Definição 18.2.1. Uma decomposição de um poliedro P é uma coleção finita de polidros P1, P2, . . . , Pn, cuja união é P, de modo que a interseção
de quaisquer dois tais polidroos ou é vazia, ou é um vértice comum, ou uma aresta comum ou uma face comum a ambos.
Definição 18.2.2. Dois poliedros P e Q são ditos congruentes por cortes se existem decomposições P1, . . . , Pn e Q1, . . . , Qn de P e Q, respectivamente,
tais que Pk é congruente a Qk, para todo 1 ≤ k ≤ n.
Analogamente ao caso do plano, denotaremos uma decomposição de um poliedro P por P = P1 + . . . + Pn. Quando dois poliedros P e Q forem
congruentes por cortes, denotaremos por P ∼ Q.
Em uma conferência do Congresso Internacional de Matemáticos de Pa- ris, em 1900, David Hilbert apresentou uma lista com 23 problemas. O terceiro problema era o seguinte:
Dois poliedros de mesmo volume são sempre congruentes por cortes? Em 1902, Max Dehn respondeu negativamente a questão. Dehn provou que o cubo e o tetraedro regular, de mesmo volume, são exemplos de poliedros que não são congruentes por cortes.
Analogamente ao problema para polígonos, o volume é um invariante para a congruência por cortes, i.e., dois poliedros que são congruentes por cortes têm mesmo volume. Dehn definiu um novo invariante para essa con- gruência, hoje conhecido como invariante de Dehn, que passaremos a des- crever.
Definição 18.2.3. Considere um subconjunto A ⊂ R. Dizemos que uma função f : A → R é aditiva no conjunto A se, para qualquer combinação linear nula
n1θ1+ . . . + nkθk= 0,
onde ni ∈ Z e θi ∈ A, tivermos
n1f (θ1) + . . . + nkf (θk) = 0.
Considere dois planos π1 e π2 que se interceptam ao longo de uma reta
r. O ângulo determinado por π1 e π2 é definido da seguinte forma. Dado
um ponto P ∈ r, considere uma reta s ⊂ π1, ortogonal a r e passando por P , e uma reta t ⊂ π2, ortogonal a r e passando por P . O ângulo entre π1 e
π2 é definido como o ângulo determinado por s e t, e é usualmente chamado
Definição 18.2.4. Dado um poliedro P, seja A = {θ1, . . . , θn} o conjunto
dos ângulos diedrais de P e, para cada 1 ≤ k ≤ n, denote por lk o compri- mento da aresta de P que contém o vértice do ângulo θk. Dado uma função aditiva f : A → R no conjunto A, o número
Df(P) = n
X
k=1
lk· f (θk)
é chamado o invariante de Dehn de P associado a f .
Lema 18.2.5. Considere uma decomposição P = P1+ . . . + Pnde um polie-
dro P. Seja A o conjunto contendo π e os ângulos diedrais de P, P1, . . . , Pn,
e considere uma função aditiva f : A → R no conjunto A tal que f (π) = 0. Então
Df(P) = Df(P1) + . . . + Df(Pn). (18.1)
Demonstração. Fixado uma aresta a da decomposição P1, . . . , Pn, considere
os poliedros Pi1, Pi2, . . . , Pij da decomposição que contém a aresta a e, para cada 1 ≤ s ≤ j, denote por θs o ângulo diedral de Pis associado a a. Deno- tando por l o comprimento da aresta a, estudaremos a soma
j
X
s=1
l · f (θs).
Para isso, consideremos três casos:
Caso 1: A aresta a está inteiramente contida no interior de P exceto, possi- velmente, suas extremidades. Neste caso, temos
θ1+ θ2+ . . . + θj = 2π.
Assim,
0 = f (θ1) + . . . + f (θj) − 2f (π)
= f (θ1) + . . . + f (θj)
= lf (θ1) + . . . + lf (θj).
