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Para a compreensão da natureza do trabalho docente sob a égide do capitalismo, é relevante retomar alguns apontamentos de Moura (2014a) e Kuenzer (2011) sobre o assunto. Para esses autores, o professor exerce um trabalho imaterial. Camargo (2011, p.41) lembra que a definição de trabalho imaterial é complexa, mas, em geral, “[...] se refere a todas aquelas atividades que possuem como característica fundamental o uso do conhecimento, além da cooperação e da comunicação”.

O professor, portanto, possui certo grau de autonomia para refletir sobre a sua prática e trabalhar na contra-hegemonia, visando a superação do sistema capitalista. Contudo, isso não significa que o professor esteja isento à lógica produtiva do capital e às suas contradições. Moura (2014a) e Kuenzer (2011) explicam que, assim como os demais trabalhadores, o professor também está submetido à relação capitalista de compra e venda, seja ele de escola pública, ou privada, ou trabalhador autônomo. Em todos os casos, o professor recebe remuneração pela sua atividade e possui contrato de trabalho e, logo, está vulnerável aos estranhamentos, exploração, fragmentação, desvalorização e precarização do trabalho – consequências impostas pelo sistema capitalista.

Para clarear esse pensamento, Moura (2014, p.34) diz que “[...] o docente vende sua força de trabalho, para o capitalista ou para o estado”. Kuenzer (2011, p.677) complementa, afirmando que “[...] o trabalho docente não escapa à dupla face do trabalho capitalista: produzir valores de uso e valores de troca”.

Segundo Kuenzer (2011, p. 679), o professor produz:

[...] quer pela produção de excedente nas instituições privadas, quer pela atuação em currículos que segmentam a formação, reafirmando as diferenças de classe, quer pela reprodução de subjetividades disciplinadas com a qualificação necessária para atender as demandas do modo de produção capitalista.

Por outro lado, Kuenzer (2011) destaca que o trabalho docente é implicado pelas contradições inerentes ao sistema capitalista. Como exposto, ao mesmo tempo em que a educação escolar é tida como um instrumento do capital, é também concebida

pelos trabalhadores como um espaço privilegiado para apropriar os conhecimentos científicos e filosóficos produzidos pelas gerações anteriores. Sendo assim, o professor é orientado a atuar coerente à ideologia capitalista, formando profissionais para atender ao mercado, mas, também é convocado a atuar em prol do desenvolvimento dos seres humanos, preparando-os para a inserção na prática social.

Nesse sentido, Kuenzer (2011) afirma que é possível agir na contra-hegemonia, no sentido da formação humana, principalmente quando o professor consegue promover situações que possibilitam seus alunos a sair do senso comum e a alcançar a consciência filosófica. Para essa autora, é pelo trabalho, mesmo que submetido ao capital, que o professor - assim como qualquer outro trabalhador - pode contribuir para a transformação da sociedade, “[...] formando consciências capazes de compreender criticamente as relações capitalistas com vistas à sua superação” (KUENZER, 2011, p.677).

Portanto, diante do papel social da educação escolar, a função do professor não se resume à formação de trabalhadores conforme o modo de produção capitalista, pois cabe ao professor, portanto, dirigir, organizar e planejar sua atividade de ensino tendo em vista a formação ampla, crítica e política dos cidadãos. Gomes e Martins (2004) explicam que ser professor significa participar da emancipação, liberdade e independência das pessoas. A função do docente, portanto, é bem clara: trata-se da transformação dos alunos, permitindo a eles uma atuação reflexiva no mundo.

Para tanto, segundo Moura (2000, 2016), o professor precisa ensinar; esta é a atividade principal do professor. Esse autor defende que a atividade de ensino deve ter como objetivo central permitir aos seus alunos desenvolver a atividade de aprendizagem, isto é, aproximar seus alunos dos conhecimentos construídos histórica e socialmente pela humanidade. Se isso não acontece, a prática educativa não tem sentido.

Moura (2000, 2016) mostra que o trabalho docente tem uma natureza particular, o que permite afirmar que a atuação de um profissional (técnico ou engenheiro) da mecânica é bem diferente da atuação do professor de mecânica, posto que ambos

os profissionais possuem o mesmo objeto, mas agem sobre ele de modo distinto, pois a finalidade dos dois é diferente: um precisa projetar, construir, operar os sistemas mecânicos, mas o outro precisa realizar a atividade de ensino.

Com base em Moura (2000, 2016), é possível afirmar que para ser professor de mecânica é necessário saber transformar esse conhecimento tecnológico em conteúdo escolar. Em outras palavras, ao professor seria necessário não só saber as regras que implicam a profissão na área da mecânica, mas saber ensiná-las, tendo em vista o aprendizado por parte dos alunos.

Essas reflexões apontam para especificidade do produto do professor: que é o seu aluno (ser humano) transformado. Como afirma Moura (2016), no processo educativo, o aluno tende a sair diferente de como entrou, isto é, ao aprender o aluno se transforma, e essa transformação não se conserva apenas no momento da aula, mas se estende por toda a vida deles.

