publicação no Diário de Justiça em 09.08.2004, é que houve uma ruptura com o entendimento previamente fixado, transformando um antigo benefício concedido em uma proibição.

O termo “sombra de juridicidade”, segundo o Ministro Herman Benjamin, significa:

uma situação de juridicidade anterior, originada na lei, projeta-se no ordenamento, como eco capaz de produzir efeitos jurídicos válidos, não obstante a revogação do texto legal que lhe deu causa. Com isso, os fatos jurídicos passam a retirar seu sustento normativo já não mais diretamente de um ato do legislador da lei revogada, mas de outra (s) das fontes do Direito, admitidas pelo sistema.63

Consiste, portanto, na manutenção dos efeitos jurídicos de um determinado precedente/lei ou jurisprudência, ora revogados, em decorrência de os contraentes/sujeitos de direitos terem praticado condutas que compreendiam serem legais, conforme o entendimento mais que evidente proferido em situações ocorridas quando da sua validade, devendo receber um tratamento difereciado quanto à aplicabilidade da nova visão do tribunal superior, não podendo ser atingidos por essa postura um tanto contraditória e surpreendente. Os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança justificada devem ser acolhidos. Os jurisdicionados já possuem uma real compreensão e convicção das chances de serem contemplados pelo antigo posicionamento firmado quando da propositura de uma ação, fazendo com que o Poder Judiciário saia da inércia. Deve ser disposta uma regra de transição capaz de trazer segurança jurídica e favorecer as pessoas que se encontravam com expectativas de direito, sendo a retroatividade algo inimaginável, embora seja a regra.

Quando a jurisprudência de um tribunal superior é consolidada, não havendo divergências de entendimentos entre as turmas que o compõem, não sendo variável e facilmente destrutível, essa confiança está mais do que caracterizada, ao contrário de o                                                                                                                

63 Julgamento do EDiv no REsp 738.689/PR, pela primeira seção do STJ, cujo objeto consistia na manutenção

ou não do benefício de aproveitamento do crédito-prêmio do Imposto sobre Produtos Industrializados. O ministro Hermann Benjamin propôs a modulação dos efeitos da decisão, pois era pacífico, até a resolução deste caso, a jurisprudência do órgão, no sentido de permitir tal prática tributária.

posicionamento ser alvo de críticas pela doutrina, demais tribunais e, sofrer, a todo instante, a indicação de que será modificado, consternado, não sendo de alçada dos novos proponentes a sua inclusão como beneficiários daqueles, tendo em vista a existência de um status quo instável, incerto, capaz de ser alterado a qualquer momento, por sua fragilidade e ausência de autoridade.