Caso 2: A aresta a está contida em uma face de P, mas não é areta do poliedro P. Neste caso, temos
logo
0 = f (θ1) + . . . + f (θj) − f (π)
= f (θ1) + . . . + f (θj)
= lf (θ1) + . . . + lf (θj).
Caso 3: A aresta a está contida em uma aresta de P. Se θ é o ângulo diedral de P associado à aresta, então a soma θ1+ . . . + θj deve ser igual a θ ou
θ − π. Em qualquer caso, a hipótese f (π) = 0 implica f (θ1) + . . . + f (θj) = f (θ),
e assim
lf (θ1) + . . . + lf (θj) = lf (θ).
Portanto, se a soma percorre todas as arestas da decomposição do poliedro P, obtemos o lado direito de (18.1).
Lema 18.2.6. Sejam f : A → R uma função aditiva em A ⊂ R e θ 6∈ A. Então f pode ser estendida a uma função aditiva no conjunto A ∪ {θ}. Teorema 18.2.7. Dados dois poliedros P e Q, defina o conjunto
M = AP∪ AQ∪ {π},
onde AP e AQ são os conjuntos dos ângulos diedrais de P e Q, respectiva-
mente. Suponha que exista uma função aditiva f : M → R em M tal que f (π) = 0. Se P e Q são congruentes por cortes, então Df(P) = Df(Q).
Demonstração. Considere decomposições
P = P1+ . . . + Pn e Q = Q1+ . . . + Qn,
onde Pk≡ Qk, para todo 1 ≤ k ≤ n. Em virtude do Lema 18.2.6, podemos
estender f a uma função aditiva no conjunto constituído de M e de todos os ângulos diedrais dos subpoliedros. Como Df(Pk) = Df(Qk), para todo
1 ≤ k ≤ n, obtemos
Df(P) = Df(P1) + . . . + Df(Pn)
= Df(Q1) + . . . + Df(Qn)
= Df(Q), em virtude do Lema 18.2.5.
Exemplo 18.2.8. Denotemos por C o cubo unitário e por T o tetraedro regular, também de volume igual a 1. Cada ângulo diedral de C é igual a π/2 e cada ângulo diedral de T é igual a θ = arccos(1/3). Seja A = {π, π/2, θ} e defina f : A → R pondo
f (π) = 0, f (π/2) = 0 e f (θ) = 1. Mostremos que f é aditiva no conjunto A. De fato, suponha
n1π + n2 π 2 + n3θ = 0, onde n1, n2, n3∈ Z. Se n3 = 0, temos: n1f (π) + n2f π 2 + n3f (θ) = n1f (π) + n2f π 2 = 0. Se n3 6= 0, então θ π = − (2n1+ n2) 2n3 .
Como π1arccos(1/3) 6∈ Q, a igualdade acima é contraditória. Finalmente, calculemos os invariantes de Dehn de C e T associados a f . O comprimento de cada lado de C é igual a 1, logo
Df(C) = 12 X k=1 1 · f π 2 = 0.
Por outro lado, o comprimento de cada lado de T é igual a 3 q 12/√2. Assim, Df(T ) = 6 X k=1 3 s 12 √ 2· f (θ) = 6 3 s 12 √ 2 6= 0.
Portanto, segue do Teorema 18.2.7 que C e T não são congruentes por cortes. A recíproca do Teorema 18.2.7, estabelecendo uma condição suficiente para que dois poliedros sejam congruentes por cortes foi estabelecida por Sydler em 1965:
Teorema 18.2.9. Se P e Q são dois poliedros de mesmo volume com a propriedade de que Df(P) = Df(Q), para toda função aditiva satisfazendo
18.3
Exercícios
1. Calcule a medida de um ângulo diedral de um tetraedro regular. Se o volume deste tetraedro for igual a 1, calcule a medida de sua aresta.
2. Em um cubo ABCDEF GH, cujas arestas medem a, calcule a distância do vértice B à diagonal AG.
3. Dado um paralelepípedo retângulo ABCDEF GH, calcule a medida da diagonal BH.
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