É importante retomar a concepção dialética do trabalho exposta por Marx (1983), em que o trabalho não possibilita somente a transformações dos objetos (ou produtos), mas promove a transformação do próprio trabalhador. Nessa lógica, Tardif (2012) defende que o professor é um educador, porque educa. Assim, a identidade do professor é constituída no e pelo seu trabalho, posto que “[...] o trabalho modifica o trabalhador e sua identidade, modifica também, sempre com o passar do tempo, o seu 'saber trabalhar'” (TARDIF, 2012, p. 56).

Guarnieri (2005) também acredita que o professor aprende a ser educador no exercício da sua profissão. Segundo este autor, o aprendizado da docência ocorre à medida que o professor articula o conhecimento acadêmico, com o contexto escolar e com sua prática docente. Nesse sentido, Guarnieri (2005, p. 9) afirma que “[...] o exercício da profissão é condição para consolidar o processo de tornar-se professor”.

Silva (2005) amplia essa ideia, afirmando que o aprendizado da profissão docente começa antes mesmo da pessoa ser professor, uma vez que ela já foi aluno e,

portanto, de alguma forma construiu alguns valores ou ideias acerca da escola, do ensino e da docência. Nesse sentido, Silva (2005, p. 26) argumenta:

Quando ele [o professor] vai ao curso de formação inicial, ele é alguém que, em sua trajetória de vida como filho e como aluno, já passou pela escola e já constituiu expectativas, crenças e representações, e que, muitas vezes, ignoradas no curso de formação, podem levá-lo atuar de forma que não corresponde ao trabalho nos cursos de formação.

Essa autora acredita que a formação acadêmica (inicial e continuada) possui papel determinante na construção do profissional docente. O papel dos cursos de formação, segundo Silva (2005, p. 40), implica em: “[...] uma base teórica conceitual suficiente para que o professor questione o que já aprendeu e para que possa construir o seu próprio referencial teórico para trabalhar e superar o senso comum”.

Silva (2005) mostra que, além dos cursos de formação e do cotidiano do trabalho escolar, o professor se constitui como tal durante a sua vida, seja na posição de filho, aluno e pai ou mãe. Os pais adquirem concepções e representações do trabalho docente ao acompanhar o processo de aprendizagem de seus filhos. Portanto, antes de ser um profissional da educação, o professor é um ser humano (ou ser social) que, como explica Silva (2005, p. 25), “[...] é constituído e constituinte de seu meio”. Nessa lógica, essa autora defende que o professor se constitui como pessoa e como profissional a partir de todas as esferas da sua vida: trabalho, lazer, descanso, atividade social, entre outros elementos da cotidianidade. Sendo assim, como pessoa, o professor age e sofre as ações de sua sociedade, e, como trabalhador, possui uma carreira, aspirações, decepções, ansiedades, sentimentos comuns à vida profissional.

Frente a essas considerações, Silva (2005) orienta que uma leitura sobre o professor implica estudá-lo a partir de um todo, isto é, como uma pessoa, trabalhador, cidadão, aluno, filho, pai ou mãe. Assim, o pesquisador precisaria investigar, conforme Silva (2005, p. 30):

[...] a forma de ele [o professor] estruturar e organizar seu mundo profissional, sua visão de escola e de aluno. Deste modo, o que o professor pensa sobre educação, sobre sucesso ou fracasso escolar, bem como as expectativas, as representações e os saberes construídos na prática diária, influenciam e determinam a sua conduta docente.

Além do mais, Tardif (2012) orienta que, nas pesquisas sobre a docência, o professor não deve ser tratado como objeto, ou cobaias, e sim como sujeitos, isto é, colaboradores ou (co)pesquisadores, posto que o professor possui conhecimentos específicos sobre seu ofício e são autores da sua própria prática educativa e discurso. Esse autor ressalta ainda que a pesquisa não deve se caracterizar como um estudo sobre os professores, mas um estudo com os professores, no sentido de contribuir para melhoria do seu trabalho cotidiano e sua atividade de ensino.

Em suma, esse debate favorece o entendimento de que trabalho docente é muito mais que propiciar conhecimentos. Sendo a educação um instrumento político e de luta, a prática docente, na mesma lógica, é uma mediação política e de luta. Nesse sentido, é de suma importância que o professor tenha consciência que o seu trabalho não é neutro na sociedade. Como exposto, o professor trabalha em função da aprendizagem dos alunos, que remete a apropriação dos saberes, da ciência, da filosofia e da arte construída, histórica e socialmente, pela humanidade.

Se a aprendizagem não ocorre de modo espontâneo nem por meio biológico, os indivíduos precisam ser educados. Daí a importância da escola - como lugar privilegiado do ensino sistemático da cultura humana - e a relevância do professor - como sujeito que ensina, transformando os alunos e a si mesmo. No conjunto da educação escolar, existem várias modalidades de ensino, com a EP, que exige uma atuação docente específica. Portanto, a seguir, passo ao debate sobre a especificidade da docência na educação profissional técnica de nível médio, que é o contexto no qual os sujeitos desta pesquisa estão inseridos.

3.3 A ESPECIFICIDADE DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL