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O timbre modulante em Memórias de uma paisagem inexistente

Capítulo 3. Aplicações artísticas dos estudos sobre Timbre e Orquestração

2. O timbre modulante em Memórias de uma paisagem inexistente

Memórias de uma paisagem inexistente está dividida em cinco

movimentos: Alvorada, Pião, Coral, Roda e Noite. Cada movimento possui uma combinação de flautas, andamentos e espaço harmônico (Tabela 1).

Movimento Alvorada Pião Coral Roda Noite

Andamento Adagio Agitato Lento Vivo Lontano

Instrumentação 3 flautas e flauta em Sol Flautim, flauta e 2 flautas em Sol 2 flautas e 2 flautas em Sol Flautim, flauta e 2 flautas em Sol 3 flautas e flauta em Sol Linguagem Harmônica

Microtonal Cromático Microtonal Cromático Microtonal

Tabela 1: Forma em Arco de Memórias de uma Paisagem Inexistente

No que diz respeito à instrumentação e andamentos, a forma geral descreve uma forma em arco. Essa estrutura formal a que a obra se propõe foi inspirada pelos Quartetos de Cordas de Béla Bartók, principalmente os números 4 e 5. Bartók se preocupa com a questão da simetria na forma e nas estruturas das alturas (ANTOKOLETZ 1984). Na tabela abaixo vemos os andamentos do Quarteto de Cordas no. 4, mostrando essa relação:

Movimento 1 2 3 4 5

Andamento Allegro Prestissimo Non troppo

lento Allegretto Allegro Molto

Vemos aqui as mesmas ideias de simetria, conforme proposto por Bartók, que são os movimentos I e V no mesmo caráter assim como os movimentos II e IV e o movimento central diferenciado dos demais, criando assim em torno do movimento central um eixo no qual os outros 4 movimentos são espelhados. Tratando ainda mais rigorosamente essa influência da simetria, as instrumentações utilizadas em Memórias de uma Paisagem Inexistente também estão ligadas ao mesmo processo, como mostra a tabela 1 acima.

Apesar da macro forma de Memórias de uma Paisagem Inexistente ter sido inspirada por Bartók, algumas diferenças devem ser apontadas. Uma diferença está no fato de que os Quartetos de Bartók iniciam e terminam em movimentos rápidos mas Memórias de uma Paisagem Inexistente inicia e termina com movimentos lentos. Além disso, não existem em Memórias de uma

Paisagem Inexistente uma relação tonal ou harmônica entre os movimentos, já

que cada movimento pertence a diferentes contextos harmônicos.

Os movimentos possuem também diferentes espaços harmônicos, todos eles utilizando de diferentes contextos conforme apresentado na tabela 1. A partir dessa movimentação harmônica, existe um contraste entre os movimentos que se utilizam de microtonalidade e os que não utilizam (cromáticos), gerando assim na peça um interesse a mais que não somente o timbrístico ou das cores texturais.

Conforme já observamos, a peça é marcada pelo uso de técnicas estendidas da flauta. Essas técnicas são compostas por efeitos que ampliam o som da flauta como Frullato e Multifônicos, efeitos percussivos como tongue ram e ruído de chave e efeitos com ruído de ar. O uso dessas técnicas visam não somente um aspecto virtuosístico mas, também, ampliar as possibilidades timbrísticas.

Em especial os efeitos com ruído de ar foram muito utilizados para se dividir o timbre da flauta em três categorias: som normal, som normal com ruído (ar escapando), e som eólio ou ruidoso (máxima quantidade de ar). Abaixo mostramos a representação gráfica dessas duas últimas técnicas conforme são utilizadas na peça (Figuras 19 e 20). A grafia proposta, assim como todas as

técnicas utilizadas em Mémorias de uma Paisagem Inexistente, foram retiradas do livro Possibilidades Técnicas da Flauta de Carin Levine e Christina Mitropoulos-Bott (LEVINE & MITROPOULOS-BOTT 2005).

Fig. 19: Som normal com ar escapando

Fig. 20: Som eólio (máxima quantidade de ar)

Com esta taxonomia de timbres da flauta podemos realizar combinações dentro do quarteto para a geração de texturas razoavelmente complexas. Adicionamos aos 3 timbres acima expostos mais um elemento, que é o silêncio, e assim, podemos, com cada flauta, gerar, com a nossa taxonomia, 4 possibilidades: eólio, som com ar, normal e silêncio. Temos um espaço timbrístico linear com a classificação dos três sons principais como centros timbrísticos, criando uma relação entre os sons: normal – normal com ruído –

ruído. Nessa relação estamos modificando o espectro, saindo de um som

harmônico (normal) para um ruidoso e o contrário também.

