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CAPÍTULO 1 REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DO ATO TRADUTÓRIO

1.3 A tradução e o pós-colonialismo

1.3.1 O tradutor pós-colonial

Ao reivindicar para o tradutor um local de visibilidade, Venuti (1986, p. 14) aponta a inexorabilidade do aspecto subjetivo do processo tradutório, outrora deixado de lado. Assim, o tradutor deixa de ser obrigatoriamente invisível e, consequentemente, sua tradução também se deixa ver como tradução, uma vez que o “efeito ilusionista do discurso” que faz a tradução se passar pelo texto de partida e a “leitura e avaliação da tradução” pelo público não determinam mais sua aceitabilidade e legibilidade. Como destaca Bassnett (2002, p. 9), “a figura do tradutor

28 Em inglês “One thing stands out: the mainstream could not ignore indefinitely the bustling activity in the periphery. The periphery introduced what the system needed more than anything else: healthy stratification. Translation thus became, again, a vehicle for change.”

subserviente foi substituída pela do tradutor visivelmente manipulador, um artista criativo mediador entre culturas e línguas29”.

Essa tomada de posição de exigir para si um local de fala, diferente em tempo e espaço do local do autor, faz com que o tradutor mude seu posicionamento, segundo Bassnett (2002, p. 6), passando a ser “visto como um libertador, alguém que liberta o texto dos signos fixos da sua forma original, tornando-o não mais subordinado ao texto de partida, mas visivelmente esforçando-se para unir o espaço entre o autor e o texto de partida e os eventuais leitores da língua de chegada30”.

Dessa forma, não só o tradutor liberta o texto mas é também por ele libertado, uma vez que deixa ver não somente o aspecto traduzido da obra (não mais deixando-a ser confundida com o texto de partida), mas também sua própria voz, por meio do seu projeto de tradução. Tal projeto pode ser percebido ao longo da análise minuciosa da obra traduzida, a qual pode partir do nível lexical, gráfico e ortográfico para a construção das redes de significado, de imagens e, consequentemente, de discurso polifônico enunciadas a partir do autor e do tradutor.

Pensar, porém, na atividade do tradutor, mais especificamente no seu processo tradutório, ajuda não somente a descrever o projeto de tradução mas a entendê-lo. Berman (2009) aponta a tripla dimensão da experiência da tradução. A primeira experiência diz respeito ao parentesco ou à diferença entre as línguas, que se amplia na medida em que a leitura se aprofunda tanto lexical quanto semanticamente. A segunda está relacionada à (in)traduzibilidade da obra. Como ressalta Berman (2013, p. 54), “a intraduzibilidade é tendencialmente vivida como um valor [...] exalta-se também a traduzibilidade como um indício de alta racionalidade”. A última experiência é a própria tradução, que vincula-se à forma ou à letra. Assim, o tradutor, a cada experiência, faz escolhas e está consciente delas.

Para Meschonnic (2007, p. 63), a tradução, como instrumento emancipatório, promove a subversão do status quo e deixa ver o Outro. Esse processo de conhecimento intersubjetivo leva a momentos distintos da percepção de si e do Outro que lhe obriga repensar seu discurso.

29 Em inglês: the figure of the subservient translator has been replaced with the visibly manipulative translator, a creative artist mediating between cultures and languages.

30 Em inglês: [The translator] is seen as a liberator, someone who frees the text from the fixed signs of its original shape making it no longer subordinate to the source text but visibly endeavouring to bridge the space between source author and text and the eventual target language readership.

Assim, o tradutor deve pensar seu ato tradutório no contínuo da teoria da linguagem, a qual, atualmente, se opõe ao signo e à fragmentação histórica.

Portanto, o tradutor deve ser um sujeito ético, uma vez que gerencia as relações intersubjetivas, das quais é elemento fundamental. Assim, pensar o papel do tradutor e a importância da sua conscientização é primordial para fazer desse sujeito um crítico e pensador da tradução, a partir do seu lugar enunciativo, o qual pode ou não corresponder ao local ocidental e/ou pós-independentista. Canepari (2006, p. 240) ressalta que as estratégias de tradução são importantes, na medida em que é por meio delas que o tradutor responde ao Outro presente no texto representado pelos aspectos culturais das nações dominadas.

Para Tymoczko (1999, p. 22), “um tradutor literário é de facto preocupado com as diferenças não somente na língua […], mas também com a mesma variedade de fatores culturais que um escritor deve destinar quando escreve a um público receptor composto parcialmente ou primariamente de pessoas de uma cultura diferente31”. A autora (p. 22-23) aponta, ainda, alguns posicionamentos que o tradutor pós-colonial pode assumir, ao ter de traduzir tais textos: a) o tradutor pode fazer uso de várias formas de paratexto, na tentativa de dar conta de explicações culturais, podendo manipular mais de um nível textual concomitantemente; b) o tradutor deve saber diferenciar quando as incompatibilidades entre os textos de partida e o de chegada são linguísticas, sendo obrigatória a mudança no texto de chegada, e quando as informações são carregadas de sentido próprio (loaded); c) o tradutor deve decidir como lidar com as características locais do texto, bem como as alusões literárias e históricas e, d) o tradutor deve escolher quais aspectos da obra ele quer enfatizar, ou sua interpretação da obra.

Tymoczko (1999, p. 23) ainda compara os tradutores pós-coloniais a um escritor de uma cultura minoritária ao dizer que

nenhuma cultura pode ser representada completamente em nenhum texto literário, bem como nenhum texto de partida pode ser totalmente representado numa tradução. A seletividade é essencial para a construção de qualquer trabalho literário, particularmente quando o público esperado inclui leitores que estão desfamiliarizados com o objeto cultural.

Essa desfamiliarização que aponta Tymoczko, é uma das consequências diretas da resistência presente no texto. Landers (2001, p. 52) assinala, ainda, que “os tradutores que seguem essa teoria da resistência deliberadamente evitam excluir quaisquer elementos que traiam a

31 Em inglês: a literary translator is de facto concerned with differences not just in language […] but with the same range of cultural factors that a writer must address when writing to a receiving audience composed partially or primarily of people from a different culture.

‘outridade’ da origem do texto e podem até mesmo conscientemente procurá-los32” e, os que não o fazem, mesmo que inconscientemente, apresentam marcas de uma mentalidade colonizada.

Entretanto, é interessante notar como a seletividade parte do não-conhecimento da Outra cultura e, portanto, o tradutor deve buscar os traços resistentes e estrangeiros na obra. Na tradução do teatro de Soyinka para o Brasil, especificamente, todos os elementos yorubá que presentificam o Outro são basilares na formação cultural brasileira, havendo, assim, o conhecimento profundo de tais traços, o que põe em questão não só o local de fala de Tymoczko, como o local da recepção literária yorubá no Brasil. Dessa forma, Tymoczko percebe a Outridade no Estrangeiro, enquanto que o público-leitor brasileiro concebe a Outridade yorubá como um formador cultural, sendo o papel do tradutor de Soyinka revelar não mais o Estrangeiro além-mar, mas, como arqueólogo, as raízes da cultura brasileira.