Conforme vimos no capítulo anterior, para termos uma ideia do tamanho do universo timbrístico à nossa disposição, isto é, o número de combinações de timbres que podemos gerar, precisamos realizar um pequeno cálculo matemático. No caso de Memórias de uma Paisagem Inexistente, temos 4 sons diferentes alocados para 4 flautas, consideradas distintas, isto é, pode-se repetir os mesmos timbres entre elas. Assim o número de possibilidades de texturas timbrísticas é dado por 44 = 256. Note-se que esse cálculo inclui o silêncio total (pausa nas quatro flautas) e que este cálculo é semelhante ao cálculo da orquestração de Farben que realizamos no capítulo anterior, com exceção de que lá não existe o conjunto vazio (zero instrumentos).

Entendemos como modulação de timbres, a transição de um timbre (ou combinação timbrística) para outro, em um certo intervalo de tempo, criando uma descontinuidade entre as sonoridades de uma textura. Podemos pensar em vários tipos e graus dessa transição. No caso de Mémorias de uma Paisagem

Inexistente, simplesmente medimos o grau de uma modulação timbrística como

sendo o número de flautas que mudam de um centro timbrístico para outro. Por exemplo, quando as quatro flautas estão tocando ruído (som eólio) e duas mudam diretamente para som normal, temos uma modulação timbrística.

Essas combinações timbrísticas possuem graus de ruído diferentes, e são medidas a partir de uma série de regras simples, são elas:

1-) Dado uma textura, identifica-se os centros timbrísticos envolvidos. 2-) Associa-se um valor numérico para a textura, seguindo a

taxonomia, a saber: (0) para som normal, (1) para normal com ruído e (2) para ruído. Esta associação portanto mede a quantidade de ruído. Estas medida foram feitas a partir, diretamente, da partitura.

3-) Com esta associação, definimos o valor numérico (número inteiro)

de qualquer combinação timbrística, em um certo tempo, como a soma dos valores das 4 flautas. Claramente, este valor encontra-se sempre no intervalo [0,8].

4-) A partir dos valores obtidos realiza-se a comparação entre as

texturas e assim pode-se ter uma ideia das variações das modulações timbrísticas, no que concerne a característica ruído.

Cumpre salientar que em nossa análise estamos tomando ruído no sentido de que no espectro do som, aparece uma quantidade substancial de frequências não-harmônicas, conforme o que consta nas articulações dos instrumentos na partitura (Figuras 19 e 20). Por questão de espaço, no entanto, não fazemos uma análise mais fina das características do próprio ruído, embora seja possível uma extensão do nosso método para abarcar uma taxonomia mais detalhada de ruídos.

Analisaremos a seguir em mais detalhes os movimentos um (Alvorada) e três (Coral) da obra, onde utilizamos dois processos composicionais distintos relativos a organização de timbres dentro do quarteto.

2.1) Alvorada

Em Alvorada mostramos a distinção entre “melodias de timbre” (klangfarbenmelodien) estáticas e móveis, conceito apresentado pelo compositor Flo Menezes em (MENEZES 2003). Como klangfarbenmelodien estáticas referimo-nos àquelas compostas semelhantemente à parte inicial de Farben, onde um mesmo acorde pode ser ouvido com diferentes combinações instrumentais. De certa forma, essa maneira de compor klangfarbenmelodie foi levada às últimas consequências com a escrita de mudanças de timbres sobre uma nota só, realizada em 1958 por Giacinto Scelsi na sua obra Quattro Pezzi

per Orchestra ciascuno una nota sola. Essa peça é composta por quatro

movimentos, cada um com apenas uma nota, as combinações instrumentais são variadas, mas todos os instrumentos tocam a mesma nota em diferentes registros, e há apenas inflexões microtonais caracterizando também mais uma mudança timbrística pelo resultado sonoro obtido que são os batimentos.

A obra Memórias de uma Paisagem Inexistente, tem uma grande influência provinda da obra de Scelsi. O movimento Alvorada inicia com as flautas tocando alternadamente a nota Mi4, todas na mesma oitava mas variando o timbre através da quantidade de ruído em cada nota (Fig. 21).

Fig. 21: Início do Movimento Alvorada de Memórias de uma Paisagem Inexistente

Alvorada é de caráter intrinsicamente contrapontístico onde, depois dos

primeiros compassos mostrando as paletas de cores que serão utilizadas, começa a surgir o contraponto que vai sendo ampliado e intensificado até o compasso 38, o clímax desse movimento (fig. 22).

fig. 22: Clímax do movimento Alvorada

Abaixo temos o gráfico de timbres do movimento (Figura 23), onde podemos ver a distribuição das flautas entre os 3 centros timbrísticos. O gráfico faz um recorte e só ilustra o que se passa até o compasso 41. Isso porque a partir do compasso 42 até o final, temos uma coda na qual os centros timbrísticos são renegados em favor de uma maior movimentação da técnica estendida, utilizando-se multifônicos e jet-whistle.

Fig. 23: Gráfico de Timbres do movimento Alvorada

Neste gráfico o tempo está medido em semínimas, isto é cada número no eixo horizontal corresponde a posição de uma semínima na partitura. Escolhemos esta unidade de tempo pois, como as fórmulas de compasso são modificadas durante todo o movimento, a duração do compasso não pode ser mais a referencia temporal. Assim, a semínima se torna referência e contamos todos os tempos como proporcionais a essa semínima.

Através do gráfico, podemos ver, logo no início do movimento, que os centros timbrísticos se alternam bastante gerando uma klangfarbenmelodie que desestabiliza qualquer tentativa de fixação de uma sonoridade. Segue um domínio maior do ruído até a semínima 28, a partir da qual a distribuição do timbre começa a ficar homogênea (tendendo ao som normal) até a semínima 56. A partir da semínima 56 temos a predominância do som normal até chegarmos ao clímax, mencionado acima, no compasso 38 (semínima 132 a 136).

Nesse clímax temos uma enorme variação do timbre, tendo as quatro flautas modulado de som normal para som normal com ruído seguindo para ruído e voltando para som normal, em um período de tempo muito curto (apenas

1 semínima). Essa é a sequência com maior variedade timbrística (no sentido do nível de ruído) no movimento, e portanto fundamental na forma do movimento.

2.2) Coral

O movimento Coral foi escrito utilizando-se das mesmas técnicas presentes em Alvorada. No entanto, esse movimento possui uma textura harmônica em blocos, com uma escrita típica daquela apresentada nos Corais tal qual vista por exemplo na obra de Johann Sebastian Bach. A fundamentação harmônica nesse movimento está ancorada numa seleção de Multifônicos da flauta. Abaixo temos o início do movimento Coral (Figura 24) com um acorde de sons eólios, cada um deles com grau de ruído 2.

Fig. 24: Início do movimento Coral

Analisamos esse movimento, utilizando das “regras” para medir as combinações timbrísticas expostas acima. Dessa forma colocamos um valor numérico para cada textura onde o máximo grau de ruído em uma textura pudesse ser 8 (as quatro flautas tocando sons eólios) e o mínimo grau seria 0 (as flautas tocando sons normais ou pausa). Em seguida realizamos o gráfico da figura 25, onde plotamos cada textura utilizada no movimento ao longo do tempo. Temos assim uma visão geral sobre as combinações timbrísticas do movimento ao longo do tempo, ou seja a cada compasso.

O primeiro acorde corresponde ao ponto de máximo (8) na figura 25. Em seguida vemos como esse acorde contrasta com o que se segue, em especial com o sol ¼ de tom baixo da flauta dois. Vale ressaltar que o ponto de máximo realizado no primeiro acorde não é repetido em nenhum momento, ou seja as texturas criadas são menos ruidosas do que a tocada no início gerando a idéia de um filtro onde as frequências inarmônicas foram sendo cortadas (Fig. 25).

A quantidade de contrastes realizados no movimento, algo retomado na obra Gris, é rápida e constante durante toda a peça. Nos compassos 7 a 9, por exemplo, são realizadas mudanças bruscas de timbres, gerando as modulações timbrísticas citadas anteriormente. Iniciando com uma textura nível 1 no compasso 7 indo para uma nível 7 no compasso 8 e depois para 0 no compasso 9. Essa variedade e velocidade de mudanças foi planejada durante a peça como forma de controlar os timbres e utilizar-se deles como parte estrutural da obra.

Fig. 26: Gráfico de Timbres do movimento Coral

No gráfico de timbres acima vemos que a distribuição das flautas dentro dos centros timbrísticos é relativamente homogênea, ou seja todas as flautas deslocam-se por todos os centros timbrísticos ao longo do movimento. No entanto há uma discreta assimetria na distribuição ao longo do tempo. Por exemplo, a Flauta 1, passa mais tempo nos centros timbrísticos com ruído do que no normal. Claramente, outras análise podem ser feitas tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo.

Em resumo, da análise dos dois movimentos de Memórias de uma

Paisagem Inexistente vemos que o ruído é um elemento estrutural do timbre na

peça, realçando através dele as estruturas formais em toda a obra, semelhantemente ao que vimos na análise de Farben.

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